CRIMES CIBERNÉTICOS E O TRATADO INTERNACIONAL DE BUDAPESTE

CRIMES CIBERNÉTICOS E O TRATADO INTERNACIONAL DE BUDAPESTE

A conectividade trouxe profundas mudanças na vida social e política a nível global. O uso de equipamentos eletrônicos conectados à internet fez com que as distâncias do mundo fossem reduzidas drasticamente. Isso porque a rede interliga todos, ao mesmo tempo, em qualquer região. Contudo, o que foi criado em busca de avanços e benefícios, também vem sendo utilizado para fazer o mal, isso ocorre quando pessoas se utilizam desse meio para praticarem diversas modalidades de delitos. 

A rede mundial de computadores tem sido igualmente utilizada para vigiar e atacar adversários, bem como cometer danos e crimes de diversas espécies. Ou seja, ao mesmo tempo em que a rede trouxe liberdade aos usuários do ciberespaço, também deu origem às ameaças contra os mesmos usuários. Esses delitos praticados por intermédio da internet são classificados como crimes cibernéticos.

Quanto maior o avanço da tecnologia mundial e da conectividade global, maior a preocupação com a regulamentação jurídica que visa a  proteção dos cidadãos, empresas e mesmo governos contra os criminosos que exploram as tecnologias modernas. Nesse sentido, em 23 de novembro de 2001, foi firmada a Convenção de Budapeste sobre o Cibercrime, cujo preâmbulo ressalta a preocupação com o uso das redes e informações eletrônicas e expõe a necessidade de cooperação entre os Estados e a indústria privada em ações de coibição e penalização dos crimes cometidos. 

O Brasil promulgou esta Convenção através do Decreto Presidencial n°. 11.491 de 12 de abril de 2023, de forma a aperfeiçoar a cooperação internacional na resolução de crimes praticados no ambiente virtual, e impulsionar o desenvolvimento e avanço das leis brasileiras para prevenir a prática desses crimes e garantir a efetiva proteção de dados. Diante disso, esse artigo busca analisar a importância do Tratado de Budapeste no Sistema Internacional, bem como a sua inserção no ordenamento jurídico brasileiro.

OS CRIMES CIBERNÉTICOS

A Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento (Organization for Economic Cooperation and Development – OECD), formulou o seguinte conceito de crime cibernético: “qualquer conduta ilegal, não ética, ou não autorizada, que envolva processamento automático de dados e/ou a transmissão de dados” (SILVA, 2003, p. 55). A partir desse conceito, cada país ficou livre para fazer adaptação mais funcional diante do seu sistema legal, seja adotando a tese de todos os crimes praticados por meio digital, ou somente aqueles que atingem diretamente o computador.

No Brasil, a doutrina tem admitido tanto o conceito do uso do computador como instrumento para a perpetração do crime ou como seu objeto material, relacionado às informações arquivadas ou em trânsito por computadores, bem como o uso de dados, acessados ilicitamente, para ameaças ou fraudes. Trazendo uma definição jurídica clássica, nas palavras de Alexandre Jean Daoun, trata-se de “ação típica, antijurídica e culpável com o adendo de ser cometida contra ou pela utilização de sistemas informáticos ou informatizados” (DAOUN, 2001, p. 206.) 

Certo é que a jurisprudência tem procurado se debruçar de forma efetiva sobre os meios de prevenção e punição das espécies de crimes que vêm sendo cometidos no meio digital ou através dele. Ou seja, mais importante do que padronizar uma definição de cibercrime, é adequar o ordenamento jurídico para a proteção das vítimas e punição dos culpados.

Analisando a história, o surgimento da internet se deu em 1969, durante a Guerra Fria, diante da necessidade de uma ferramenta de comunicação militar alternativa, caso ocorresse um ataque às redes de comunicação convencionais. Criada pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos, a rede era inicialmente chamada de ARPANET (Advanced Research Projects Agency Network), que era ligada a quatro computadores, sem que houvesse um controle central. Mais tarde, a rede foi se expandindo a mais computadores pertencentes a universidades, centro de pesquisas militares e indústrias bélicas (TORMEN, 2018). Ainda que tal ataque nunca tenha acontecido, naquele momento deu-se início ao maior fenômeno de comunicação do século XX, que conseguiu atingir milhões de pessoas. 

