“A SOCIEDADE DA NEVE” E A COOPERAÇÃO EM ACIDENTES AÉREOS INTERNACIONAIS

“A SOCIEDADE DA NEVE” E A COOPERAÇÃO EM ACIDENTES AÉREOS INTERNACIONAIS

Indicado às categorias de Melhor Filme Internacional e de Melhor Maquiagem e Penteados no Oscar 2024, “A Sociedade da Neve” (2023) é um filme de suspense de sobrevivência dirigido por J. A. Bayona (diretor de Jurassic World: Fallen Kingdom e O Impossível) distribuído pela Netflix. Baseado em uma história real, ainda que não seja documental, ele retrata os passageiros do voo 571 da Força Aérea Uruguaia e sua luta para sobreviver após o acidente em meio à Cordilheira dos Andes que os deixou presos e desaparecidos em meio à neve e ao frio extremo por 72 dias, em 1972. Completamente isolados do restante do mundo e aguardando pelas buscas feitas, a obra acompanha o grupo e as medidas extremas que precisaram tomar para que o máximo deles saísse vivo do incidente, que ficou conhecido como “O Milagre dos Andes”.

O Milagre – ou o Desastre – dos Andes

Em 12 de Outubro de 1972, um time uruguaio de Rugby – os Old Christians – e, majoritariamente, seus amigos e família, iniciou a jornada de Montevidéu para Santiago, no Chile. O voo 571, da Força Aérea Uruguaia, havia sido fretado pelo time, que tinha uma partida marcada em solo chileno. Mesmo após terem realizado um pouso de emergência em Mendoza, Argentina, por uma noite antes de seguir o trajeto através da Cordilheira dos Andes até Santiago (fato deixado de fora do filme), devido às condições climáticas desfavoráveis no dia anterior, ainda assim a tragédia atingiu as 45 pessoas a bordo da aeronave (Macarthur, 2024; Aguiar, 2023; Andrade, 2024).

Um engano do copiloto que estava controlando o avião no momento, o Tenente-Coronel Dante Héctor Lagurara, foi fatal. Ao pensar que haviam ultrapassado a Cordilheira, com a nevasca atrapalhando sua visão, ele iniciou a descida da embarcação, que colidiu com uma montanha. Ao caírem, os 33 sobreviventes ficaram isolados em uma altura de 4 mil metros, com temperaturas que chegavam a -40°C (Weisholtz, 2024; Aguiar, 2023).

Cinco dos sobreviventes da queda morreram na primeira noite, e ao longo dos mais de dois meses seguintes, outros doze morreriam (Weisholtz, 2024). A forma de sobreviverem durante todo esse tempo, após chegarem a ficar mais de uma semana sem se alimentar, foi voltando ao canibalismo dos corpos dos falecidos. Em termos de combate ao frio e a sensação de fome, o fumo de cigarros também teve um papel essencial.

Imagem dos destroços do avião (CNN Brasil).

No filme, há um claro cuidado em retratar não apenas o desespero e o horror de cada um dos passageiros em meio à situação, mas também a tentativa em ajudar uns aos outros e manter-se como um time mesmo em face da morte e da falta de esperança. Eis o nome da obra, “Sociedade da Neve”: a solidariedade e a generosidade é algo admirável, presente mesmo quando um deles encontrava um fim. Um exemplo é Numa Turcatti (Enzo Vogrincic), narrador da trama e o último a morrer nos destroços do avião, ter expressado suas intenções de que o restante dos sobreviventes pudessem usar seus restos mortais para ganharem mais tempo e possivelmente irem atrás de ajuda – o que foi crucial para que duas pessoas se separassem do grupo para buscar um resgate. Em 22 de dezembro de 1972, os 16 sobreviventes remanescentes começaram a ser retirados das montanhas. O pesadelo finalmente havia chegado ao fim (A SOCIEDADE DA NEVE, 2023).

O questionamento moral, as atitudes que o ser humano pode tomar em adversidades de desastres e condições extremas, a generosidade póstuma, e o impacto em sua saúde mental são temas trabalhados, e que trazem um panorama interessante para além do estigma em torno do acidente em si, em especial devido à ocorrência de canibalismo.

Recriação de uma das imagens reais tiradas pelos sobreviventes, ao encontrarem uma câmera funcional nas bagagens, no filme A Sociedade da Neve (Netflix).

A Cooperação Internacional em acidentes aéreos

Não é incomum que acidentes aéreos ocorram em viagens internacionais – frequentemente devido a condições climáticas adversas, falhas técnicas na aeronave, fator humano, ou uma combinação das possíveis causas supracitadas. Muitas vezes, as buscas são favoráveis e é possível realizar o resgate dos sobreviventes, ainda que infelizmente ocorram fatalidades; em outras, pode ser que a embarcação nunca seja encontrada, a exemplo do voo MH370 da Malaysia Airlines, que dez anos após seu desaparecimento ainda permanece um mistério. Mas, qual é o procedimento de cooperação internacional nesses casos?

