DA GUERRA À ESPERANÇA: O LEGADO DO UNICEF E OS DESAFIOS NA PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS
Criança com mochila do UNICEF nas costas, em frente a prédios destruídos na Síria. Foto: Pexels, 2021.
INTRODUÇÃO
Criado há quase oito décadas, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) é um importante instrumento na promoção dos direitos de crianças e adolescentes. Ao longo desse tempo, contribuiu para que a comunidade internacional testemunhasse avanços significativos no que tange ao bem estar e desenvolvimento infantil. Por outro lado, o Unicef enfrenta obstáculos persistentes, que colocam em xeque a eficácia de sua atuação. O presente artigo busca delinear a trajetória, os avanços alcançados e os desafios que ainda se apresentam, a fim de fornecer uma compreensão mais abrangente de sua atuação e impacto nesses anos de existência.
AS ORIGENS
Sob os escombros deixados pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945) na Europa, era comum ver crianças brincando, descreveu Maurice Pate, primeiro diretor executivo do UNICEF. As consequências devastadoras do conflito atingiram principalmente os mais vulneráveis. Milhares de crianças perderam seus pais e seus lares, tendo que enfrentar a fome, doenças e incertezas. É diante desse cenário de profunda desolação, que a comunidade internacional se mobilizou para criar o Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) em 1946, voltado inicialmente para atender às urgentes necessidades das crianças no pós-guerra (Verloren, 2009).
O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) recebeu da Assembleia Geral da ONU o mandato de defender e proteger os direitos de crianças e adolescentes, ajudar a atender suas necessidades básicas e criar oportunidades para que alcancem seu pleno potencial. O UNICEF é guiado pela Convenção sobre os Direitos da Criança e é o principal defensor global de meninas e meninos (Unicef, 2019).
Considerado o criador do UNICEF, o médico polonês Ludwig Rajchman projetou a organização com o objetivo de direcionar os fundos remanescentes da Administração das Nações Unidas para Auxílio e Reabilitação (UNRRA) – principal agência internacional de ajuda humanitária no pós-guerra – para atender às necessidades mais prementes das crianças na Europa, Oriente Médio e Ásia, principalmente no combate a doenças generalizadas. A princípio, não se pretendia tornar o UNICEF em uma organização permanente, sua atuação deveria se limitar ao curto prazo. No entanto, a natureza duradoura da pobreza na Ásia, África e América colocava em risco a vida de milhares de crianças (Verloren, 2009).
Tendo isso em vista, o ano de 1953 marcou um ponto de inflexão para o UNICEF. As palavras “Internacional” e “Emergencial” foram retiradas do nome da organização, sem alterar a sigla. Essa mudança simbolizou a ampliação do escopo e missão da organização, que se tornou um órgão permanente das Nações Unidas. A partir de então, o UNICEF assumiu um compromisso contínuo com a proteção dos direitos das crianças e adolescentes de todo o mundo (Unicef, 2019).
“O UNICEF mudou de um fundo de emergência para uma organização permanente de desenvolvimento, buscando melhorar as condições básicas e a qualidade de vida de crianças em países pobres a longo prazo” (Verloren, 2009, tradução nossa).
Presente em mais de 190 países e territórios, o UNICEF colabora estreitamente com governos nacionais para desenvolver planos voltados a implementar maneiras práticas de concretizar os direitos das crianças (Unicef, 2018). A viabilidade das suas ações depende de uma rede diversificada de subsídios composta por contribuições voluntárias de governos, organizações não governamentais, parcerias com empresas privadas e arrecadações junto à sociedade civil. Esses fundos permitem a continuidade das atividades em áreas essenciais como saúde, educação, proteção e nutrição, garantindo respostas rápidas diante de situações emergenciais e a manutenção de projetos de longo prazo que promovem o bem-estar e o desenvolvimento das crianças mais vulneráveis em escala global.
O LEGADO
Os acumulados esforços do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) em promover a solidariedade entre as nações e consolidar-se como um novo ator de paz de relevância internacional renderam à organização o Prêmio Nobel da Paz em 1965 (Unicef, 2024). Esse reconhecimento demonstra o impacto abrangente das ações do UNICEF, não apenas em situações de emergência e conflito, mas também em projetos de longo prazo voltados para a proteção e o desenvolvimento das crianças em condições de vulnerabilidade.
“Todos compreenderam a linguagem do UNICEF […] até a pessoa mais relutante é obrigada a admitir que, na prática, o UNICEF demonstrou que a compaixão não conhece fronteiras nacionais. A ajuda é oferecida a todas as crianças, sem qualquer distinção de raça, credo, nacionalidade ou convicção política […] O UNICEF se tornou um instrumento internacional capaz de libertar centenas de milhões de crianças da ignorância, doença, desnutrição e fome […] O objetivo do UNICEF é preparar uma mesa repleta de todas as coisas boas que a natureza oferece para todas as crianças do mundo […] O UNICEF oferece aos jovens uma alternativa digna de ser vivida e trabalhada: um mundo de liberdade para todos os povos, igualdade entre todas as raças e fraternidade entre todos os homens.”
— Trecho da Citação do Nobel, 1965
Desde a década de 1980, o UNICEF atua como a principal defensora dos direitos das crianças, assumindo o papel de guardiã da Convenção sobre os Direitos da Criança (1990). A CDC, considerada um marco fundamental na proteção da infância, é o tratado de direitos humanos mais amplamente ratificado da história1, e estabelece direitos abrangentes para todas as crianças até 18 anos, desde a sobrevivência e desenvolvimento até a proteção contra abusos e o direito à participação nas decisões que as afetam. Nesse sentido, a missão do UNICEF é ser uma extensão prática dos princípios da Convenção: garantir que toda criança, em qualquer lugar do mundo, tenha seus direitos garantidos por lei (Diers, 2013; Unicef, 2009; Unicef, 2007).
A UNICEF é guiada pela Convenção sobre os Direitos da Criança e se esforça para estabelecer os direitos das crianças como princípios éticos duradouros e padrões internacionais de comportamento em relação às crianças (UNICEF, 2020).
Um dos primeiros grandes desafios enfrentados pelo UNICEF envolveu combater a fome e a desnutrição em zonas de conflito e em regiões afetadas pela extrema pobreza. Nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, entre 1947 e 1951, a organização distribuiu milhões de toneladas de leite em pó, capazes de gerar 6,4 bilhões de xícaras de leite para alimentar bebês e crianças em situação de vulnerabilidade. Essa ação emergencial não só salvou vidas, mas também marcou profundamente a identidade da Unicef, que ficou conhecida como “a organização do copo de leite” e o “leiteiro das crianças do mundo” (Unicef, 2019; Verloren, 2009).

A partir desse trabalho inicial do UNICEF, o caminho para outras iniciativas nutricionais da organização foram pavimentados, evoluindo para incluir a distribuição de alimentos fortificados e suplementos vitamínicos em comunidades com altas taxas de desnutrição. No Sudão do Sul, cujas taxas de mortalidade por desnutrição são alarmantes, o UNICEF coordena a distribuição de alimentos terapêuticos prontos para uso (RUTF, na sigla em inglês)2, um recurso essencial para o tratar e recuperar crianças nesse quadro que, de outra forma, estariam em risco imediato (Unicef, 2022).
A desnutrição é uma das chamadas emergências “silenciosas” mencionadas pela Unicef, juntamente com doenças infecciosas como poliomielite, sarampo e tuberculose, causando mais mortes e possíveis de serem evitadas do que as emergências “barulhentas”, o que inclui conflitos armados e desastres naturais, sendo, em sua maioria, evitáveis. Uma das vitórias mais significativas do UNICEF na área da saúde foi a promoção de vacinas. Os primeiros esforços de campanhas em massa contra tuberculose na Europa foram capazes de reduzir a incidência da doença entre crianças no continente (Verloren, 2009). A partir disso, a organização abriu caminho para um novo período de avanços na saúde pública internacional. No Brasil, o apoio do UNICEF à campanha federal de vacinação contra a poliomielite foi fundamental para a erradicação da doença no país em 1994 (Opas/OMS, 2024).
O UNICEF também concentra seus esforços em outras frentes de ações preventivas e estruturantes que vão além das respostas emergenciais, promovendo de forma consistente os direitos das crianças. Entre suas principais áreas de atuação está a educação. O trabalho da organização nesse sentido volta-se a garantir que todas as crianças, principalmente as em situação de vulnerabilidade, tenham acesso à educação gratuita e de qualidade. Em várias regiões do mundo, o empenho do UNICEF tem sido superar barreiras como pobreza, conflitos armados e discriminação de gênero, que muitas vezes impedem crianças e adolescentes de frequentarem a escola (Verloren, 2009).
Iniciativas como essas podem ser encontradas no Afeganistão. Por lá a organização tem implementado o programa Community-Based Education (Educação Baseada na Comunidade na tradução), oferecendo educação para meninas em áreas rurais e remotas onde o acesso a escolas formais é limitado ou inexistente. A proposta desse programa é levar a sala de aula para perto das comunidades, fornecer materiais didáticos e treinamento para professores, a fim de facilitar o aprendizado em locais seguros e culturalmente aceitáveis. Dessa maneira, meninas que, de outra forma, não teriam acesso à educação, podem ter acesso a ela (UNICEF, 2020).
Todo esse aparato do UNICEF para assegurar que crianças e adolescentes tenham um futuro mais seguro consolida a organização como uma força ativa na promoção de direitos fundamentais, principalmente para aqueles em situação de vulnerabilidade. Apesar dos avanços significativos em várias áreas, o UNICEF enfrenta uma série de desafios que exigem resiliência e constante adaptação para continuar ampliando o acesso a oportunidades e protegendo as gerações futuras.
OS DESAFIOS
A manutenção da eficácia do Fundo das Nações Unidas para a Infância enfrenta constantes e complexos desafios. Barreiras de ordem política, econômica, cultural e estrutural frequentemente restringem o alcance e impacto da organização em diferentes lugares do mundo. Esses obstáculos não apenas dificultam a implementação de projetos em regiões vulneráveis, mas também pressionam o UNICEF para se adaptar constantemente a um cenário internacional em rápida transformação, no qual crises humanitárias, mudanças climáticas e desigualdades sociais se tornam cada vez mais latentes.
Entre os maiores desafios está a dependência por financiamento. Toda a arrecadação do UNICEF provém de doações de governos, empresas e indivíduos, uma vez que a organização não conta com um orçamento garantido pelas Nações Unidas. Essa dependência a torna suscetível às flutuações econômicas globais e mudanças nas prioridades de doadores institucionais, capazes de afetar diretamente os recursos disponíveis para manter projetos e atuar em ações humanitárias. O Plano Estratégico da Unicef (2024) reportou que, apesar do crescimento histórico da receita total nos últimos 10 anos, de US$ 4,85 bilhões em 2013 para US$ 8,92 bilhões em 2023, o financiamento flexível (recursos regulares) permaneceu relativamente estável, representando um desafio para a capacidade da organização de responder de forma ágil a crises emergentes.
As questões políticas também representam uma barreira significativa. Em muitos países, a atuação do UNICEF é limitada por políticas nacionais que restringem o acesso a determinadas áreas, especialmente em locais de conflito ou onde regimes autoritários controlam o movimento e as atividades de ONGs internacionais. Em regiões como a Síria e o Iêmen, por exemplo, o acesso a áreas controladas por grupos armados é severamente restringido, impossibilitando a distribuição de ajuda emergencial e dificultando a proteção de crianças em situação de risco extremo (Unicef, 2016).
No ano passado [2016], cerca de 12.600 crianças sírias cruzaram linhas de conflito ativo para realizar suas provas finais. Elas vieram de áreas de difícil acesso, algumas viajando por dias. A coragem dessas crianças e professores é extraordinária. Eles persistem em aprender, transformando porões, cavernas e celeiros antigos em escolas e playgrounds. Quando não há carteiras suficientes, as crianças se revezam nas poucas disponíveis em escolas improvisadas ou sentam-se no chão, determinadas, contra todas as adversidades, a aprender (UNICEF, 2017, grifo nosso).
Além disso, a dimensão cultural e social representa outro fator relevante. Em países onde há uma forte resistência cultural a mudanças nas normas sociais, como igualdade de gênero e direitos da criança, o UNICEF encontra dificuldades em implementar programas educacionais e de proteção. Em regiões da África Ocidental, como o Níger, a organização enfrenta barreiras para combater o casamento infantil, uma prática profundamente enraizada em tradições locais. Estima-se que 100 milhões de meninas corram o risco de casamento infantil na próxima década. Apesar de iniciativas como campanhas de conscientização e parcerias com líderes comunitários, a implementação de programas enfrenta resistência de algumas comunidades que vêem essas práticas como parte de sua identidade cultural (Unicef, 2021). Esses desafios demandam abordagens adaptadas e sensíveis às particularidades culturais, a fim de promover os direitos das crianças de maneira eficaz e respeitosa.
A conjugação desses fatores faz com que a UNICEF enfrente um cenário de complexidade crescente, onde assegurar a continuidade de seus projetos exige não só resiliência institucional e adaptações constantes, mas também um apoio internacional cada vez mais engajado e responsivo às necessidades das crianças e adolescentes em todo o mundo.
CONCLUSÃO
Ao longo de quase oito décadas, o UNICEF alcançou avanços notáveis na melhoria das condições de vida de crianças e adolescentes, promovendo direitos e enfrentando desafios na área da saúde, educação e crises emergenciais. No entanto, dificuldades financeiras, políticas e culturais ainda limitam sua atuação em diversos contextos. Apesar disso, o impacto positivo da organização reforça a necessidade de apoio internacional contínuo para garantir que toda criança, independentemente de sua origem, tenha acesso a um futuro digno.
NOTAS
- A Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) não foi ratificada pelos Estados Unidos e pela Somália. Os Estados Unidos assinaram o tratado em 1995, mas nunca o ratificaram, principalmente devido a preocupações políticas internas, como o impacto potencial sobre a soberania nacional e o sistema jurídico do país. A Somália, por sua vez, não ratificou a CDC até 2015 devido à instabilidade política e à ausência de um governo central forte, sendo este o principal obstáculo para a ratificação do tratado.
↩︎ - É uma pasta energética e densa em micronutrientes feita com amendoim, açúcar, leite em pó, óleo, vitaminas e minerais, que ajudou a tratar milhões de crianças ameaçadas pela desnutrição grave – a forma mais perigosa de desnutrição ↩︎
REFERÊNCIAS
DIERS, Judith. Why the world needs to get serious about adolescents: A view from UNICEF. Journal of Research on Adolescence, v. 23, n. 2, p. 214-222, 2013.
OPAS/OMS. Poliomielite. 2024. Disponível em: https://www.paho.org/pt/topicos/poliomielite. Acesso em: 06 nov. 2024.
UNICEF. 10 milhões de meninas a mais em risco de casamento infantil devido à Covid-19. 2021. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/10-milhoes-de-meninas-a-mais-em-risco-de-casamento-infantil-devido-a-covid-19. Acesso em: 28 out. 2024.
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UNICEF. Conheça o Unicef. 2019. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/sobre-o-unicef. Acesso em: 28 out. 2024.
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UNICEF. Protecting the World’s Children: impact of the convention on the rights of the child in diverse legal systems. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2007.
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IMAGENS
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