Mapa da rede ARPANET em 1972

A rede foi evoluindo mediante o TCP/IP (Transmission Control Protocol/Internet Protocol) em 1980, que possibilitou a abrangência da conexão, e a ARPANET transformou-se em NSFnet (National Science Foundation‟s Network), passando a interligar-se a outros países do mundo, passando para a administração não governamental, com usuários particulares em 1995.

Assim, esse conjunto mundial de redes ganhou o nome de Internet, em que “inter” está ligado a internacional e “net” à rede, ou seja, a rede mundial de computadores. A partir do aumento do alcance da conexão, bem como a possibilidade de camuflagem de seus usuários, a internet tornou-se um ambiente propício à realização de ilícitos, surgindo-se, assim, os crimes cibernéticos

O TRATADO DE BUDAPESTE

Oficialmente conhecida como a Convenção do Conselho da Europa sobre Cibercriminalidade, a Convenção de Budapeste, na Hungria, abriu em 21 de novembro de 2001 as assinaturas para o tratado internacional. Seu objetivo se materializa na criminalização de delitos cometidos no meio digital, na definição e limite dos poderes inerentes às autoridades competentes para a proteção das vítimas, na punição dos culpados e buscar a cooperação internacional de forma rápida e eficaz para o combate aos crimes cibernéticos (ARAÚJO, 2022). 

O tratado entrou em vigor em 2004, contando, até 2023, com 66 países vigentes, 11 observadores, bem como a estimativa que mais de 150 países usem suas disposições como orientação para as legislações nacionais. Ressalta-se que anteriormente havia somente Recomendações do Comitê de Ministros do Conselho da Europa, para a regularização, diretrizes e definições relativas à criminalidade informática. No que tange à soberania dos países signatários do tratado, notadamente nas relações de acessos digitais entre fronteiras, a previsão se dá na possibilidade de acesso quando se tratar de dados publicamente acessíveis ou quando se é obtido o consentimento legal e voluntário de pessoa legalmente autorizada para a divulgação.

Trata-se de um mecanismo de cooperação internacional em relação a qualquer delito que implique a necessidade de prova eletrônica,  servindo como diretriz para o combate do crime cibernético e com uma estrutura de apoio para a cooperação internacional entre os Estados que fazem parte da Convenção. Um exemplo de instrumento de cooperação é a extradição, que se dá na entrega de indivíduo para determinado Estado solicitante, para fins de submissão a processo penal ou à execução de pena criminal. (ABADE, 2013, p. 50).

Os tipos de penas que se apresentam na Convenção e seus protocolos adicionais se dividem em cinco modalidades: Infrações contra a confidencialidade, integridade e disponibilidade de dados e sistemas informáticos; Infrações relacionadas com computadores; Infrações relacionadas com os conteúdos; Infrações respeitantes a violações do direito de autor e direitos conexos; atos de natureza racista e xenófoba praticados através de sistemas informáticos (PEREIRA,2013).  Nesse sentido, encontra-se a possibilidade de inclusão nessas modalidades das demais infrações que se apresentem no decurso do avanço da tecnologia e abrangência da rede, tais como as infrações referentes à pornografia infantil. 

Em síntese, esse Tratado Internacional visa ser um instrumento para o combate dos crimes de natureza cibernética, com destaque para os seguintes alvos: 1) Definir e estabelecer os crimes cibernéticos, seja no acesso não autorizado a sistema de informações, interceptação ilegal de dados, ou uso desse meio como ferramenta para ilícitos penais como estelionato, coação e demais crimes desta natureza; 2) Buscar a cooperação internacional, com redes de pontos de contato entre os Estados, bem como a possibilidade de assistência jurídica mútua e até a extradição de autores de crimes; 3) A efetividade na proteção de dados fundamentais na proteção do direito à privacidade; 4) Busca pela prevenção de cibercrimes, seja na promoção de educação e conscientização, seja na implementação de medidas de segurança, mediante a cooperação de setores públicos e privados (ROCHA, 2023). 

