ARTE AFRICANA, MUSEU EUROPEU: A DEVOLUÇÃO DOS ARTIGOS ROUBADOS DURANTE A COLONIZAÇÃO DA ÁFRICA

ARTE AFRICANA, MUSEU EUROPEU: A DEVOLUÇÃO DOS ARTIGOS ROUBADOS DURANTE A COLONIZAÇÃO DA ÁFRICA

A colonização europeia pelo mundo levou a dominação sobre povos originários em diferentes frentes: política, econômica e também cultural. Do ponto de vista cultural, além da imposição dos padrões europeus de arte, língua, organização social e etc, sabe-se que diversos artefatos importantes para povos originários foram roubados e levados pelos colonizadores. Até os dias atuais muitos desses objetos permanecem sob domínio europeu, ao mesmo tempo que muitos países pedem para que tais resquícios da colonialidade sejam desfeitos e as obras devolvidas para sua origem. 

O presente texto buscará explorar o aspecto cultural da colonização e a persistência da dominação europeia, também serão abordados alguns casos de devolução de artefatos africanos por países europeus.

A colonização europeia

O colonialismo se iniciou durante o século XIV e se caracteriza pelo movimento de dominação  através da exploração de territórios e povos originários, inicialmente realizado por países como Portugal e Espanha nos continentes americano na costa africana. A colonização vai além da ocupação territorial, é realizado o controle econômico, político e cultural sobre toda a região dominada (Relações Exteriores, 2024). Já o movimento conhecido por Imperialismo se desenvolveu nos continentes africano e asiático durante o século XIX, quando ocorreu a partilha da África e de outros territórios de acordo com interesses europeus (Lopes, 2021). 

O Imperialismo é entendido como a projeção desde um ponto central (o país europeu) com o objetivo de materializar um projeto de poder, enquanto o colonialismo também pode ser entendido como prática de poder imperial em territórios distantes. Pode-se entender que os dois fenômenos são mecanismos globais de poder que condicionam a organização social, política, cultural e econômica das sociedades, portanto as consequências desses processos que se iniciaram a séculos atrás, ainda podem ser sentidos (Lopes, 2021).

Todo o território africano, na configuração que se conhece hoje, foi desenhado conforme os países europeus desejaram, para cumprir com o objetivo de dominação sob os povos e os recursos ali presentes. Há uma discussão acadêmica quanto ao fator de consideração ou não de fatores domésticos para o desenho das divisões. Enquanto alguns argumentam que a busca pela exatidão e consideração de fatores naturais e políticos existiam, outros argumentam que muitos erros acontecem pela falta de conhecimento geográfico, utilizando critérios simples para divisão sem se debruçar sobre questões etnográficas. O ponto em comum é que a divisão não foi arbitrária (Lopes, 2021).

A presença europeia no continente africano ocorre desde o início das grandes navegações, em um primeiro momento se deu pela implementação de feitorias e missões religiosas na região costeira. Após a invasão ao continente Americano a relação comercial entre Europa e África se intensifica a partir do tráfico de africanos escravizados para atuar como mão de obra no “novo” continente que perdurou até o século XVIII (Lopes, 2021). Com o advento do capitalismo e a ineficiência do sistema escravista para o objetivo de gerar lucro e riquezas, as potências europeias passaram a abolir inicialmente a prática do tráfico, e posteriormente a apoiar o movimento abolicionista. 

As teorias pós-coloniais

No objetivo de não resumir o continente africano como um mero receptor da empreitada europeia e minimizá-lo à esse período histórico, atuando como um “personagem” na história dos europeus, cabe dizer que a resistência africana precede o estabelecimento do domínio direto sobre o território, e que perdurou de modo que a ocupação não se deu de maneira pacífica. Antes de se estabelecer como colonizador, as potências europeias projetaram seu poder sobre o continente de forma indireta, a partir do estabelecimento de protetorados. 

É a partir de 1870 diante da crescente disputa entre os países europeus que o cenário muda e as potências começam a estabelecer o controle direto. A Conferência de Berlim, evento organizado pelo chanceler alemão, Bismarck, teve o objetivo de fornecer parâmetros legais para a ocupação europeia da África. Isso buscava assegurar que a soberania das potências fosse respeitada, ao passo que a soberania africana não era considerada pois era vista como “terra de ninguém”, além de a população ser vista como selvagem, e, portanto, passível de dominação, mesmo que por meio de guerra (Lopes, 2021). 

A ocupação efetiva se inaugura a partir de 1900 e desde o início existia o discurso paternalista de que a ocupação serviria como uma ferramenta para tutorar povos não desenvolvidos, ademais, existia a justificativa da superioridade cultural e moral dos europeus atrelada à sua “missão civilizatória” (Lopes, 2021). 

Ao final do século XX o pós-colonialismo surge como um conjunto de contribuições teóricas de crítica ao colonialismo em busca de romper com a história única que naturalizou a dominação através do viés de civilização de povos racialmente inferiores. Por se tratar de uma corrente teórica, existem diversos autores e diferentes enfoques, como Homi Bhabha, um dos precursores do movimento, lança luz sobre o processo de descolonização. Outras abordagens analisam tanto o processo de instalação e continuidade da colonização, como também a persistência dos traços coloniais mesmo com o fim formal desse sistema, a chamada colonialidade (Pezzodipane, 2013).

Quijano é o autor que inaugura o termo colonialidade e o descreve como a perpetuação das relações de poder caracterizadas dentro do sistema colonial, entre os países europeus e suas antigas colônias (Quijano, 1992). A ideia das teorias decoloniais é explicitar a relação de subordinação que não cessa com os processos de descolonização. A relação de poder se perpetua por meio das estruturas. Para além dos efeitos relacionados à dependência econômica e instabilidade política, o presente texto aborda um tópico específico dos efeitos da colonização sobre a cultura, o roubo de artefatos. 

Esse tema é muito relevante porque trata da desapropriação de artefatos que possuem um valor cultural grande para as comunidades que os produziram. Além de se tratar de um aspecto claro de subordinação e do poder europeu sobre a narrativa da história dos povos colonizados, ainda nos dias atuais as antigas metrópoles continuam lucrando em cima de riquezas africanas.

1. Os bronzes de Benin

Fonte: The British Museum

São placas que adornavam o palácio de Ovonramwen Nogbaisi, localizado no território onde hoje é a Nigéria. Em uma expedição britânica esse e mais outros itens foram saqueados pelo império Britânico por volta de 1897. O processo de devolução dos tesouros ainda está em andamento, algumas peças foram devolvidas pela Alemanha (DW Brasil, 2022). 

A Inglaterra possui a maior coleção dos bronzes e o processo de devolução ainda está em andamento, tendo encontrado entraves relacionados à repatriação, se deveria ocorrer por meio do governo, ou da família real (DW Brasil, 2022).

2. O busto de Nefertiti

Fonte: Staatliche Museen zu Berlin / Achim Kleuker

A expropriação do busto aconteceu quando o Egito ainda era uma colônia britânica. As escavações foram feitas com autorização da colônia com a condição de que parte dos objetos encontrados permanecessem em solo egípcio. A representatividade dos interesses egípcios no Departamento de Antiguidades (que estabeleceu o acordo) e o cumprimento correto do acordo são pontos questionados ainda hoje (DW Brasil, 2024). 

Nefertiti é uma figura de extrema importância para a história egípcia e está fora de seu país desde 1913 quando foi encaminhada para Berlim. A mais de um século o pedido de devolução é feito, mas o interesse do público em visitar o artefato impediu que ela se realizasse ainda no século passado.  A cultura alemã acabou por tratar a imagem como um símbolo nacional. Atualmente o egípcio não possui nenhum processo em andamento que peça a restituição do artefato (DW Brasil, 2024). 

3. Pedra de Roseta

Fonte: Universal History Archive, Uig, Bridgeman Images

Artefato também egípcio esse fragmento de rocha possui um texto encravado que ajudou na compreensão dos hieróglifos do antigo Egito. O texto trata de um decreto de clérigos em 196 a.C. Foi descoberta pelos europeus em 1799 por soldados de Napoleão. Com a derrota do francês os britânicos ficaram com a rocha, sendo doada pelo rei George III ao Museu Britânico (Lime, 2018). 

4. Rainha de Bangwa e Deusa-mãe Ngonnso

Fontes:  Dapper Foundation e taatliche Museen zu Berlin/Ethnologisches Museum

Existem dois casos de esculturas camaronesas sagradas que são reivindicadas. A Rainha de Bangwa é uma estatueta de madeira, símbolo de poder e saúde para o povo Bangwa, em Camarões, foi roubada em 1899 pelo administrador colonial alemão Gustav Conrau. Por um tempo a peça ficou em museu alemão foi vendida para ingleses e atualmente se encontra em museu francês (atualmente fechado por falta de público e altos custos de manutenção). Para o retorno da obra é necessária alteração da legislação francesa (Lime, 2018). 

A estatueta de Ngonnso cujo papel é central para os Nso (reino no noroeste de Camarões), ela é considerada uma divindade-mãe e desde que foi levada o povo afirma estar vivendo infortúnios. O artefato foi roubado por Kurt von Pavel, um oficial da colonização, e foi doada ao Museu Etnológico de Berlim em 1903 (DW Brasil, 2022) .

5. Tesouros de Magdala

Fonte: Victoria and Albert Museum

Estes artefatos incluem uma coroa de ouro do século 18 e um vestido de casamento roubados do imperador de Magdala, Tewodros II, território onde hoje é a Etiópia, pelo Exército Britânico em 1808. Parte dos tesouros foram direcionados para o Museu Victoria and Albert, em Londres (Lime, 2018). 

A devolução é exigida pela Etiópia desde 2007, porém apenas em 2018  o museu britânico concordou em “devolver” as peças com o caráter de empréstimo, ou seja, elas não voltaram a pertencer à sua origem de fato (Lime, 2018).

Considerações Finais

Os casos anteriormente apresentados ilustram apenas algumas das inúmeras situações em que países africanos exigem a devolução de artefatos que foram levados de seu território no período colonial. A demora ou não reconhecimento da real posse desses objetos representa um traço remanescente do colonialismo nos dias atuais, em que novamente os povos colonizados são destituídos de seu direito sobre sua própria história.

O governo francês de Macron encomendou um relatório oficial em 2018 a dois especialistas que defendem a devolução de obras que foram incorporadas a coleções francesas de forma irregular. Os redatores foram Bénédicte Savoy e Felwine Sarr, uma historiadora francesa e um economista francês. Ambos defendem que a França acate as solicitações de devolução quando comprovada a aquisição por espoliação. É destacado também dos 90 mil objetos da África subsaariana que estão em museus europeus, 70 mil estão no Museu do Quai Branly, em Paris (Vicente, 2018). 

O discurso da universalidade da história e importância dos objetos para todos os povos é resgatado por historiadores para defender a permanência desses objetos no continente europeu. Dessa forma, os povos colonizadores exercem sua dominação para além da colonização, mas a perpetuam ao tomar posse da narrativa principal e ditar como a história deve ser contada (Gbadamosi, 2021). Outro discurso que é utilizado para defender a permanência desses objetos fora de seu local de origem é a suposta inabilidade para preservação das próprias obras. Isso é apontado por Felwine Sarr como uma generalização a partir de casos isolados, além de as diversas obras que desaparecem de museus europeus não levarem automaticamente a uma dúvida quanto sua capacidade de cuidá-las (Vicente, 2018).

O historiador nigeriano Max Siollun diz que a narrativa histórica, em sua maior parte, contada pelos ocidentais, apresenta falhas e negligências acerca de uma história que é muito mais rica. Ele aponta para o perigo de confiar na história do vencedor, porque ela sempre vai refletir os próprios interesses (Gbadamosi, 2021). 

Referências

BBC. Museu de Londres vai devolver 72 objetos saqueados da Nigéria no século 19. 8 ago. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62469011. Acesso em 14 nov. 2024.

DW Brasil. Alemanha começa a devolver Bronzes de Benim à Nigéria. 29 jun. 2022. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/alemanha-come%C3%A7a-a-devolver-bronzes-de-benim-%C3%A0-nig%C3%A9ria/a-62307717. Acesso em: 14 nov. 2024.

DW Brasil. Por que a Alemanha não devolve o busto de Nefertiti para o Egito. Youtube. 24 jun. 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=teP5EDyikUI. Acesso em 14 nov. 2024.

GBADAMOSI, Nosmot. Stealing Africa: How Britain looted the continent ‘s art. 12 out. 2021. Disponível em: https://www.aljazeera.com/features/2021/10/12/stealing-africa-how-britain-looted-the-continents-art. Acesso em 14 nov. 2024. 

LIME, Ashley. Os tesouros ‘roubados’ da África que foram parar em museus da Europa e dos EUA. 25 nov. 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-46335947. Acesso em 14 nov. 2024.  

LOPES, Pedro. A experiência colonial na África à luz dos estudos Pós-Coloniais. 29 jun. 2021. Disponível em: https://relacoesexteriores.com.br/pos-colonialismo-africa/. Acesso em 19 set. 2021.

PEZZODIPANE, Rosane V. Pós-colonial: a ruptura com a história única. jun. 2013. Simbiótica, Ufes, v.ún., n.3. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/simbiotica/article/view/5494/4012. Acesso em 14 nov. 2024

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad Y Modernidad/Racionalidad. 1992. Disponível em: https://www.lavaca.org/wp-content/uploads/2016/04/quijano.pdf. Acesso em: 14 nov. 2024.

RELAÇÕES Exteriores. Glossário: Colonialismo. [s.d]. Disponível em: https://relacoesexteriores.com.br/glossario/colonialismo/. Acesso em: 14 nov. 2024.

VICENTE, Álex. Devolução dos tesouros africanos coloca em alerta os museus etnográficos. 18 dez. 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/14/cultura/1544801008_489541.html. Acesso em: 14 nov. 2024.

Jéssica Felix Nascimento de Souza

Graduada em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia e co-fundadora do GEOM (Grupo de Estudos em Oriente Médio). Me interesso por temas que envolvam abordagens decoloniais e também a região do Oriente Médio e Guerra Civil, por isso meu tema de pesquisa é a Guerra Civil no Iêmen.

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