A instauração da ordem mundial estadunidense

A instauração da ordem mundial estadunidense

Os Estados Unidos, sem sombras de dúvidas, conseguiram se estabelecer como a maior potência mundial no pós-Guerra Fria, testemunhando um mundo de fato sem Estados capazes de competirem com seu poderio militar e econômico, consolidando, assim, a sua hegemonia – um sistema internacional unipolar. Como afirma Ikenberry (2005), o sistema estadunidense é organizado em instituições, parcerias e regras, em uma hegemonia liberal, onde as democracias vivem em uma comunidade de segurança. Assim, essa ordem mundial não é baseada no autoritarismo, mas em uma ordem liberal-democrática liderada pelos Estados Unidos. Para entender como os estadunidenses conseguiram estabelecer as regras do jogo das relações internacionais é importante voltar no tempo e analisar quais foram as hegemonias capitalistas do passado.

Hegemonias capitalistas do passado

A consolidação do sistema moderno de governo deu-se pela instabilidade do sistema medieval a partir do século XV, e o caos sistêmico instaurado na Europa levou a uma nova ordem o sistema interestatal europeu. De acordo com Arrighi (1996), o aspecto crucial para a desolação do sistema medieval e para a formação e o estabelecimento do sistema moderno de Estados foi a oposição constante entre as lógicas capitalistas e territorialistas do poder.

Dessa forma, as Províncias Unidas – capitalistas – garantiram sua posição hegemônica na Europa através do caos sistêmico que implodiu o sistema europeu, pela derrocada do modelo medieval de Estado defendido principalmente pela Espanha. A escalada sistêmica do conflito social, dos conflitos armados entre os governantes, da luta ideológica e o agravamento da crise de subsistência pela desarticulação do comércio foram as principais causas para o surgimento do sistema moderno de governo pela liderança dos holandeses (ARRIGHI, 1996).

Com isso, as Províncias Unidas se tornaram hegemônicas por liderarem a reorganização do novo sistema mundial de Estados – através do Tratado de Vestfália – e garantirem o capitalismo como modo de governo global (ARRIGHI, 1996). Assim, os holandeses superaram seus semelhantes italianos no que diz respeito à forma como lidavam com o comércio, política e relações interestatais, através do modelo capitalista. As Províncias foram menos capitalistas em relação às cidades-Estados italianas, e, dessa forma, conseguiram participar de maneira mais efetiva da dinâmica internacional do sistema e se tornarem hegemônicas quando a forma moderna de governo alcançou a maioria dos Estados (ARRIGHI, 1996).

Após isso, a hegemonia holandesa foi curta, e o sistema que haviam criado logo teria outro ator hegemônico para moldá-lo a seu interesse. Com isso, a Inglaterra entrou no negócio de expansão territorial pela subjugação de atores extra-europeus. Entretanto, os ingleses e franceses não conseguiram superar o poder bélico dos Estados já consolidados no negócio de expansão territorial, como os portugueses, espanhóis e holandeses.

Assim, os britânicos tiveram que equipararem-se aos holandeses pela sua frota mercante que os garantia controle do comércio mundial. Para isso, de acordo com Arrighi (1996), os ingleses tiveram sucesso por conta de três fatores: a colonização direta, a escravatura capitalista e o nacionalismo econômico. Dessa maneira, a gestão do Estado e da guerra bem-sucedida, juntamente com o estabelecimento de colônias permanentes, deram riqueza para a Inglaterra ser capaz de criar uma marinha forte que logo conquistaria a supremacia dos mares.

O imperialismo do livre comércio praticado pela Inglaterra logo a tornou o principal ator hegemônico do sistema internacional. Com isso, a acumulação de capital pelo país fez com que os ingleses construíssem um império, tornando as estratégias de governos de outros Estados, para a acumulação de capital, obsoletas (ARRIGHI, 1996).

O Reino Unido manteve-se como hegemônico no sistema internacional até o século XIX, quando a Alemanha e os Estados Unidos emergiram como potências mundiais, fato que enfraqueceu o poder britânico sobre o sistema de Estados. A luta pela liderança mundial começou quando esses dois atores emergentes tentaram superar a vantagem comparativa em termos de riqueza e poder do Reino Unido. Dessa maneira, os Estados Unidos conseguiram construir um centro comercial fora da influência europeia, e a partir dos conflitos que se sucederam na Europa, em especial as duas Guerras Mundiais, os EUA já haviam trilhado um caminho para se tornarem a principal potência econômica.

A ordem dos estadunidenses

O caos sistêmico que se instaurou na Europa no século XX deu a chance para que os Estados Unidos estabelecessem uma nova ordem mundial pela restauração das normas vestfalianas. De acordo com Arrighi (1996), os processos sociais e as guerras travadas entre os governantes imperialistas e reacionários criaram um caos sistêmico que permitiu aos EUA conduzirem o sistema interestatal à restauração dos princípios e regras do Sistema de Vestfália, e, depois, reformular e governar o novo sistema estabelecido.

Dessa maneira, os Estados Unidos construíram seu sistema internacional utilizando duas principais estratégias. A primeira foi manter o balanço de poder no pós-Segunda Guerra. O declínio do Império Britânico e uma Europa desolada não poderiam conter o avanço da influência soviética. Assim, os estadunidenses se levantaram para contrabalancear a balança e impedir com que a União Soviética expandisse sua hegemonia. A aliança OTAN e Estados Unidos-Japão foi a principal parceria que conteria os soviéticos. A segunda foi a reorganização da ordem mundial pela institucionalização das relações políticas entre os Estados e integrá-las em um mercado. Com isso, princípios como: livre mercado, democracia e multilateralismo caminharam de mãos dadas. O principal resultado dessa estratégia liberal foi a criação dos acordos de Bretton Woods, GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio), OMC (Organização Mundial do Comércio), NAFTA (Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio),  APEC (Cooperação Econômica Ásia-Pacífico) e da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) (IKENBERRY, 2005).

Dessarte, a nova ordem mundial foi caracterizada principalmente pelo fim do exclusivismo de acumulação de capital, bem como pela limitação da pretensão dos Estados em atingir seus objetivos por meio da guerra. Assim, pela primeira vez na história, houve uma institucionalização concreta da ideia de um governo mundial através da criação da ONU. Além disso, a emergência do sistema de livre iniciativa, livre das restrições impostas pelo exclusivismo territorial, foi o resultado mais característico da hegemonia dos EUA (ARRIGHI, 1996).

Os Estados Unidos criaram um sistema onde as democracias liberais poderiam prosperar. Como disse Paul Johnson, a ordem liberal estadunidense foi o período quando o crescimento econômico foi o mais rápido e prolongado da história mundial. Entretanto, essa nova ordem não era somente sobre expansão econômica, mas também sobre segurança. As democracias liberais se beneficiaram da contenção contra ameaças à segurança de suas soberanias (IKENBERRY, 2018).

O plano dos EUA aparentava estar em um patamar de cooperação e paz nunca antes visto. Todavia, a hegemonia estadunidense fora construída somente para agradar as ditas democracias liberais. A maior parte do mundo não participaria dos benefícios dessa nova ordem mundial, mas serviria de combustível para fazer esse motor funcionar. A imagem do Ocidente como padrão civilizatório seria reforçado a partir desse novo sistema internacional, e todas as outras formas de governo e culturas seriam rechaçadas e ignoradas. Enquanto os ocidentais se aproveitaram de sua estabilidade e iludidos de que o mundo estaria, assim, pacífico, os outros continentes ainda estavam lutando contra as crises político-econômicas causadas pelos antigos ciclos de hegemonia europeia.

Um novo ator na disputa?

Um quarto ciclo do capitalismo poderia surgir pela liderança dos chineses? Como é evidente, os estadunidenses estão perdendo fôlego, e a China a cada ano enriquecendo e dominando mercados que antes eram de influência exclusiva dos EUA. Além disso, o PIB chinês é o segundo maior do mundo, e a China se tornou o principal parceiro comercial de vários países, os quais tinham os Estados Unidos como o principal. Entretanto, a partir de uma análise histórica, os atores hegemônicos do capitalismo – as Províncias Unidas, o Reino Unidos e os Estados Unidos – apenas alcançaram seu status de principal potência do sistema capitalista pelos caos sistêmicos que se instauraram durante a história.

Logo, o estabelecimento de uma nova ordem mundial pelo modelo econômico chinês só poderia ser implantada por uma mudança brusca das relações interestatais, quando, como no passado, os atores hegemônicos conseguiram criar um interesse geral por uma mudança nas relações internacionais.

Referências

ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: poder, dinheiro e as origens do nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora UNESP, 1996.

IKENBERRY, G. John. Power and liberal order: America’s postwar world order in transition. International Relations of the Asia-Pacific [Online], 2005, v 5, p. 133–152. Disponível em: https://scholar.princeton.edu/sites/default/files/gji3/files/power_and_liberal_order.pdf. Acesso em: 12 jul. 2022.

IKENBERRY, G. John. The end of liberal international order? International Affairs: 2018.

NINKOVICH, Paul. The global republic: America’s inadvertent rise to world power. Chicago: University of Chicago Press, 2014.

Gabriel Moncada Xavier

Estudante de Relações Internacionais e experiente em simulações da ONU. Sou curioso e quero olhar para o mundo com todas as lentes possíveis. Gosto de diplomacia, política externa, organizações internacionais e Direitos Humanos.

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