Cita-se, por exemplo,  o artigo 23 do referido Diploma:

“As Partes cooperarão entre si, em conformidade com as disposições do presente capítulo, em aplicação dos instrumentos internacionais pertinentes sobre a cooperação internacional em matéria penal, de acordos celebrados com base nas legislações uniformes ou recíprocas, e do seu direito nacional, na medida mais ampla possível, para efeitos de investigações ou de procedimentos relativos a infracções penais relacionadas com sistemas e dados informáticos, ou para recolher provas sob a forma eletrônica de uma infração penal”

PROMULGAÇÃO DO TRATADO NO BRASIL 

O Brasil passou a aderir ao Tratado de Budapeste mediante convite feito pela Convenção da Europa. O instrumento foi promulgado através do Decreto n° 11.491 publicado em 12 de abril de 2023, passando a ser um meio de aprimoramento e cooperação das leis nacionais já existentes: Lei Carolina Dieckmann (Lei 12.737/2012); Marco Civil da Internet (Lei n°. 12.965/2014); Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018); e as alterações nos artigos 154, 155 e 171 do Código Penal e artigo 70 do Código de Processo Penal trazidas pela Lei 14.155/2021.

Dessa forma, as autoridades brasileiras passaram a contar com mais recursos para investigação dos crimes cibernéticos, quando estes ultrapassam as fronteiras de outros países, possibilitando uma cooperação mais rápida e eficaz. Nas palavras do coordenador-geral de Cooperação Jurídica Internacional em Matéria Penal do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), André Zaca Furquim (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA, 2023):

 “Considerando que as investigações operadas no Brasil demandam, cada vez mais, provas eletrônicas que se encontram em outros países, esta Convenção irá facilitar e, portanto, encorajar os investigadores brasileiros a utilizar tal estratégia”.

Cabe aqui uma breve explicação acerca da promulgação de Tratados Internacionais no Brasil. Primeiramente, se faz necessário o entendimento do conceito de Tratados Internacionais. Segundo Hildebrando Accioly (2002, p. 28), tratado é “o ato jurídico por meio do qual se manifesta o acordo de vontades entre duas ou mais pessoas internacionais”. Para a validade desse instrumento, têm-se como pré-requisitos indispensáveis a capacidade das partes (Estados ou organizações internacionais); habilitação dos agentes (demonstrando a sua capacidade mediante a apresentação dos plenos poderes); e mútuo consentimento; com objeto lícito e possível (RIBEIRO, 2006).

 Uma vez que o Tratado é um instrumento de direito que se dá no plano internacional, a promulgação é um ato necessário, sendo a ferramenta para que o mesmo passe a ter executoriedade no direito interno. É a fase que ocorre após a troca ou o depósito dos instrumentos de ratificação, cujo efeito será tornar o tratado executório no plano interno e afirmar a regularidade do processo legislativo. 

No Brasil, os tratados só se tornam obrigatórios se aprovados pelo Congresso Nacional. Após a negociação, ele é submetido à aprovação do Congresso, indo somente após esse abono para a promulgação, que é feita por decreto do Presidente da República, com a publicação do texto, na íntegra, no Diário Oficial da União (RIBEIRO, 2006).

Certo é que a promulgação do Decreto inaugura uma série de alterações e adaptações que futuramente deverão ser aplicadas ao ordenamento jurídico nacional. Por exemplo, assuntos como distinções de direitos e deveres de pessoas físicas e pessoas jurídicas, privacidade e intimidade são alguns dos temas sujeitos à debates e discussões no Congresso Nacional em busca da efetividade das legações penais sobre o assunto. Trata-se de um primeiro, mas grande passo na busca pela proteção e regulação acerca dos crimes que rondam a comunidade virtual internacional.

CONSIDERAÇÕS FINAIS

Não se pode negar que a internet é a grande invenção do milênio, e seu alcance segue se expandindo ao longo do tempo, sendo utilizada para trabalho, relacionamento, aprendizado e comunicação. Certo é que não se trata de exagero ao se dizer que a sociedade está dependente e totalmente interligada a essa rede. Uma vez que essa conexão ultrapassa as fronteiras dos países, se faz necessária a cooperação e expansão do arcabouço jurídico da comunidade internacional.

O Brasil passou a fazer parte de um regime internacional de combate ao crime cibernético, cujo objetivo é a persecução penal e prevenção desta modalidade criminosa que vem desafiando as autoridades de diversas nações. A promulgação do Tratado de Budapeste se fez necessária para complementar a legislação nacional, estabelecendo diretrizes mais concretas para a investigação dos crimes virtuais, proporcionando às autoridades brasileiras um acesso mais amplo e célere aos elementos de provas e informações que estejam sob jurisdição estrangeira, diante da efetividade da cooperação jurídica internacional. 

Desta forma, diante de uma conectividade global, é necessária  uma cooperação global, para a proteção dos indivíduos, cidadãos nacionais, que navegam por esta rede. E o desafio a que se apresenta é que, assim como vem se expandindo a conexão, também se expanda a integração entre as diferentes experiências e legislações da comunidade internacional, para serem usadas como ferramentas nessa pauta de colaboração.

A versão em português do Tratado de Budapest está disponível em: https://rm.coe.int/CoERMPublicCommonSearchServices/DisplayDCTMContent?documentId=09000016802fa428 

REFERÊNCIAS

ABADE, Denise Neves. Direitos Fundamentais na Cooperação Jurídica Internacional. São Paulo: Saraiva, 2013.

ARAÚJO, Clayton Vinicius Pegoraro de. Os aspectos gerais dos tratados internacionais e a Convenção de Budapeste sobre Crimes Cibernéticos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. v. 50 | n. 1 | pp. 145-165 | jan./jun. 2022.

CASSANTI, Moisés de Oliveira. Crimes virtuais, vítimas reais. Rio de Janeiro: Brasport, 2014. 

DAOUN, Alexandre Jean. Crimes informáticos: direito eletrônico: a internet e os tribunais. Bauru: Edipro, 2001. 

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Convenção de Budapeste é promulgada no Brasil. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/convencao-de-budapeste-e-promulgada-no-brasil Acesso em: 20 jan. 2024.

PEREIRA, Maria de Assunção do Vale. Textos de direito internacional. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2013. 

RIBEIRO, Silvia Pradines Coelho. A participação do Legislativo no processo de celebração dos tratados. Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 43 n. 170 abr./jun. 2006. 

ROCHA, Francisco Ilídio Ferreira. Atualização: Decreto n. 11.343/2023 (Convenção de Budapeste) Crimes Cibernéticos. Boletim Jurídico. Disponível em: https://boletimjuridico.ufms.br/atualizacao-decreto-n-11-343-2023-convencao-de-budapeste-crimes-ciberneticos/ Acesso em 25 jan. 2024. 

SILVA, Ana Laura Rossi. Uma análise sob a perspectiva da aplicação do Direito Internacional. Goiânia: Universidade Federal de Uberlândia – Faculdade de Direito Professor Jacy de Assis, 2019.  

SILVA, Rita de Cássia Lopes da. Direito penal e sistema informático. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.  

TORMEN, Chalidan Adonai Callegari. Crimes Cibernéticos: (im)possibilidade de coerção. Erichim: Universidade Reginal Integrada do Alto Uruguai e das Missões – Departamento de Ciências Sociais aplicadas, 2018.

IMAGENS

[1] https://pixabay.com/pt/photos/hacker-silhueta-hack-hackear-3342696/

[2] Arpanet 1974 – Internet – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

[3] Convenção sobre o Cibercrime – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Priscila Tardin

Luso-brasileira, apaixonada pela África. Profissional do Direito que está se especializando em Relações Internacionais para viver o melhor desses dois mundos. Entusiasta de novos desafios e experiências transculturais, com muita facilidade em comunicação e no aprendizado de novos idiomas.

Um comentário em “CRIMES CIBERNÉTICOS E O TRATADO INTERNACIONAL DE BUDAPESTE

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *