REAGAN E AS FAVELAS: A (NECRO)POLÍTICA DA GUERRA ÀS DROGAS

REAGAN E AS FAVELAS: A (NECRO)POLÍTICA DA GUERRA ÀS DROGAS

Moradia no Jacarezinho após chacina realizada durante operação policial de Guerra às Drogas em 2021. Fonte: Voz das Comunidades / Reprodução.

Grande conhecida entre os brasileiros, a Guerra às Drogas marca presença nos noticiários todos os dias. No entanto, seu berço são os Estados Unidos, que a internacionalizou e levou aos países do mundo todo, em especial da América Latina, durante o governo Reagan. Direcionada principalmente a espaços periféricos como as favelas, ela é utilizada como instrumento de aniquilação daqueles que são considerados marginais ao sistema, configurando-se enquanto uma necropolítica.

Necropolítica

No fim do século XVIII e início do XIX, as técnicas de poder sofreram modificações. Além do advento de tecnologias de preservação da vida, humanos passam a ser estatísticas contabilizadas para processos coletivos de controle: de natalidade, mortalidade, longevidade (Foucault, 1997 apud Mbembe, 2019). O poder, então, se materializa no direito de intervir para fazer viver, o que chamamos de biopolítica. Tendo isso em vista, como um governo que se volta para políticas de prolongamento da vida pode matar seus inimigos, ou, até mesmo, seus próprios cidadãos? A resposta para como essas mortes se tornam aceitáveis reside, para Foucault, no racismo (2010). 

O racismo não apenas opera enquanto divisor biológico social, como também firma relações em que a segurança de um grupo depende da insegurança e eliminação do outro. Isto é, para que alguns vivam bem, outros devem morrer. Essas duas funções estão inscritas no funcionamento do biopoder do Estado moderno e asseguram a ele o direito de matar (Foucault, 2010). 

Mbembe aborda esse conceito e o relaciona à países colonizados, subdesenvolvidos e periféricos: diferente do centro global, esses eram compostos por “selvagens”, não cidadãos. São, portanto, zonas de desordem, em guerra perpétua, onde a paz não pode ser firmada. Fora da lei, a guerra acontece por meio de violências desproporcionais, justificadas em si mesmas, e o direito de matar não consegue ser domesticado pelo Estado (Mbembe, 2019). 

Nesse paradigma, não há distinção entre inimigos internos e externos, populações inteiras podem ser dizimadas pelo soberano. O cotidiano é militarizado e organizações policiais podem decidir quando e em quem atirar. A rotulação de inimigos não precisa ser justificada, se não pela raça, para ser verídica e a morte de minorias não guarda nenhum simbolismo ou carrega qualquer obrigação de reação (Mbembe, 2019).  É o que explicita o grupo Racionais na música “Diário de um Detento” (1997) :

“Cachorros assassinos, gás lacrimogêneo

Quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio!

O ser humano é descartável no Brasil

Como modess usado ou Bombril”

Crianças atingidas por balas perdidas são estatísticas. Massacres como o de Carandiru são um sacrifício necessário pela segurança do “cidadão de bem”, óbitos irrelevantes o suficiente para não serem nem contabilizados em sua totalidade. Desse modo, a política é voltada única e exclusivamente para a morte, é uma necropolítica. Assim como na reportagem a seguir, para aqueles que o sistema não quer, restam uma cova rasa e pedidos silenciosos por ajuda.

Reagan e a Guerra às Drogas nos Estados Unidos

Tal princípio é evidente na condução da Guerra às Drogas, iniciada dentro dos Estados Unidos. Esse vínculo xenófobo e racista aconteceu, por exemplo, com a maconha, associada aos hispânicos, ópios aos chineses, cocaína com negros e álcool com irlandeses e italianos. Embora essa política tenha se iniciado nos governos Nixon e se fortalecido internacionalmente com Reagan, o modelo proibicionista se estabelece em 1922 com a proibição do álcool, que, além desse legado, também deixa a cristalização do tráfico (Rodrigues, 2012).

Nesse contexto, em 1972, o presidente estadunidense Richard Nixon anuncia que as drogas são uma ameaça à sociedade do país, declarando guerra a essas substâncias. Mais do que isso, reconhecia, também, uma divisão global entre países consumidores e países produtores. Ainda que essa distinção tenha se provado fictícia, a declaração coloca o país como uma vítima do tráfico de drogas e possibilita ações de repressão tanto internas quanto externas (Rodrigues, 2012).

Presidente Nixon assinando o Drug Abuse Office and Treatment Act de 1972. Fonte: Nixon Presidential Library and Museum / 1972

É importante notar como essa política se guia pelos princípios descritos por Mbembe (2019). Depois da declaração de guerra, o crack se espalhou rapidamente pelos bairros de Los Angeles povoados por pessoas pretas e pobres. Em 1985, Reagan contrata, inclusive, publicitários para advertir quanto ao uso da droga por meio de propagandas firmadas e sustentadas por estereótipos raciais (De Barros, 2021). Legalmente, órgãos estaduais e locais podiam se apropriar de dinheiro e bens que fossem apreendidos em ações relacionadas, o que era uma oportunidade de aumentar substancialmente os seus orçamentos (Alexander, 2017). Destarte, táticas que seriam suicídio político em um condomínio de luxo de brancos, eram implantadas em comunidades de pretos e pardos pobres, onde não são nem dignas de notícia (De Barros, 2021).

A Guerra se intensifica e se sistematiza de maneira mais elaborada durante os governos de Ronald Reagan (1981-1989), que a atribuem contornos militarizados mais definidos. É cunhado o narcoterrorismo, com a acusação de que guerrilhas de esquerda estariam financiando suas atividades por meio do tráfico de drogas. Representa, desse modo, uma ameaça à segurança continental (Rodrigues, 2012).

Assim o sendo, em abril de 1986, Reagan edita o “National Security Decision Directive”. Usado para oficializar a tese das narcoguerrilhas, ele também considera o tráfico como um problema para todos que possuem atividade em seu território. Ademais, tem início a publicação de listas anuais de países que, segundo os próprios Estados Unidos, colaboram ou não com a política. As consequências para os que não a adotam? Sanções econômicas e reprimendas diplomáticas. Assim, a Guerra às Drogas foi coercivamente internacionalizada, e, em países como o Brasil, utilizada para reforçar políticas públicas de repressão aos grupos sociais empobrecidos e racializados (Rodrigues, 2012). 

A “policificação” das favelas brasileiras por meio da Guerra às Drogas

É nessa conjuntura que, no Brasil, a Guerra às Drogas tem sua incorporação legal, em 1971. No auge da ditadura militar, a Lei n. 5726, assinada por Médici, determina o processo pelo qual crimes de drogas devem passar e menciona que toda pessoa deve colaborar no combate ao tráfico e uso de drogas. Em 1990, Collor assina a Lei n. 8072, classificando o tráfico de drogas como crime hediondo, equiparando-o a crimes como a prática de tortura e o genocídio. Ou seja, tal delito se tornou “insuscetível de anistia, graça, indulto ou fiança, devendo a pena ser cumprida inicialmente em regime fechado” (De Barros, 2021, p. 517). Legislações como essas são o motor da superlotação carcerária.

Essa prática tem continuidade na Lei 11.343, assinada por Lula em 2006, a qual introduz penas alternativas, distinguindo entre “usuários” e “traficantes”. No entanto, não especifica que quantidades tipificam posse para uso pessoal ou tráfico. Essa imprecisão é o caminho perfeito para a perpetuação da seletividade penal, tendo em vista que essa diferenciação é feita por meio da subjetividade daquele que julga, o qual é atravessado pelo racismo e classicismo que permeiam as estruturas sociais brasileiras (De Barros, 2021).

Detentos mostram pano sujo de sangue no Carandiru, em outubro de 1992. Fonte: Marlene Bergamo / Folhapress

Em adição, surge a Lei Complementar 97 em 2010, que determina em seu art. 15 que também cabe às Forças Armadas a “manutenção da lei e ordem”. Assim, fica disposto que ações temporárias e circunscritas territorialmente ficam sob o resguardo de autoridades militares. Lula a assina em agosto de 2010, três meses antes das operações no Complexo de Favelas do Alemão, no Rio de Janeiro (Rodrigues, 2012).

A chamada Operação Arcanjo consolida a ocupação do Estado nesse Complexo, garantindo a entrada das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPS), o programa de segurança pública do estado do Rio de Janeiro voltado para a reconquista de favelas. Sua instalação inclui a permanência de postos da polícia militar e o policiamento comunitário. Esse discurso extremamente militarizado, com a inclusão não somente de palavras como “guerra”, como também “ocupação”, traduz a necropolítica da dominação colonial para a contemporaneidade (Rodrigues, 2012). 

Isso posto, a pacificação das favelas se mostra, em verdade, como uma “policificação”, conforme descrito por Penglase (2018). Na vida da comunidade, a atuação da polícia é uma interrupção súbita, um poder “anormalizante”.  No sentido contrário da propagação da paz, sua ação leva incerteza e insegurança, sendo em muitos casos mortal. Nesse particular, seus efeitos se manifestam não somente durante a invasão, mas reverberam na perda irrecuperável dos que morreram e no medo e na ansiedade acerca do questionamento de quando isso se repetirá.

Forças Armadas ocupam o Complexo do Alemão. Fonte: Agência Brasil / 2010

Por conseguinte, emerge um “sistema penal subterrâneo brasileiro”, conforme notado por Vera Regina Pereira de Andrade (2012). Trata-se de um sistema paralelo ao penal oficial, o qual adiciona uma pena privada às penas públicas de prisão e perda de liberdade de indivíduos mirados por sua classe e raça. Corpos pobres e pretos passam, desse modo, a serem interrompidos dentro de casa, crianças têm suas rotinas marcadas pelo horário em que os tiroteios acontecem. Essa ambiguidade quanto ao papel que o Estado exerce dentro das favelas é exposta por Djonga na música “CORRA” (2018): 

Eles são a resposta pra fome

Eles são o revólver que aponta

Vocês são a resposta porque tanto

Einstein no morro morre e não desponta

Vocês são o meu medo na noite

Vocês são mentira bem contada

Vocês são a porra do sistema que vê

Mãe sofrendo e faz virar piada, porra

Cadeia? Guarda o que o sistema não quis

Levando em conta todos os pontos supracitados, é notório como o Brasil utilizou-se da internacionalização da Guerra às Drogas para fortalecer a necropolítica dirigida aos corpos pretos e pobres. Sob os panos da pacificação, residem a aniquilação de todo um povo e uma guerra que é contra pessoas, não coisas. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021), mesmo com a pandemia, a letalidade policial atingiu um patamar recorde, com um total de 6.416 pessoas – contabilizadas – mortas em intervenções policiais, sendo que, dessas, 78,9% eram negras e 76,2% tinham entre 12 e 29 anos.

Seja como for, enquanto vidas pretas e pobres forem as ceifadas, não há motivo para chorar ou temer, afinal de contas isso representa somente mais um número em uma estatística, muitas vezes nem isso. Não se vive, pois não há direito sequer sobre a morte. Aos favelados restam somente duas opções: prisão ou vala (De Barros, 2021). Aos familiares, até mesmo a opção do luto é negada. Nessa realidade violenta onde os que vivem são, na verdade, sobreviventes, deixo a conclusão dessa coluna a cargo das palavras do Mano Brown (1997):

Cada sentença um motivo, uma história de lágrima

Sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio

Sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo 

Misture bem essa química

Pronto, eis um novo detento

Diário de um Detento, Sobrevivendo no Inferno

Referências

ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa.  Tradução de Pedro Davoglio. São Paulo: Boitempo, 2017. 

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Política criminal e crise do Sistema Penal: utopia  abolicionista e metodologia minimalista-garantista. In: BATISTA, V.M. (org.). Loïc  Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan,  2012, p. 281-306. 

DE BARROS, Matheus Guimarães. (Necro) política de drogas: uma guerra abjeta contra pobres e negros no Brasil. Mosaico, v. 13, n. 20, p. 504-524, 2021.

DJONGA, et al. CORRA. Nebula Records, Mar. 2018.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário brasileiro de segurança pública. São Paulo: FBSP, 2021.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975- 1976).  Tradução de Marina Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

Globo Repórter de 1992 sobre o Massacre do Carandiru. , 07 de março de 2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=M4FdwtyOBxY>

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Tradução de Renata Santini. 1. ed. 4. reimp. São Paulo: n-1 edições, 2019.

PENGLASE, Benjamin. Invadindo a favela: ecos das práticas policiais entre os pobres  urbanos no Brasil. In: GARRIOTT, W. (org.). Policiamento e governança  contemporânea: a antropologia da polícia na prática. Tradução de Daniela Ferreira  Araújo Silva. Campinas: Editora da Unicamp, 2018, p. 61-85. 

RACIONAIS MC’S. Diário de um Detento. Cosa Nostra, 1997.

RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico e militarização nas Américas: vício de guerra. Contexto Internacional, v. 34, p. 9-41, 2012.

Kaillany Azevedo Batista

Interessada em Memória Política, Gênero e Economia Política. Graduanda em Relações Internacionais na UFG e Assistente de Pesquisa no INCT-INEU. Tagarela, leitora voraz, maníaca por música, madrinha de gatos e tia das plantas.

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