A CRISE DEMOCRÁTICA NA AMÉRICA DO SUL: EXEMPLOS COLOMBIANO E BRASILEIRO

A CRISE DEMOCRÁTICA NA AMÉRICA DO SUL: EXEMPLOS COLOMBIANO E BRASILEIRO

O século XXI tem sido fortemente marcado pela maior crise do modelo hegemônico ocidental de democracia liberal desde a Guerra Fria, sobretudo no continente sul-americano. Dado o pressuposto, esse artigo tem como objetivo realizar uma breve análise sobre recentes acontecimentos na América do Sul e examinar em que medida esses ocorridos correspondem a um movimento em direção à pós-democracia.

A ideia principal por trás dessa hipótese diz respeito à possibilidade de, em muitos países, os regimes não estarem caminhando em direção ao ideal democrático (CROUCH, 2004). Nesse sentido, cabe ressaltar que democracias representativas são um

“arranjo institucional para chegar a decisões políticas que atendem ao bem comum ao fazer o próprio povo decidir sobre questões por meio da eleição de indivíduos, que devem se reunir a fim de cumprir a sua vontade” (SCHUMPETER, 1975, p. 250, tradução da autora). [1]

Diante disso, ao ter como referência o conceito citado, é possível perceber que eleições livres e justas, baseadas no ideal  democrático, têm acontecido e possuem a capacidade de mudar os governos na maioria dos Estados. Entretanto, apesar de ser o sustentáculo do modelo democrático, avaliar o sucesso desse regime político somente por meio do sufrágio universal é limitante, sobretudo quando existe a possibilidade do debate público eleitoral ser controlado, mesmo que indiretamente, por uma elite política. Nesse cenário, a massa de cidadãos realiza um papel passivo, que consiste em reagir aos estímulos direcionados a ela. O jogo político seria, portanto, determinado por dois atores: os políticos eleitos e uma elite que defende os interesses comerciais. Esses fatores, então, contribuem para um processo de esvaziamento da democracia, de forma a aproximar-se do que seria a Pós-democracia (CROUCH, 2004).

Mas o que é a Pós-Democracia?

A Pós-Democracia é um fenômeno ocasionado pela ruptura da ordem democrática a partir de suas próprias instituições, descrita por Crouch (2004, p. 19-20, tradução minha) da seguinte forma:

A ideia de pós-democracia nos ajuda a descrever situações quando o tédio, frustração e desilusão se instauram após um momento democrático; quando os interesses de uma minoria poderosa se tornam mais ativos do que a massa das pessoas comuns em fazer o sistema político funcionar a favor dos mesmos; quando elites políticas aprendem a administrar e manipular demandas populares; onde as pessoas têm de ser persuadidas a votarem em campanhas publicitárias de cima para baixo. [2]

É importante notar que o conceito de pós-democracia conecta, intrinsecamente, política e economia, uma vez que é um processo fruto da convivência do neoliberalismo com o regime democrático (BALLESTRIN, 2018). A partir da década de 1970, com a consolidação do neoliberalismo como modelo econômico mundial, há um fortalecimento da crença de que o mercado deveria ser o elemento orientador das decisões políticas, sociais e econômicas (GIROUX, 2005). A partir disso, percebe-se a incompatibilidade entre o regime democrático e a doutrina econômica neoliberal, dado que, enquanto o segundo tem como prioridade o acúmulo de lucros e a restrição da atuação estatal, o primeiro atenta-se à ampliação da cidadania e à implementação de uma agenda igualitária, no que diz respeito à justiça social (VERBICARO, 2021).

Assim, a desconformidade entre esses dois sistemas é nitidamente percebida principalmente em Estados com altos níveis de desigualdade econômica e social, como é o caso dos países sul-americanos. Isso se dá em virtude da teoria econômica, política e social neoliberal se opor à construção de redes de proteção  que visam minimizar a assimetria social entre as populações ricas e pobres por meio de políticas públicas. Além disso, é importante destacar que o esvaziamento da democracia também é provocado pela propagação da crença de que não há alternativa ao status quo [3]. O efeito disso é a formação de indivíduos sem perspectiva, apáticos e passivos quanto ao que acontece ao seu redor, inclusive no cenário político (VERBICARO, 2021).

Recentemente, o que se tem percebido é que as consequências da operação do modelo neoliberal estão relacionadas a questões mais profundas  do que apenas na falha na realização de eleições livres e justas. Há, ainda, uma tendência ao reforço e à expansão da hegemonia das classes capitalistas aliadas aos administradores de alto escalão (DUMÉNIL; LÉVU, 2014). Diante disso, a participação política das classes mais baixas é substituída pela voz do mercado. Sob essa nova configuração de poder, a manifestação de diversas formas de violência estatal, social e mercadológica deixa implícito o ressurgimento do populismo e  do autoritarismo. Dessa forma, está contido, no fazer político, cada vez mais o emprego de discursos negacionistas históricos, com teor anti-humanista [4], autoritário e antidemocrático (BALLESTRIN, 2018).

Onde é possível verificar traços da pós-democracia na América do Sul?

Para efeitos de exemplificação serão apresentados e elucidados dois eventos que levam a um questionamento acerca dos limites da democracia representativa sul-americana. Cada acontecimento evidencia, de maneira particular, alguns dos sintomas de fragilização e ruptura da democracia.

Em 2016, houve um plebiscito na Colômbia para votar a favor ou contra um acordo de paz entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), um grupo guerrilheiro de cunho marxista-leninista com quem o Estado da Colômbia lutou por 52 anos. Nessa consulta popular, a proposta foi rejeitada por 50,2% dos votos, deixando evidente a polarização do assunto (LAFUENTE, 2016). O acordo final incluiu temas sobre reforma agrária, fim das hostilidades, soluções para a produção de drogas ilícitas, direitos das vítimas e mecanismos de implementação e verificação de cumprimento do que foi concordado (FONSECA; AZEVEDO, 2018).

Apesar da expressa oposição da sociedade civil ao acordo, o governo colombiano e as FARC deram continuidade ao processo de paz. Desde o primeiro anúncio da Colômbia, em 2012, concordando com o início das negociações com o grupo armado, já foram sete tentativas fracassadas para se chegar ao fim do conflito. A partir da primeira declaração, a população colombiana já havia perdido muita expectativa acerca do sucesso do processo de paz (FONSECA; AZEVEDO, 2018).

Segundo a Organização Internacional Não-Governamental (ONG) Freedom House, a criação do processo de paz tem contribuído para uma redução significativa nos índices de violência, traduzindo-se na queda das taxas de homicídio no país para o grau mais baixo já presenciado em 40 anos. Além disso, durante todo o ano de 2016, as FARC cumpriram um acordo de cessar-fogo estabelecido com o governo, o que teve como resultado o menor número de vítimas relacionadas ao conflito em 50 anos (FREEDOM HOUSE, 2017). Em virtude desses indícios de avanço, a comunidade internacional vê com certo otimismo a iniciativa do governo de Juan Manuel Santos, que  possui colaboração com a ONU em formato de Missão, cujo objetivo é verificar e monitorar a implementação de dois aspectos do acordo: a ressocialização dos membros das FARC e a garantia da segurança nacional (UCDP, 2021).

Existem diversos fatores que contribuem para que a população rejeite o atual acordo, tais como: o remorso causado pelas cinco décadas de guerra; dúvidas a respeito da imparcialidade do plebiscito e do baixo nível de representatividade causado pela reduzida participação popular na votação [5]; do modo que infratores do grupo paramilitar seriam punidos por suas ações e por fim, da motivação política de atores políticos opositores ao acordo, que optam pelo status quo favorável a determinados setores tradicionais da economia (DANTAS, 2017).

Por último, é importante destacar o papel do ex-presidente colombiano, Álvaro Uribe, no resultado do referendo, uma vez que este foi a principal figura política contrária ao acordo, conseguindo aprofundar a divisão da sociedade. Com uma forte campanha publicitária, Uribe se empenhou em convencer a população através de argumentos sobre a falta de punições reais aos guerrilheiros e sobre o desconhecimento do patrimônio do grupo para reparar as vítimas (RESTREPO, 2016). Assim, a fragilidade democrática, nesse caso, se encontra na dificuldade da população em superar o trauma do conflito e, consequentemente, na escolha de se opor a um acordo de paz devido à ascensão de discursos que apoiem a inevitabilidade do status quo.

A segunda vivência sul-americana diz respeito ao processo de impeachment aprovado para a destituição da ex-presidenta brasileira, Dilma Rousseff, cuja justificativa foi pautada em um controverso crime de responsabilidade fiscal. Esse procedimento foi efetivado após sua validação no Senado, no dia 31 de agosto de 2016, com 61 votos a favor e 20 contrários (AMORIM; PRAZERES; MARCHESAN, 2016).

A acusação da então presidente foi fundamentada na denúncia de que decretos de créditos suplementares requisitados durante o seu governo feriam a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Ou seja, a causa do processo de impeachment dividiu-se em duas questões: a presidente teria autorizado abertura de créditos suplementares [6] sem a autorização do Congresso Nacional e teria executado operações de crédito com bancos, atividade conhecida como “pedalada fiscal” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2021).

Entretanto, a incriminação direcionada à ex-presidente é contestada por diversos juristas brasileiros – o que contribuiu para um enfraquecimento dessas acusações que argumentam que pedaladas fiscais não se configuram como improbidade administrativa e que não existem provas objetivas do envolvimento da acusada em crime doloso, [7] que justifique a cassação do seu mandato (SCHEIBER, 2015; MEDONÇA; PUFF, 2015). Além disso, a prática de pedaladas fiscais não se configura como um comportamento distinto da presidente em relação aos seus antecessores (AVRITZER, 2018).

Para além dos pontos levantados pelos juristas brasileiros, a sensação de parcialidade no processo de impeachment é fomentado por dois importantes fatores: 1) as fortes evidências posteriores ao impeachment, como os acordos políticos com o intuito de retirada de Dilma Rousseff da presidência e, 2) pelo afastamento e posterior prisão do então Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, assim como a tentativa de afastamento do Presidente do Senado, Renan Calheiros, ambos acusados por crimes de corrupção (AVRITZER, 2018).

Nesse sentido, o impeachment, no caso indicado, foi um exemplo da utilização das instituições para sabotar o regime democrático, na medida que aqueles políticos eleitos utilizam seu poder para representar seus interesses particulares, em detrimento do interesse comum da nação. A soberania popular tem, então, seu papel subjugado, demonstrando o caminho em direção à crise na democracia.

Por fim, há de se destacar que a observação de diferentes processos de crise democrática a nível global coloca um limite na aplicação do termo “pós-democracia”. Isso porque é um conceito construído ao se analisar realidades eurocêntricas e, portanto, a sua utilização em contextos subalternizados pelas relações de poder globais detém certos limites referente às diferentes relações entre democracia e neoliberalismo (BALLESTRIN, 2018).

Notas

[1] institutional arrangement for arriving at political decisions which realizes the common good by making the people itself decide issues through the election of individuals who are to assemble in order to carry out its will.

[2] The idea of post-democracy helps us describe situations when boredom, frustration and disillusion have settled in after a democratic moment; when powerful minority interests have become far more active than the mass of ordinary people in making the political system work for them; where political elites have learned to manage and manipulate popular demands; where people have to be persuaded to vote by top-down publicity campaigns.

[3] Estado ou circunstância que se mantém igual ou inalterada.

[4] Contrário aos princípios da doutrina que tem a concepção do homem como a referência de todas as coisas, o Humanismo.

[5] O resultado foi aferido com 37% de votos e 63% de abstenções.

[6] Modalidade de crédito adicional destinado ao reforço de dotação orçamentária já existente no orçamento. É autorizado por lei e aberto por decreto do Executivo (Agência Senado, 2021).

[7] Crime no qual o ator possui a intenção de produzir os resultados do delito.

REFERÊNCIAS

AMORIM, Felipe; PRAZERES, Leandro; MARCHESAN, Ricardo. Senado aprova impeachment de Dilma, e Temer é efetivado presidente do Brasil. UOL, Brasília, 2016. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2016/08/31/senado-aprova-impeachment-e-dilma-deixa-presidencia-em-definitivo.htm. Acesso em: 10 mai. 2021.

AVRITZER, Leonardo. O Pêndulo da Democracia no Brasil: uma análise da crise 2013-2018. Revista Novos Estudos,  São Paulo, v. 37, n. 2, p. 273-289, Ago. 2018. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002018000200273&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 10 mai. 2021.

BALLESTRIN, Luciana. O Debate Pós-Democrático no Século XXI. Revista Sul-Americana de Ciência Política, Pelotas, v. 4, n. 2, p. 149-164, 2018.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Registro das Sessões – O processo de Impeachment no Senado Federal, 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/glossario-legislativo/credito-suplementar. Acesso em: 10 mai. 2021.

CROUCH, Colin. Post-Democracy. Polity Press: Cambridge, 2004. 

DANTAS, Fabiana Santos. A Paz Rejeitada: uma reflexão sobre o dever de memória e esquecimento no acordo de paz colombiano. Revista da Faculdade de Direito, Curitiba, v. 62, n. 2, p. 227-244, mai./ago. 2017.

DUMÉNIL, Gérard; LÉVU, Dominique. A Crise do Neoliberalismo. São Paulo, Boitempo, 2014.

FREEDOM HOUSE. Relatório Anual sobre Status de Liberdade Global, 2017. Visão Geral da Colômbia. Disponível em: https://freedomhouse.org/country/colombia/freedom-world/2017. Acesso em: 10 mai. 2021. 

FONSECA, Guilherme Damasceno; AZEVEDO, Christian Vianna de. Colômbia e as FARC: Cenários pós-conflito e repercussões regionais. Instituto Igarapé, Rio de Janeiro, n. 34, p. 1-30, Maio 2018. Disponível em: https://igarape.org.br/wp-content/uploads/2018/05/Colombia-e-as-FARC.pdf. Acesso em: 10 mai. 2021.

GIROUX, Henry A. El Neoliberalismo y la Crisis de la Democracia. Revista Anales de la Educación Común, Buenos Aires, año 1, n. 2, p. 72-91, 2005. Disponível em: http://isfdluisfleloir.edu.ar/wp-content/uploads/2013/03/NEOLIBERALISMO-Y-CRISIS-DE-DEMOCRACIA.pdf. Acesso em: 9 mai. 2020.

LAFUENTE, Javier. Colômbia diz não ao acordo de paz com as FARC. El País, Bogotá, 2016. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/02/internacional/1475420001_242063.html. Acesso em: 10 mai. 2021. 

MENDONÇA, Renata; PUFF, Jefferson. Duas visões: juristas contra e a favor avaliam pedido de impeachment. BBC Brasil, São Paulo, 2015. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/12/151201_impeachment_2visoes_juristas_jp. Acesso em: 10 mai. 2021.

RESTREPO, Claudia. Triunfo del No es una victoria política para Álvaro Uribe. El Colombiano, 2016. Disponível em: https://www.elcolombiano.com/colombia/acuerdos-de-gobierno-y-farc/uribe-ganador-con-el-no-en-el-plebiscito-GK5095190. Acesso em: 10 mai. 2021.

SCHEIBER, Mariana. Qual seria o curso de um eventual processo de impeachment?. BBC Brasil, Brasília, 2015. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/10/150923_ritos_impeachment_ms_ab. Acesso em: 10 mai. 2021.

SCHUMPETER, Joseph A. Capitalism, Socialism and Democracy. 5 ed. Routledge Press, London, 1975. Disponível em: https://periferiaactiva.files.wordpress.com/2015/08/joseph-schumpeter-capitalism-socialism-and-democracy-2006.pdf. Acesso em: 9 mai. 2020.

UCDP – UPPSALA CONFLICT DATA PROGRAM. Department of Peace and Conflict Research, 2021. Colombia – Summary. Disponível em: https://ucdp.uu.se/country/100. Acesso em: 10 mai. 2021. 

VERBICARO, Loiane Prado. Reflexões Acerca das Contradições entre Democracia e Neoliberalismo. Revista Direito Público, v. 18, n. 97, p. 23-51, jan./fev. 2021.

Isadora Ferreira Marinho

Estudante de Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Possui interesse nas áreas de Direito Internacional Público e Política Internacional.

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