A Organização Internacional da Aviação Civil (International Civil Aviation Organization, em inglês, ou ICAO) é o órgão especializado das Nações Unidas para aviação e navegação aérea internacional como um todo, sendo palco para a cooperação e coordenação em termos de mobilidade global via espaço aéreo em diversas formas para os 193 Estados-membros (ICAO, 2024?). O documento que a guia, a Convenção em Aviação Civil Internacional de 1944, em seu 26° artigo, afirma que caso ocorra um acidente de uma aeronave de um Estado no espaço aéreo de outro e do qual decorra “morte, ferimentos graves, ou defeitos técnicos sérios na aeronave ou facilidades de navegação aérea” (CONVENÇÃO, 2006, p. 12), cabe ao Estado no qual o acidente ocorreu iniciar um inquérito de investigação referente às causas e circunstâncias. O Estado no qual a aeronave está registrada tem direito de apontar observadores para participar do inquérito, bem como ter conhecimento dos resultados (CONVENÇÃO, 2006).

O Anexo 12 à Convenção institui, ainda, medidas específicas para a organização de buscas e resgates em casos de acidentes aéreos – infelizmente, ele ainda não havia sido elaborado à época do acidente do voo 571, porém suas diretrizes são seguidas desde sua adoção pelo Conselho da ICAO em 2004. Dentre seus pontos estabelecidos, há a obrigação de que o Estado-membro no qual o acidente ocorreu de prover medidas de busca e assistência às vítimas em até 24 horas, seja isso realizado de forma individual ou em cooperação com outros Estados. No caso de cooperação, é estabelecido que seja realizada com Estados vizinhos para localizar acidentes de aeronaves desaparecidas, permitindo a entrada de unidades de resgate em seu território e vice-versa (ANEXO 12, 2024).

Em termos do Desastre dos Andes de 1972, após a perda de contato com o voo 571, esforços de resgate já começaram a ser mobilizados. Aeronaves provenientes da Argentina, Uruguai e Chile passaram a sobrevoar os Andes, em busca do voo e de sobreviventes. Contudo, devido às condições extremas das nevascas, não foi possível identificar os destroços, cobertos pela neve, e muito menos se o acidente havia ou não resultado em fatalidades. Assim, após oito dias de buscas, todos os tripulantes foram declarados mortos. Os sobreviventes, após conseguirem consertar um dos rádios, chegaram a ouvir que as buscas por eles haviam sido encerradas – algo que é retratado no filme (Pinotti, 2024; A SOCIEDADE DA NEVE, 2023).

Imagem real do resgate dos dezesseis sobreviventes (Today/Shutterstock).

O cuidado com a reprodução de uma história que já havia sido contada anteriormente, com suas vítimas e familiares dos falecidos, é impressionante, e um exemplo para qualquer adaptação de desastres reais. Há uma sensibilidade e um cuidado especial que pode ser notado ao longo da trama, em tentar dar uma voz aos falecidos. O diretor, Bayona, que também é produtor e um dos roteiristas, realizou uma pesquisa extensiva, com mais de cem horas de entrevistas gravadas, atenção aos relatos do livro homônimo de Pablo Vierci (amigo das vítimas), e contato com os sobreviventes ao longo das filmagens (Ritman, 2023).

Nós planejamos filmar a história quase como um documentário. Nós preparamos os atores; nós fornecemos todas as informações; nós ensaiamos o roteiro por quase dois meses; nós passamos por todas as cenas. Eles leram o livro; eles entraram em contato com os sobreviventes ou as famílias das vítimas. E eles passaram 72 dias nas montanhas. Nós filmamos por 140 dias (Bayona, 2024, tradução nossa [1]).

Os próprios sobreviventes, ao assistir o filme, se surpreenderam com a fidelidade do filme aos acontecimentos reais (Canfield, 2024). A obra destaca a importância em relembrar mesmo os desastres mais sombrios sobre uma outra perspectiva e dar voz às suas vítimas, vivas ou falecidas:

O filme acaba dizendo, “Por favor continue contando esse conto.” É importante. Histórias são importantes. Elas estabelecem algo que se torna importante nas mentes das pessoas. É isso que nós fazemos como contadores de histórias. Não é apenas sobre o fato, é sobre a narrativa. Nós contamos o conto novamente (Bayona, 2024, tradução nossa [2]).

É uma história que desperta diversas emoções, medos e agonias em suas aproximadamente duas horas e meia de duração. O filme é incrivelmente bem produzido, e retrata uma história tão surreal e a complexidade da mente humana em frente ao desastre em tantas nuances, que o espectador precisa se lembrar várias vezes que a trama é verídica. Eis uma obra cinematográfica que merece o seu lugar em uma maratona para o Oscar 2024.

Notas

[1] We planned to shoot the story almost like a documentary. We prepared the actors; we gave them all the information; we rehearsed the script for almost two months; we went through all the scenes. They read the book; they got in contact with the survivors or the families of the victims. And they spent 72 days in the mountains. We shot for 140 days (Bayona, 2024).
[2]  The movie ends up saying, “Please keep telling this tale.” It’s important. Stories are important. They set up something that becomes important in the minds of the people. This is what we do as storytellers. It’s not only about the fact, it’s about the narrative. We told the tale again (Bayona, 2024).

Referências

A SOCIEDADE DA NEVE. Direção de J. A. Bayona. Espanha: Misión de Audaces Films; El Arriero Films; Netflix, 2023. 1 filme (144 min.). Disponível em: https://www.netflix.com/browse/genre/34399?jbv=81268316. Acesso em: 17 jan. 2024. 

AGUIAR, Eleder P. The Andes flight disaster that gave birth to the Society of the Snow. The Conversation, 6 set. 2023. Disponível em: https://theconversation.com/the-andes-flight-disaster-that-gave-birth-to-the-society-of-the-snow-212801. Acesso em: 12 fev. 2024.

ANDRADE, Ranyelle. A Sociedade da Neve: filme deixou detalhe impressionante de fora. Metrópoles, 6 jan. 2024. Disponível em: https://www.metropoles.com/entretenimento/cinema/a-sociedade-da-neve-filme-deixou-detalhe-impressionante-de-fora. Acesso em 13 fev. 2024.

ANEXO 12 à Convenção em Aviação Civil Internacional de 1944. Jul. 2004. Disponível em: https://www.google.com/url?q=https://www.pilot18.com/wp-content/uploads/2017/10/Pilot18.com-ICAO-Annex-12-Search-and-Rescue.pdf&sa=D&source=docs&ust=1707959866961416&usg=AOvVaw0JJTyleBCkIjeBSY7tv7fh. Acesso em 13 fev. 2024.

BAYONA, J. A. The Making of Society of the Snow, From Precise Historical Recreations to Deeply Spiritual Interpretation. [Entrevista concedida a] David Canfield. Vanity Fair, 4 jan. 2024. Disponível em: https://www.vanityfair.com/hollywood/shot-list-society-of-the-snow-netflix-ja-bayona-awards-insider. Acesso em: 13 fev. 2024.

CANFIELD, David. The Making of Society of the Snow, From Precise Historical Recreations to Deeply Spiritual Interpretation. Vanity Fair, 4 jan. 2024. Disponível em: https://www.vanityfair.com/hollywood/shot-list-society-of-the-snow-netflix-ja-bayona-awards-insider. Acesso em: 13 fev. 2024.

CONVENÇÃO em Aviação Civil Internacional. Nona edição, 2006. Disponível em: https://www.icao.int/publications/Documents/7300_cons.pdf. Acesso em: 13 fev. 2024.

INTERNATIONAL CIVIL AVIATION ORGANIZATION (ICAO). About ICAO. ICAO, 2024? Disponível em: https://www.icao.int/about-icao/Pages/default.aspx. Acesso em: 13 fev. 2024.

MACARTHUR, Greg. 10 Biggest Changes Society Of The Snow Makes To The 1972 Andes Flight Disaster’s True Story. ScreenRant, 6 jan. 2024. Disponível em: https://screenrant.com/society-of-the-snow-movie-andes-disaster-true-story-changes-fact-check/#the-media-aftermath-amp-sensationalism-is-mostly-left-out. Acesso em 12 fev. 2024.

PINOTTI, Fernanda. “A Sociedade da Neve”: conheça a história real por trás do filme da Netflix. CNN Brasil, 4 jan. 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/a-sociedade-da-neve-conheca-a-historia-real-por-tras-do-filme-da-netflix/. Acesso em: 14 fev. 2024.

RITMAN, Alex. J.A. Bayona on Gaining the Trust of the Crash Survivors for Venice-Closing Real-Life Disaster Thriller ‘Society of the Snow’. The Hollywood Reporter, 8 set. 2023. Disponível em: https://www.hollywoodreporter.com/movies/movie-news/society-of-the-snow-ja-bayona-interview-netflix-movie-1235585406/. Acesso em 12 fev. 2024.

WEISHOLTZ, Drew. Everything you need to know about the true story behind ‘Society of the Snow’. Today, 10 jan. 2024. Disponível em: https://www.today.com/popculture/movies/society-snow-true-story-plane-crash-rcna133013. Acesso em 13 fev. 2024.

Mariana de Castro Lopes Alphonsus de Guimaraens

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