DEMOCRACIA DIGITAL NO BRASIL

DEMOCRACIA DIGITAL NO BRASIL

Arte digital de urna eletrônica em neon azul (Fonte: Creative Market/Pinterest).

A democracia digital é o emprego de dispositivos, aplicativos e ferramentas de tecnologia da informação e conhecimento (TIC) para complementar, corrigir e reforçar as políticas públicas e sociais em uma sociedade política. Isto, pois, esta não tem um fim em si, mas é construída como parte do contexto de onde são atribuídas as iniciativas visando aproximar a relação da sociedade com o Estado. Dessa forma, sem este determinado contexto, quaisquer definições de Democracia Digital são conceitualmente vazias, pois são intrinsecamente submetidas à uma perspectiva teórica e ideológica. Dito isso, o objetivo desta coluna é contextualizar a democracia digital no cenário político brasileiro, observando tanto as iniciativas provenientes do Estado quanto o papel da sociedade civil, a fim de expor as tendências de evolução ou involução no Brasil (Gomes, 2011; Gomes, 2010; Sampaio, 2013).

Em suma, antes de nos perguntarmos sobre o que significa propriamente o digital, convém considerarmos seriamente o que “democracia” quer precisamente dizer, para aquele autor ou para aquele sujeito político. E como há um número consideravelmente grande de modelos de democracia e de ênfases democráticas adotadas no mercado contemporâneo de idéias políticas, convém sempre se perguntar, ante a caracterização da democracia digital, “que democracia?”, “para quem?”, “com que propósito?”.

Gomes, 2010, p. 9

Que democracia?… Que povo?

Através da etimologia da palavra, entende-se que a democracia é oriunda do grego demokratia — ou em latim democratia— demonstrando uma junção de duas palavras gregas: “demos” que significa povo e “kracia” significa poder. Ademais, similarmente à célebre frase de Abraham Lincoln “governo do povo, pelo povo e para o povo”, e inspirado no modelo estadunidense, o sistema de governo brasileiro é uma democracia representativa liberal. No qual o parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal de 1988 diz: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

Neste caso, mobilizando os argumentos de Friedrich Müller (2000), existem quatro características para entender quem é o povo neste sistema de governo: (i) povo ativo é aquele que participa no processo eleitoral; (ii) povo como instância global de atribuição de legitimidade é aquele que apenas se submete ao sistema legitimando os representantes e legisladores; (iii) povo ícone é aquele que não participa do processo democrático, mas são incluídos no todo; (iv) e povo destinatário é aquele que recebe as prestações civilizatórias do Estado. Em suma, povo é quem tem alguma relação no processo democrático, mas com exceção do “povo ativo”, os outros são constituídos de uma passividade face ao sistema (Müller, 2000).

Portanto, um assunto central – mas não único – é a participação política, especialmente após as mudanças que as TICs promovem nas relações sociais a partir da expansão e popularização da internet. Desde o início do século XXI, as interações sociais são organizadas em uma dinâmica de redes (Castells, 2002), o que não é diferente para a participação política, que Gomes e Maia (2008) sintetizaram em sete blocos: (i) superação dos limites tempo/ espaço; (ii) expansão e qualidade do estoque de informação online; (iii) comodidade, conforto, conveniência e custo; (iv) facilidade e extensão de acesso; (v) sem filtros e nem controles; (vi) interatividade e interação; (vii) oportunidades para vozes minoritárias ou excluídas. Ainda sim, sobre o uso das TICs não há uma aplicabilidade para todas as pessoas que fazem parte do povo, devido às condições estruturais da economia e política brasileira, tampouco para uma facilitação da relação Estado-sociedade (Goldschmidt; Reis, 2019; Gomes, 2010; Rover, 2006).

Enfim, argumenta-se nesta coluna que para uma melhor compreensão da democracia digital apenas uma concepção da ideia de “povo” é insuficiente, tornando-se mais completa ao analisar o povo enquanto classe trabalhadora (Pochman, 2013; Chaui, 2013; Cocco, 2013; Venturi et al, 2013; Souza, 2013; Antunes, 2008). Assim, o elitismo democrático – o qual visa ofuscar a maioria da população da participação política sob um viés de que só a elite tem capacidade intelectual suficiente para se posicionar sobre as questões vigentes – também estava presente no começo deste século, onde as TICs não eram acessíveis à classe trabalhadora (Silva, 1984).

A ciberdemocracia brasileira

Atualmente, a democracia digital, também conhecida como ciberdemocracia, democracia virtual, teledemocracia ou democracia eletrônica, é um fenômeno contido na estrutura democrática brasileira como parte de um projeto que visa maior participação popular. Primeiro, a falta de acesso não é mais o principal desafio, uma vez que de 2019 para 2021, o número de domicílios com acesso à internet passou de 84% para 90%, cujo principal dispositivo de acesso é o celular, mantendo 99,5% em ambos os anos. Segundo, diversos movimentos para a governação da internet no Brasil como o Marco Civil, a Lei Geral de Proteção de Dados, e o PL das Fake News – em debate -, indicam para uma maior autonomia na governança, que, ao mesmo tempo, fundamenta as novas iniciativas relacionadas à democracia digital. Estas que, conforme o indicado pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD), tiveram um aumento de 162 iniciativas em 2020, para 181 em 2021 (Almada et al, 2021).

Tudo ocorre em alta velocidade. Todos os processos que envolvem a sociedade exigem um grande número de decisões num intervalo de tempo o mais ínfimo possível. A tecnologia e a economia e, em conseqüência, os demais sistemas sociais refletem bem essa revolução, que gera um novo paradigma constituído de um agrupamento de inovações técnicas, organizacionais e administrativas, inter-relacionadas, cujo fator-chave é os insumos baratos de informação derivados do avanço da tecnologia em microeletrônica e telecomunicações, caracterizadas pela queda dos custos relativos e pela disponibilidade universal.

Rover, 2006, p. 9.

Observando o Poder Executivo e Legislativo do Brasil, o INCT.DD categorizou o uso das ferramentas digitais para incrementar no processo democrático em três: (i) participação civil, (ii) publicidade e transparência, e (iii) direitos e liberdades. Respectivamente, estas correspondem a 9,4%, 68,5% e 28,1% do total de iniciativas (Almada et al, 2021). Além disso, destaca-se o Portal e-Democracia1, que criado em 2009 visando ampliar a participação social no legislativo; aproximando os cidadãos de seus representantes, foi reestruturado agregando novos e diferentes mecanismos de participação. Hoje os principais mecanismos do portal são as audiências interativas, a ferramenta “Expressão” que permite opinar sobre diversas pautas discutindo com autoridades e internautas, e a “Wikilegis” que permite editar textos normativos em colaboração com outros usuários (Rossini, 2014).

Até aqui ficou evidente que o Estado brasileiro promove diversas iniciativas de democracia digital, mas questiona-se se isso de fato é acessível para o povo. Mais do que isso, questiona-se se na relação Estado-sociedade há um interesse mútuo em aproximar as relações e promover o fortalecimento do sistema democrático brasileiro. Assim, retorna-se às três perguntas de Wilson Gomes: “que democracia?”, “para quem?”, “com que propósito?”, ademais, seria melhor repensar meios de fortalecer, reformar, revolucionar e/ ou abolir o sistema? Entre tantas perguntas, os estudos de Robert Dahl (1997; 2012), Giovanni Sartori (2009) e Arend Lijphart (2000) podem contribuir, até certo ponto, para pensar sobre a democracia digital no Brasil. Isto pois, historicamente diversos modelos e conceitos sobre democracia foram construídos, mas a intocabilidade das instituições pode representar um caminho contra intuitivo ao promover maior instabilidade e não o contrário (Gomes, 2010; Gomes 2005; Santos, 2013; Avelino et al, 2021).

Em suma, não há um modelo ideal de democracia, aplicável à todos os povos, tampouco a democracia representativa brasileira é uma estrutura secular e estável2, que conseguiu garantir que seus representantes superassem as contradições sociais que o sistema político-econômico vigente promove. Esta é uma preocupação fundamental que não perpassa pelos estudos de democracia digital isoladamente, as tecnologias da informação não são um problema do futuro, há anos já são – ou deveriam ser – profundamente compreendidas em sua relação com agrupamento social3. Mais do que a participação, a democracia digital no Brasil pode se tornar uma ferramenta para maior soberania popular, de modo a pensar que a classe trabalhadora possa se organizar de acordo com interesses políticos e reivindicá-las aos representantes (Dahl, 1997; Sartori, 2009; Dahl, 2012; Gomes, 2010; Goldschmidt; Reis, 2019).

O futuro da democracia digital para além da participação

Ainda que as iniciativas de participação sejam poucas no Brasil, é de plena importância observar que no cenário brasileiro há uma crise democrática, observando especialmente a baixa confiança nos representantes políticos e na política institucional, bem como um crescimento do discurso antipolítico “apartidário”. Emaranhada em diversas narrativas – entre elas destaca-se a continuidade dos discursos da extrema direita global -, é extremamente complexo traçar um cenário cujo sistema brasileiro consiga atender às demandas do povo, bem como emergem novas questões sobre manipulação de opinião pública e responsabilidade e privacidade na vigilância de dados.  

É inquestionável a influência das redes sociais em diversos casos a partir da década de 2010, por  exemplo, a disseminação de notícias falsas ou o uso de robôs nas manifestações de 2013, nos movimentos desfavoráveis aos megaeventos ou o assassinato da ex-vereadora da cidade do Rio de Janeiro Marielle Franco (Ituassu et al, 2019).

O uso crescente de diversos recursos digitais e a queda das restrições legais sondavam o contexto brasileiro a partir de 2010. No ano de 2018 mais de 110 milhões de brasileiros eram usuários na internet, nesse mesmo período o impulsionamento de conteúdo – legalmente permitido a partir da lei número 9.504/97 de 2017 -, mas também o uso de bots e de psicopolítica através do Big Data4 foi crucial para a campanha vitoriosa do ex-presidente da república, Jair Messias Bolsonaro (Ituassu et al, 2019).

No fim, a questão central é que a democracia digital  não é a solução para os problemas do processo democrático, mas uma ferramenta capaz de auxiliar nas demandas sociais. As tecnologias de informação e conhecimento são parte inseparável das dinâmicas da sociedade da informação, assim, torna-se importante o reconhecimento do papel das grandes corporações do ramo e sua influência no Brasil.

Da mesma forma que  o Marco Civil e a LGPD foram passos fundamentais para o avanço das discussões sobre internet e sociedade, hoje o PL 2630 também segue exemplificando a necessidade de aperfeiçoamento do aparato institucional face à relação com os fluxos de informação. Isso tudo está intimamente ligado com o desenvolvimento de uma democracia digital que garanta a soberania popular, nos termos de participação política mais efetiva, tanto da segurança quanto aos dados sensíveis online e sua vigilância.

Referências

ALMADA, Maria Paula et al. Democracia digital no Brasil: obrigação legal, pressão política e viabilidade tecnológica. MATRIZes, v. 13, n. 3, p. 161-181, 2019.

AVELINO, Daniel Pitangueira de; POMPEU, João Cláudio Basso; FONSECA, Igor Ferraz da. Democracia digital: mapeamento de experiências em dados abertos, governo digital e ouvidorias públicas. 2021.

DAHL, Robert. Poliarquia: participação e oposição. 1997. EdUSP, São paulo, ed. 1.

DAHL, Robert. A democracia e seus críticos. WMF Martins Fontes, São Paulo. 

GOLDSCHMIDT, Rodrigo; DE FELIPPE REIS, Beatriz. Democracia Digital. Revista Em Tempo, v. 18, n. 01, p. 177-200, 2019.

GOMES, Wilson. A democracia digital e o problema da participação civil na decisão política. Revista Fronteiras–estudos midiáticos, v. 7, n. 3, p. 214-222, 2005.

GOMES, Wilson. Democracia digital: que democracia. II Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Comunicação e Política. UFMG, Belo Horizonte, v. 5, 2007.

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2018.

LIJPIHART, Ared. Modelos de democracia: formas de gobierno y resultados en treinta y seis países. 2000. Editorial Ariel SA, Barcelona.

MÜLLER, Fredrich. Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia. 2000.

ROSSETTO, Graça Penha Nascimento; CARREIRO, Rodrigo. Democracia digital e sociedade civil: uma perspectiva do estado atual no Brasil. Comunicação & Sociedade, v. 34, n. 1, p. 273-296, 2012.

ROSSINI, Patricia Gonçalves da Conceção. O papel do cidadão nas ferramentas de Democracia Digital no Brasil: uma análise do desenho interativo das Comunidades Legislativas do Portal E-Democracia. Compolítica, v. 4, n. 2, p. 135-154, 2014.

ROVER, Aires José. A democracia digital possível. Seqüência: estudos jurídicos e políticos, v. 27, n. 52, p. 85-104, 2006.

SAMPAIO, Rafael Cardoso et al. Estado da arte da democracia digital no Brasil: oferta e sobrevivência das iniciativas (1999-2016). 2019.

SAMPAIO, Rafael Cardoso. Democracia digital no Brasil: uma prospecção das iniciativas relevantes. Revista Eletrônica de Ciência Política, v. 4, n. 1-2, 2013.

SANTOS, José Carlos Sales. Informação, democracia digital e participação política: uma breve revisão teórico-analítica. Em questão, v. 19, n. 2, p. 195-216, 2013.

SARTORI, Giovanni; FOSCHINI, Lorenza; PRADERA, Alejandro. La democracia en treinta lecciones. Madrid: Taurus, 2009.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. Revista dos Tribunais, 1984.

  1. https://edemocracia.leg.br/ ↩︎
  2. Recomenda-se a leitura de Huntington. ↩︎
  3. Recomenda-se a leitura de André Lemos e Bruno Latour. ↩︎
  4. Recomenda-se a leitura de Byung-Chul Han. ↩︎

Murilo Cesar Ançolim Nazareth

Internacionalista formado pela PUC Minas e pesquisador do Grupo de Pesquisa Instituições Internacionais e Segurança. Interessado em estudos sobre tecnologia e inovação nas Relações Internacionais, com ênfase em governança digital e vigilância de dados. Também entusiasta de debates decoloniais.

Um comentário em “DEMOCRACIA DIGITAL NO BRASIL

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *