Mulheres na República Democrática do Congo: as maiores vítimas do conflito

Mulheres na República Democrática do Congo: as maiores vítimas do conflito

Violência contra a mulher é um tema que tem ganhado visibilidade nas últimas décadas, principalmente no Ocidente com as ondas feministas e o avanço de leis centradas na igualdade salarial, combate ao assédio, entre outras políticas que tem melhorado o bem estar feminino no século XXI.  No entanto, do outro lado do mundo, mais precisamente na República Democrática do Congo, a maior parte das mulheres não têm sequer o direito de trabalhar ou de denunciar um caso de assédio que sofrem diariamente. Seus corpos são usados estrategicamente por milícias para perpetuar um conflito sem previsão de fim. 

Entenda o conflito do Congo 

A duradoura Guerra Civil na República Democrática do Congo ocorre na região dos Grandes Lagos, no território que tem como fronteira países como Ruanda, Uganda, Zâmbia, Angola, entre outros. As riquezas minerais do país foram exploradas por muitos anos, quando a Bélgica o mantinha como colônia no século XIX até o ano de 1959. Após o reconhecimento da independência, os conflitos internos marcados por rivalidade étnica, disputa por recursos naturais, intervenção de atores estrangeiros e as sequelas deixadas pela colonização, se desenvolveram e se potencializaram, gerando consequências devastadoras até os dias atuais. 

Fonte: Gloogle Maps

De acordo com Castellano (2012), a Primeira Guerra do Congo que teve início em 1996 e término em 1997, eclodiu por diversos motivos, incluindo o período pós-Guerra Fria, o genocídio de Ruanda em 1994, e o regime ditatorial que o ex-presidente Mobuto Seko exercia no país. Nessa ocasião, 200 mil mortos foram contabilizados. Em outras palavras, a divisão bipolar e a tensão geopolítica no mundo, os conflitos étnicos entre hutus e tutsis no vizinho fronteiriço e o governo antidemocrático exercido no imediato pós-independência, culminaram em severas consequências.

Ainda segundo Castellano (2012), entre 1998 e 2003 estima-se que mais de 3,8 milhões de pessoas foram mortas na Segunda Guerra do Congo. Também conhecida como a “Guerra Mundial Africana”, que tinha como motivos basilares, os conflitos anteriores não solucionados, a exploração dos recursos naturais por milícias e o surgimento de grupos rebeldes com alianças nos países vizinhos. 

As duas guerras evidenciam o quão antiga é essa problemática, cabendo também chamar atenção para as suas características, uma vez que não se trata de uma guerra entre partes estatais, mas sim um conflito com forte atuação civil. Atualmente o país vive uma situação crônica, não sendo estritamente considerado em estado de guerra, mas um conflito civil com milhares de vítimas anuais sem previsão de resolução. Nesse sentido, desde a década de noventa, a Organização das Nações Unidas (ONU) tem feito um trabalho de pacificação no território, com a maior e mais duradoura Missão de Paz da Organização, a MONUSCO, que conta com um orçamento anual de 1,4 milhões de euros (RDC: Protestos contra.., 2022). 

Onde estão as mulheres no meio do caos? 

Em situações de “paz” as mulheres já são violentadas, quando conflitos acontecem, a sociedade é posta em um cenário de desordem e discurso de ódio que escala a intensidade e frequência da violência contra elas. Ainda, quando essa sociedade é historicamente explorada e configurada em diferentes grupos étnicos que já têm históricos de rivalidade, como é o caso da configuração social da RDC, somando-se a ineficácia da atuação estatal como provedor da segurança para a população, as mulheres acabam sendo os maiores alvos da violência que o conflito pode proporcionar. 

Quando se observa os dados do  Rapport Conjoint (2018), o “Relatório Conjunto para a Revisão Periódica Universal do Conselho de Direitos do Homem na República Democrática do Congo”, em 2017, 64% dos casos de estupro foram cometidos por civis, e 36% por homens armados. Mais da metade das vítimas atendidas no hospital Panzi¹ foram estupradas por civis desconhecidos, que podem ser ex-soldados ou membros de grupos armados desmobilizados. Além disso, em 2017, o Relatório das Nações Unidas sobre Violência Sexual em Conflitos² constatou que os estupros cometidos pela Polícia Nacional do Congo aumentaram 109% em um ano. Tais dados recentes nos fazem lembrar que a guerra não acabou em 2003 como nos livros de história, mas que são um problema atual e cruel em pleno século XXI. 

Um dos conflitos mais persistentes e de difícil resolução dentro do Congo tem sido nas províncias de Kivu Norte e Kivu Sul, no leste do país, sendo este um dos principais terrenos onde ocorre o recrutamento de milícias, o tráfico de recursos naturais da região – alguns liderados por figuras políticas regionais -, e onde grupos rebeldes de oposição aos governos dos países fronteiriços – Burundi, Uganda e Ruanda – se encontram. 

A crise na região, tem ligação com o genocídio em Ruanda na década de 1990, quando a Frente Patriótica Ruandesa (FPR) realizou uma operação para neutralizar a Forces Armées Rwandaises (FAR) e as milícias ruandesas que tinham atuado no genocídio. Estes, por sua vez, estavam abrigados no leste do Congo (BIHUZO, 2012). Assim se iniciaram os choques responsáveis pela violência sexual de 4.689 meninas em 2011 e 7.075 em 2012 na região de Kivu, segundo as estatísticas recolhidas pelo ACNUR³ (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados). 

Ainda, discursos como o da Julienne Lusenge – mulher congolesa e Diretora do Fund for Congolese Women (Fundo para Mulheres Congolesas) -, realizado em 2015 no ”Debate aberto do Conselho de Segurança da ONU sobre Mulheres, Paz e Segurança”, exemplifica a violência que acontece na RDC. Ela relata:

No momento, mulheres de Rutshuru e Beni na província de Kivu do Norte da RDC são assassinadas, massacradas, têm suas gargantas cortadas ou estômagos abertos, são estupradas e sofrem violência sexual, são sequestradas e forçadas a se tornarem escravas sexuais. Posso até dar os números; mas uma mulher já é demais. Sonho com o dia em que não haverá mais armas que apoiem ​​a violência em meu país (ONU MULHERES, 2015).

Discursos como esse são uma pequena representação e uma tentativa de transparecer para o restante do mundo, a realidade vivida pelas mulheres congolesas. 

Existe esperança para essas mulheres?

Os esforços de Organizações como ONU Mulheres, Conselho de Segurança e diversas ONGs, são diários para cessar fogo e impedir que essa violência persista. Entretanto, mais do que pausar ou estagnar o conflito, é preciso tratar as causas sociais que o fizeram emergir, causas essas que têm raízes históricas e datam desde a época da colonização. Certamente a violência sofrida e a consequente luta das mulheres não é homogênea em todo o globo, e para essas então, enxergar no horizonte, a possibilidade de apenas existir sem ameaças a sua vida, é um sonho que as tem acompanhado e que esperamos um dia, se tornar realidade. 

 

Referências

[1] Fundado em 1999 pelo Doutor congolês e vencedor do Nobel da Paz em 2018, Denis Mukwege,  o objetivo do hospital é  fornecer apoio e assistência a mulheres sobreviventes da violência sexual. Situado Bukavu, o hospital já ajudou mais de 68 mil sobreviventes desde a sua criação e segue atuando no acolhimento das vítimas até os dias atuais. Disponível em: <https://panzifoundation.org>. Acesso em: 7 nov. 2022. 

[2] Nações Unidas, S/2018/250. Disponível em: <https://documents-dds ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N18/083/25/PDF/N1808325.pdf?OpenElement> Acesso em: 7 nov .2022. 

[3] “Estatísticas do ACNUR mostram aumento alarmante de violência sexual na RDC”. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/2013/07/30/estatisticas-do-acnur-mostram-aumento-alarmante-de-violencia-sexual-na-rdc/> Acesso em: 7 nov. 2022. 

CASTELLANO, da Silva, Igor. Congo, a Guerra Mundial Africana: Conflitos Armados, Construção do Estado e Alternativas para a Paz. 1.ed. Leitura XXI, 2012. 

RDC: Protestos contra missão de paz “podem constituir crime de guerra”, diz ONU.  Deutsche Welle. 28. jul. 2022. Disponível em: https://www.dw.com/pt-002/rdc-protestos-contra-missão-de-paz-podem-constituir-crime-de-guerra-diz-onu/a-62621690. Acesso em: 7 nov. 2022. 

RAPPORT CONJOINT en vue de l’Examen Périodique Universel du Conseil des Droits de l’Homme, République Démocratique du Congo « La voix des survivant.e.s de violences sexuelles en temps de conflit » 4 outubro 2018. Disponível em : https://www.mukwegefoundation.org/wp- content/uploads/2019/02/Rapport-conjoint-UPR-RDC-Violences-sexuelles-FINAL.pdf. Acesso em: 7 nov. 2022. 

ONU Mulheres. In the words of Julienne Lusenge: “Women are the first victims of war” in the Democratic Republic of the Congo. Disponível em: <https://www.unwomen.org/en/news/stories/2015/11/in-the-words-of-julienne-lusenge>. Acesso em: 7 nov. 2022. 

Juliana Brito

Graduanda em Relações Internacionais na PUC Minas com mobilidade internacional na Universidade de Lisboa. Tem interesse em Segurança Internacional, Direitos Humanos e debates de gênero em RI.

2 comentários sobre “Mulheres na República Democrática do Congo: as maiores vítimas do conflito

    1. Olá Ivani! Obrigada pelo comentário! Não temos foto especificamente dessas mulheres, mas fica como indicação, um documentário da Netflix que motivou a escrita desse texto. “City of Joy: Onde Vive a Esperança” mostra a história de mulheres do Congo que se recuperam e reconstroem a vida após tanta violência. Espero que goste 🙂

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *