“A GRANDE APOSTA” E A CRISE DE 2008

“A GRANDE APOSTA” E A CRISE DE 2008

(Imagem: Adorocinema)

O que você faria se possuísse uma teoria apocalíptica, com zero apoio e que certamente te causaria um prejuízo astronômico? Esta proposta é respondida pelos personagens centrais de “A Grande Aposta (2015)”, dirigido por Adam Mckay e nomeado a cinco estatuetas, vencendo o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado. O longa acompanha — com algumas modificações de cunho dramático — as histórias reais de alguns dos investidores que conseguiram antever os efeitos catastróficos do que marcaria a história internacional como a Crise de 2008 (ScreenRant, 2023). 

Além de nomes de peso e digno de referências rápidas a outra grande obra sobre calote — O Lobo de Wall Street (2013) —, o filme usa de narrativa fluída e citações bem colocadas para abordar sobre como se deu a recessão e os impactos não apenas no setor bancário, mas também a respeito de como o dinheiro corrompe muitas coisas, sejam elas saldos, almas ou sonhos. 

O preço que se paga para ter dinheiro 

“Pode não saber quem é ele, mas ele mudou a sua vida mais do que Michael Jordan, o Ipod e o YouTube juntos” – A Grande Aposta (2015)

É assim que Jared Vannett, interpretado por Ryan Gosling, apresenta Lewis Ranieri, o idealizador da securitização aplicada ao mundo financeiro. O investidor, corretor de títulos e ex-presidente do Salomon Brothers, foi responsável pelo sucesso dos “títulos lastreados em hipotecas” durante os anos de 1970, que três décadas depois, devido à negligência reguladora e muitos termos confusos ao público, seriam os protagonistas da Crise de 2008 (A Grande Aposta, 2015).

A securitização de Ranieri se configurava no método de aglutinar dívidas semelhantes em lotes únicos e dar a eles o nome de títulos. Essas dívidas, que sozinhas teriam um rendimento e taxa de risco baixas, demoravam muito para lucrar. Ao serem agrupadas, porém, elas mantinham o baixo perigo aos seus investidores, aumentavam os lucros e davam um retorno rápido a quem as detinha. No sistema de Ranieri, que se baseava em vender “títulos lastreados em hipotecas”, havia a garantia de que os rendimentos poderiam ser colhidos antes mesmo da dívida ser quitada. Desta maneira, ainda que as hipotecas levassem décadas para serem pagas, os credores responsáveis por elas, poderiam obter seus rendimentos 10 anos após terem comprado seus títulos, por exemplo (Economia e negócios, [s.d.]).

Quando a crise estourou em setembro de 2008, termos como CDO, CDS, AAA, BB dentre outros, surgiram nos noticiários e, atualmente, são termos centrais em qualquer material didático sobre como o sistema imobiliário dos Estados Unidos da América causou a maior recessão na economia mundial desde a Grande Depressão de 1930. A enxurrada de táticas confusas à população são apenas uma das rachaduras que sustentavam o esquema hipotecário estadunidense. 

(Imagem: Pexels/Pixabay)

Basicamente, os CDOs — collateralized debt obligations ou “obrigações de dívidas colateralizadas” — são os lotes de títulos do esquema criado por Ranieri. Neles, estavam agrupadas dívidas de origem semelhante, sendo em sua maioria hipotecas. Esses CDOs garantiam altos lucros aos seus detentores, que poderiam ser qualquer entidade com dinheiro para adquiri-los, sendo alguns deles fundos de empréstimos, de pensão, aposentadorias e até mesmo outros bancos (Eichengreen, 2011).

Ainda que houvesse otimismo com os CDOs, segurança nunca é demais. Para isso haviam os CDS, os credit default swaps ou swaps de crédito, que eram os seguros contra calote. Desta forma, caso houvesse inadimplência das dívidas que constituíam os CDOs, os detentores estavam “a salvo” de sofrerem danos majoritários, já que o risco era passado para outra entidade (Eichengreen, 2011, pág. 97). Por fim, os “Ás” e “Bs” tinham como função marcar o nível de segurança de um investimento. Quanto maior fosse a aparição da letra, melhor o país, empresa ou CDO seria para receber dólares e mais dólares ele renderia ao seu investidor (Eichengreen, 2011, pág. 97).

Com tudo isso em foco e a segurança absoluta de que as hipotecas eram um negócio seguro, Lewis Ranieri incentivou no mercado financeiro a aquisição de CDOs lastreados em títulos de hipoteca, ou seja, lotes de dívidas compostos por outras dívidas. Ele, assim os investidores, gerentes e bancos que vieram nos 30 anos seguintes, acreditava que, devido ao progresso da economia e ao sonho das pessoas de terem uma casa, o sistema imobiliário era extremamente seguro para investimentos porque as pessoas não deixariam de pagar suas hipotecas. (Eichengreen, 2011, pág. 97). 

Considerando as diferenças entre expectativa e ação, é aí que os personagens de “A Grande Aposta” entram. 

Um suco de sorte, criminalidade e estupidez 

(Imagem: Gerd Altmann/Pixabay)

Baseado na história real de algumas das pessoas que previram a iminente crise, o filme apresenta Mark Baum, Jared Vannett, Ben Rickert e Michael Burry, que trabalhavam no setor financeiro quando a bolha imobiliária estourou. Burry, era investidor na época e, ao analisar contratos de algumas hipotecas nas quais o fundo em que trabalhava investia, percebeu inconsistências na classificação que elas haviam recebido e concluiu os efeitos astronômicos que tais erros trariam. Com esse conhecimento em mãos, ele começou a apostar contra o mercado e a comprar os CDS no aguardo do estouro da bolha.

Vannett (Ryan Gosling), ao ter ciência das medidas provisórias que Burry estava realizando, foi em busca de um fundo de investimentos para comprar os swaps de crédito e encontrou a FrontPoint Partners, no qual Baum era gestor de hedge funds. Já Rickert, que tinha conhecimento no mercado devido à sua experiência prévia em bancos e outros fundos, foi procurado por um jovem fundo de investimentos que também tinha interesse na compra de seguros contra calote.

Logo, anos antes da crise estourar, de países buscarem o FMI (Fundo Monetário Internacional) e de milhões de estadunidenses perderem seus lares, esses quatro investidores e muitos outros mais, estavam preparados para os efeitos do tsunami que chegaria o estouro da bolha. 

“A cada 1% de aumento no desemprego, 40.000 pessoas morrem. Sabiam disso?”

Ben Rickert (Brad Pitt) em “A Grande Aposta” (2015)

Grande demais para falir: um conto estadunidense 

Em “Privilégio Exorbitante: a ascensão e queda do dólar e o futuro do sistema monetário internacional”, o historiador econômico Barry Eichengreen discorre sobre como o dólar tornou-se a principal moeda do sistema financeiro internacional e os efeitos sobre a Crise de 2008 para a hegemonia monetária dos Estados Unidos. Como posto por Martins (2011), “[…] os americanos possuem a regalia de poder consumir mais do que produzir, importar mais do que exportar, enquanto o mundo os financia em troca de dólares”.

Esse domínio do dólar no cenário monetário tem início no pós-Segunda Guerra Mundial, quando os EUA passaram a ocupar o papel de “maior credor financeiro internacional” devido à destruição sofrida no continente europeu. A Grã-Bretanha, que desempenhava até meados dos anos 1930 a figura estável no setor econômico, se deparou com um forte declínio na libra esterlina após a Primeira Guerra Mundial em simultaneidade com a criação do Banco Central estadunidense. Após o Entreguerras e até o fim da IIGM, os EUA se demonstraram essenciais  tais fatores foram primordiais para a substituição da ilha europeia pelo gigante americano em ascensão, o que resultou na atual conjuntura financeira internacional (Martins, 2011).

(Imagem: Paul Sakuma/ Los Angeles Times Associated Press)

Para outros autores das Relações Internacionais, como Charles Kindleberger e Robert Gilpin, as dinâmicas interestatais são explicadas pela “Teoria da Estabilidade Hegemônica” mobilizadora da argumentação de que é necessário ao cenário internacional, a existência de uma potência dominadora que harmonize a cooperação internacional. E.H. Carr, teórico da vertente clássica do Realismo nas Relações Internacionais, aponta a necessidade de um superestado que garanta a paz e a funcionalidade das legislações internacionais (Fiori, 2004). Contudo, ao contrário do papel visto por Carr, o poderio estadunidense nos âmbitos econômico, militar e cultural, resultou em dependência internacional por dólares e, até 2023, em quase 400 intervenções militares em países estrangeiros/em outros Estados, ocasionando no crescimento da antipatia internacional pelos EUA (Dimant et tal, 2021; Tufts, 2023). 

Em “Manias, Pânicos e Crises”, Kindleberger (2013) aponta que além dos buracos na estrutura do esquema hipotecário estadunidense, um grande fator que serviu para potencializar a crise em escala global foi justamente a alta concentração de poder que bancos de investimentos possuíam na época, como o Lehman Brothers. Ele, assim como os demais outros que abriram falência durante a recessão causada por 2008, fecharam devido ao não-pagamento das hipotecas que compreendiam boa parte dos CDOs das suas reservas, o que significava que os bancos não conseguiam arcar com as retiradas em massa de seus clientes. 

É importante ressaltar que, apesar da crise ter se iniciado em solo estadunidense e se espalhado ao mundo por meio de financeiras norte-americanas, os EUA nunca deixou de ser considerado uma opção segura para o mercado financeiro (CNN, 2023). As principais bolsas de valores se encontram no país, o dólar rege as transações e suas eleições possuem diversos olheiros ansiosos para depositar seus milhões. 

Ao discutir sobre o privilégio dos EUA ante as mudanças do cenário econômico, Eichengreen (2011) aponta que a existência de concorrentes não será o suficiente para minar a posição norte-americana como principal no mercado financeiro. O autor, na verdade, coloca essa responsabilidade não em outras moedas, mas sim, nas políticas econômicas do país, como um retorno cármico dos efeitos causados pelos erros de 2008. 

Imagens

PIXABAY. Pexels. Blur Chart Compute. 2016. 1 foto. 1280×960 pixels. Disponível: https://pixabay.com/photos/blur-chart-computer-data-finance-1853262/ 

Referências

A Grande Aposta. Direção: Adam Mackay. Produção: Brad Pitt. Local: EUA. Distribuidora: Paramount Pictures, 2015. Duração: 130 min.

ALIBER, R.; KINDLEBERGER, C. Manias, pânicos e crises: a história das catástrofes econômicas mundiais. São Paulo: Editora Saraiva; 6ª edição, 2013. Cap. 13: O pânico da Lehman – uma quebra evitável. 

DIMANT, E. et al. Nation building through military aid? Unintended consequences of US interventionism. In: ROHNER, Dominic; ZHURAVSKAYA, Ekaterina (Orgs.). Nation Building: Big Lessons from Successes and Failures. London, UK: Centre for Economic Policy Research, 2023, p. 258–269. Disponível em: https://wzb.eu/en/news/unintended-consequences-of-us-interventionism. Acesso em: 22 jan. 2024.

EICHENGREEN, B. Privilégio exorbitante: a ascensão e queda do dólar e o futuro do Sistema Monetário Internacional. Rio de Janeiro, Elsevier, 2011, Cap.V: Crise, pp.95-118

FIORI, J. L. Formação, Expansão e Limites do poder global. In: FIORI, J. L. (org.). O Poder Americano. Petrópolis: Editora Vozes, 2004, pp.11-64. 

MARTINS, Aline Regina. O destino do dólar. Brazilian Journal of International Relations, v. 1, n. 3, p. 499–504, 2012. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/bjir/article/view/2764/2193. Acesso em: 22 jan. 2024.

Giovana Silva Santiago

Estudante de RI amante de frutas, livros, músicas e musicais e que se encontra em um sério relacionamento internacional com o BTS.

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