A GUERRA DO DESERTO: A LÍBIA E O CONFLITO COM O CHADE

A GUERRA DO DESERTO: A LÍBIA E O CONFLITO COM O CHADE

O texto de hoje é sobre uma guerra desconhecida no Norte da África. Trata-se de um país com uma história cultural riquíssima, lar de grandes impérios, como o Kanem e o Bornu. Estou me referindo, como você já viu no título, ao Chade. Não sabe aonde fica? Está localizado no centro da África, ao sul da Líbia. É um país imenso, figurando na posição de 21º maior país em território do mundo, com tamanho próximo aos nossos vizinhos Colômbia e Peru. O Chade é um país sem fronteiras marítimas, preso dentro do continente (CIA, 2020). O clima é tropical ao sul e desértico ao norte. A população é concentrada na parte sudoeste do país, próxima ao Lago Chade, lago este, inclusive, que abastece hidricamente 20 milhões de pessoas no Chade, Camarões, Níger e Nigéria.

Figura 1 – Mapa do Chade na África

Fonte: Encyclopædia Britannica, Inc.

Mas bem, antes de tratarmos da Guerra, é necessário entender um pouco melhor o contexto internacional que levou até ela. Como já foi dito, o Chade foi lar de grandes e ricos impérios por mais de um milênio. Porém, em 1920 a França coloniza a região, aderindo-a à África Equatorial Francesa. O país conquista sua independência dos colonizadores em 1960, além de entrar numa guerra civil no mesmo ano que só teria fim em 1990. O professor Mario J. Azevedo (1998), membro do Departamento de Estudos Africanos e Afro-Americanos da Universidade da Carolina do Norte e PhD em História Africana pela Universidade de Duke,  afirma que em 1960, após independência, o país finalmente era administrado por Tombalbaye, um chadiano, e mantinha boas relações com os vizinhos, inclusive com a família real líbia  ao norte. Porém, a política regional muda drasticamente com o golpe orquestrado por Muammar al-Gaddafi.

O Chade torna-se independente em 1960 e vive uma guerra civil. A Líbia é comandada por Gaddafi a partir de 1969. Acontece que, mesmo as relações entre o Chade e a Líbia não serem das melhores antes do golpe de Gaddafi, elas pioraram muito durante o seu governo (que porventura só veio a cair em 2011). O novo governante líbio apoiava o movimento Fronte de Libertação Nacional do Chade (FROLINAT), que defendia a independência do norte do Chade. Portanto, você já nota que há um possível conflito aqui: Chade vs FROLINAT (este último apoiado pelos líbios).

Após ameaças crescentes de ambos os lados (os chadienses sugerindo apoio à deposta família real líbia e Gaddafi apoiando o FROLINAT), houve, por fim, um acordo de paz entre as duas nações africanas: em 1972 é assinado um acordo de paz mediado pelo presidente do vizinho Níger. A partir de agora haverá paz, finalmente? Muitos acreditavam que sim! O Chade rompeu relações diplomáticas com Israel[1] e a Líbia emprestou US$ 920 milhões ao Chade em sinal de boa fé (AZEVEDO, 1998). Porém, meses após a assinatura do tratado de paz, a Líbia avança militarmente e invade o norte do Chade, o que é interpretado como o início da Guerra do Deserto: a anexação da Faixa de Aouzou.

Figura 2 – Mapa da Faixa de Aouzou

Fonte: Wikipédia

Inicia-se a guerra!  A Faixa de Aouzou é uma área no norte do Chade que está inserido em 100 quilômetros de largura e mais 60 quilômetros adentro do país. Porém, por qual motivo a Líbia quer este território? Controle de solo rico em urânio e outros minérios; manter a França longe afastada da região; uso do território chadiano para manter bases militares líbias são as principais razões. Em 1978 temos outro acordo, desta vez um cessar-fogo, o que fez com que o governo de N’djamena (capital chadiana) reconhecesse o grupo independentista FROLINAT. Em 1979 sobe ao poder no Chade Gukuni Wedei, personagem histórico muito mais favorável aos líbios. Numa tentativa de fortalecer sua posição na presidência do país, em junho de 1980 Gukuni negociou um novo acordo chamado Tratado de Amizade e Cooperação com a Líbia. (AZEVEDO, 1998).

Com isso, temos agora uma situação inusitada: o Chade, que teve seu território dominado pela Líbia por oito anos, assinou um acordo que levou tropas do país invasor para os arredores de sua capital. 4.000 Soldados líbios saíram de Maidugurui, na Nigéria, em direção ao Chade em dezembro de 1980. Em janeiro de 1981 um outro tratado bilateral surpreendente é assinado: a Líbia e o Chade formariam uma só República Islâmica.  Porém, por motivos não muito claros, o tratado em questão nunca foi posto em prática.

A grande virada. Como mostrado acima, a cooperação entre Muammar Gaddafi e Gukuni era imensa, mas há uma reviravolta nesta parceria tão intensa. Dois comandantes militares chadienses foram enviados à Líbia e foram mortos por dissidentes. Era um recado claro: não abandone o acordo com a Líbia. Com uma insatisfação crescente com Gaddafi, o presidente Gukuni decide se virar contra os líbios. As forças da Líbia saem da capital N’djamena em novembro de 1981, substituídas pelas Forças Intra-Africanas da finada Organização da Unidade Africana (OUA)[2]. Agora avançamos para o ano de 1986. A Líbia ainda ocupa a Faixa de Aouzou, e faz uma investida cruzando a Red Line, delimitação terrestre feita pela França para conter o avanço tanto do Chade quanto da Líbia em território alheio. Porém, mesmo com uma superioridade militar, a Líbia perde o conflito.

Como uma nação superior militarmente, com mais armamentos, pessoal e treinamento perde para uma nação mais fraca? Esta pergunta é feita por diversos acadêmicos, militares e civis em geral. Azevedo (1998) cita alguns dos principais motivos:

  •   A Líbia não conhecia o terreno;
  •   Baixa moral dos mercenários contratados pela Líbia – não havia um porquê de lutar; cenário oposto às tropas chadienses, que tinha moral alta e comandantes determinados;
  •   Insatisfação doméstica na Líbia;
  •   Bombardeio estadunidense à Benghazi e Trípoli em abril de 1986;
  •   Equipamento pesado do exército líbio, o que deixou as tropas mais lentas;

Com isto, o Chade detém o avanço ainda mais profundo dos líbios em seu território, mas a origem de toda a guerra, a Faixa de Aouzou, ainda era ocupada. Tudo muda com a ascensão ao poder, via golpe de estado, de Idris Deby. O ditador que está no poder até os dias de hoje, meados de 2020, alcançou na época em que assumiu a presidência chadiana, acordos de paz com a Líbia. E então, estes novos acordos eram sinônimo de Paz Negativa [3] (GALTUNG, 1996) como os acordos assinados por Gukuni? Ou seriam, finalmente, um primeiro passo para a Paz Positiva? Para saber, precisamos entender o que ocorreu depois de 1990.

Os dois países tentaram chegar numa negociação bilateral, mas não deu certo. Portanto, em setembro de 1990 ambos concordaram em submeter a disputa territorial à Corte Internacional de Justiça (CIJ). Em 1994 a CIJ chega à conclusão final: a Líbia deve remover sua administração e suas forças militares da Faixa de Aouzou. Em abril de 1994 uma comissão com 25 militares líbios e 25 militares chadianos fiscalizaram a remoção das tropas da Líbia, o que ocorreu em maio do mesmo ano. Em abril de 1994 o Secretário-Geral da ONU sugeriu que o Conselho de Segurança criasse o Grupo de Observação da Faixa de Aouzou das Nações Unidas (UNASOG, na sigla em inglês), que foi fundado com a resolução 915 do Conselho de Segurança da ONU. Após negociações e atuação dos grupos de ação conjunta. Como diz o documento da UNASOG:

No dia 30 de maio de 1994, os governos do Chade e da Líbia assinaram uma Declaração Conjunta. De acordo com a Declaração, a retirada da administração líbia e de seu exército da Faixa de Aouzou foi realizada com satisfação por ambas as partes e monitoradas pela UNASOG. O Observador Militar da UNASOG assinou a Declaração como testemunha [4].

A guerra, por fim, acaba! O território chadiano retorna para o governo central do Chade, em N’djamena. A guerra civil acaba pouco antes, em 1990. As relações diplomáticas líbias-chadienses melhoraram após a boa fé no julgamento realizado pela CIJ com sugestão/mediação da ONU. Infelizmente, não podemos afirmar que a guerra era a principal fonte de instabilidade do país. Mesmo vinte seis anos após seu fim, o país não está numa situação tão melhor que na década de 1970 e 1980. Em documento do ano passado, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2019) apontava o Chade como o 187º país num ranking de 189 países no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), com pontuação de 0,401. A expectativa de vida em 2018 era de apenas 54 anos. O país também vive sob o mesmo governo de Idris desde 1990. Em 2018, via reforma institucional, removeu o cargo de Primeiro-Ministro, figurando agora como Chefe de Estado e Chefe de Governo, de facto e de juri. Infelizmente o fim da Guerra não significou o fim da pobreza extrema na qual vive o país.

BÔNUS – CURIOSIDADE

Apenas dois países no mundo transferiram suas embaixadas de Tel Aviv para Jerusalém: os Estados Unidos e a Guatemala, ambos em maio de 2018. Há outros poucos países no mundo que cogitam a transferência: Kosovo, Sérvia, Honduras, etc.. Porém, o governo do Chade quer mudar isto e tornar-se o primeiro país da África a reconhecer Jerusalém como capital israelense, e já cogita transferir sua capital de Tel Aviv. No dia 8 desetembro de 2020 uma missão chadiense desembarcou em Israel. O líder da missão é o filho do atual ditador, Abdelkerim Idris Deby, que se encontrou com o Primeiro-Ministro israelense Benjamin Netanyahu. O Chade buscou melhorar suas relações com os israelenses, afim de conseguir acesso à compra de material bélico; inteligência em segurança; além de técnicas de utilização de água e manejo agrícola (visto que ambos os países têm climas secos). Israel tenta fortalecer a imagem de que é possível ter boas relações com países de maioria muçulmana. Para ler mais a respeito, leia a matéria no jornal The Jerusalem Post (HARKOV, 2020).

NOTAS

[1] Este fator é importante por causa das crenças defendidas por Gaddafi: um ávido defensor do Pan-Arabismo e Pan-Islamismo, uma corrente de pensamento nas Relações Internacionais que advoga pelas relações mais íntimas entre as Nações de maioria islâmica. É válido lembrar que até este momento, só havia um país islâmico e/ou árabe no mundo com relações diplomáticas com Israel: o Egito, que regularizou suas relações com Israel em 1969. Desde então, só a Jordânia e Emirados Árabes Unidos regularizaram suas relações com os israelenses, em 1994 e 2020, respectivamente. Para entender melhor, ler Baker (2020).

[2] Para entender mais sobre a OUA e questões sobre a integração africana, leia a entrevista exclusiva do Dois Níveis com o Embaixador da Etiópia no Brasil.

[3] De forma resumida, a Paz Negativa de Johan Galtung afirma que é a situação na qual uma região vive com ausência de violência, na qual nem sempre é uma situação realizada por vias pacíficas. Ou seja, a Paz Negativa pode ser alcançada via guerra. Já a Paz Positiva é uma situação que não basta a ausência de violência, mas também é preciso cooperação em relacionamentos externos.

[4] No original: “On 30 May 1994, the Governments of Chad and of the Libyan Arab Jamahiriya, signed a Joint Declaration. According to the Declaration, the withdrawal of the Libyan administration and forces from the Aouzou Strip had been effected to the satisfaction of both parties and monitored by UNASOG. The Chief Military Observer of UNASOG signed the Declaration as a witness”.

 

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Mario. Foreign Involvement and the Escalation of Violence in Chad. Em: AZEVEDO, Mario. Roots of Violence: A History of War in Chad. Londres e Nova Iorque: Gordon and Breach Publishers, 1998. P. 98-119.

BAKER, Peter. Israel assina acordo histórico com Emirados Árabes Unidos e suspende anexação da Cisjordânia. Estadão. Disponível em: <https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,trump-diz-que-israel-vai-renunciar-a-plano-de-anexar-cisjordania,70003398208>. Acesso em: 07 de setembro de 2020.

CIA. The World Factbook – Chad. Disponível em: <https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/cd.html#imageModal3942>. Acesso em: 05 de setembro de 2020.

GALTUNG, Johan. Peace by Peaceful Means: Peace and Conflict, Development and Civilization. Oslo: Sage Publications, 1996.

HARKOV, Lahav. Chad considering embassy in Jerusalem. The Jerusalem Post. Disponível em: <https://m.jpost.com/israel-news/chad-considering-embassy-in-jerusalem-641526/amp>. Acesso em: 09 de setembro de 2020.

ONU. Aouzou Strip Background. Disponível em: < https://peacekeeping.un.org/sites/default/files/past/unasogB.htm>. Acesso em 06 de setembro de 2020.

PNUD. Inequalities in Human Development in the 21st Century: Briefing Notes for Countries on the 2019 Human Development Report – Chad. Disponível em: < http://hdr.undp.org/sites/all/themes/hdr_theme/country-notes/TCD.pdf >. Acesso em: 07 de setembro de 2020.

Gustavo Milhomem

Graduado em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Goiás. Idealizador do Dois Níveis.

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