A HISTÓRIA COMO ELA É CONTADA: MEMÓRIA E DISCURSO

A HISTÓRIA COMO ELA É CONTADA: MEMÓRIA E DISCURSO

Imagem de Free-Photos por Pixabay

“Quem controla o passado, controla o futuro. 

Quem controla o presente, controla o passado.”

(George Orwell)

E se você tivesse que contar a história do Brasil em 10 minutos agora? Vamos lá, faça esse exercício mental rapidamente. Se quiser ajuda, eu te dou: pense no ponto de partida e no ponto final; divida sua narrativa em seções coesas e distintas o bastante entre si, de preferência seguindo o mesmo critério; para cada seção eleja seus atores principais, não necessariamente pessoas, mas também eventos, características, organizações, etc; caso queira deixar as coisas mais refinadas, elabore as causas que provocaram cada nova seção e pronto, eis uma partícula da memória nacional, que se soma a outras 211 milhões.

A proposta da nova coluna do site, a 2N Memórias, é explorar esse vasto corpo feito de partículas de memória coletiva no âmbito histórico, de maneira descontraída e interativa quando possível. Vamos revisitar alguns personagens, eventos ou mesmo épocas inteiras da nossa história, que de certa forma se entrecruzam com a história de outros países.

Mas afinal, o que é “memória” exatamente? O que se toma por Memória Histórica é o processo de reconstrução do passado sem o rigor crítico da historiografia. Sem dúvidas, a História, enquanto ciência humana, é a principal — ou deveria ser — fonte da memória, mas não somente, pois existem diversos outros canais de des/informação que, de modo involuntário ou interessado, ajudam a conformá-la.

Como se constrói a memória ?

Aristóteles define a memória como um conjunto de “imagens mentais” das impressões sensuais captadas no passado; um misto de verbalidade e imagens propriamente ditas. 

Pense numa tela em branco: cada lembrança de um determinado objeto é uma pincelada que desenha a memória dele. Além disso, cada vez que essas lembranças são reproduzidas, a pintura é reforçada e, por outro lado, se não o são, a pintura se desbota, podendo desaparecer. Ademais, outras pessoas podem te resgatar novas lembranças e acrescentar novas pinceladas ao quadro, bem como você mesmo, o artista que muda ao longo do tempo, ressignifica experiências passadas e acrescenta novos tons à pintura.

É possível separar a memória em dois grandes grupos: a individual e a coletiva. Não são grupos imiscíveis, muito pelo contrário, é comum que ambas se alimentem e gerem retro-influências.

Enquanto as memórias individuais conseguem existir sem a necessidade de apoio externo, pois estão vinculadas à nossa própria identidade, as memórias coletivas necessitam de reforço periódico, produzido sempre no contexto de uma comunidade afetiva capaz de gerar situações em que essas lembranças vêm à tona.

“É necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizerem e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade.” (HALBWACHS, 1990, p. 34)

Por exemplo, pense na sua turma favorita durante os tempos de escola. Os fatos marcantes daquela época foram compartilhados com os seus amigos durante o ano inteiro e possivelmente depois, inclusive chegando até os dias de hoje para aqueles que mantiveram amizades. No entanto, é comum que os professores não estejam inseridos numa comunidade afetiva significativa com as suas turmas, causando o esquecimento gradual de suas turmas antigas. Ao passo que nós reconhecemos a maioria de nossos professores com certa facilidade, ainda que anos depois, já é uma vitória se um professor nos reconhece.

Como a memória pode construir a realidade ?

Frequentemente, o conhecimento sobre a realidade de determinado evento histórico precisa ser reconstruído, quase que em totalidade, à base de testemunhos, isto é, quando uma pessoa evoca suas memórias para descrever algo.

Essa tarefa torna-se especialmente desafiadora quando envolve episódios traumáticos, como guerras e genocídios, em que a testemunha sofre um grau de violência tamanho que sua capacidade de observação e compreensão fica comprometida. Há quem diga que episódios da magnitude do Holocausto são “eventos sem testemunha”, pois aqueles que relataram seus horrores conseguiram passar por essa experiência com uma certa distância e aqueles que tocaram seu fundo, não voltaram.

Não bastasse a impossibilidade de contar com todas as testemunhas, aqueles que sobrevivem ainda têm que lidar com o choque de retornar ao “mundo real”. Gradualmente as memórias do horror vão ganhando contornos de absurdo e a própria pessoa passa a duvidar de si mesma: “Foi isso mesmo que eu vi?”. Como se narra o inenarrável?

“E desde os primeiros dias, no entanto, parecia-nos impossível preencher a distância que descobrimos entre a linguagem de que dispúnhamos e essa experiência que nos ocupávamos ainda em perceber. Mal começávamos a contar e sufocávamos. A nós mesmos, aquilo que tínhamos a dizer começava então a parecer inimaginável.”
(ANTELME, sobrevivente do Holocausto, 1957)

Diante de tamanha vulnerabilidade, o opressor encontra um caminho para apagar seus crimes, na medida em que se aproveita da “irrealidade” de situações tão excepcionais. A destruição de locais e de documentos, o silenciamento de vítimas, a anistia aos culpados, as narrativas artificiais alternativas que se sobrepõem… Existe todo um rol de expedientes utilizados para que o opressor negue a verdade que lhe é inconveniente.

Todavia, não é preciso chegar a situações extremas para verificar a disputa pela memória coletiva — o embate de narrativas ocorre o tempo inteiro. Por mais que o historiador, assim como todo cientista, deva perseguir a verdade e primar pela imparcialidade e pela objetividade, também é seu dever se perguntar a todo momento: a quem minha história serve?

“Tornar-se senhor da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva.”

(LE GOFF, 1990, p.368)

Um hobby reflexivo

Uma vez que se tome gosto em investigar os mecanismos da memória, não há caminho de volta. Sua mente passa a analisar cada discurso bonitinho na timeline ou na televisão. Qual termo está sendo utilizado? Descoberta ou conquista do Brasil? Proclamação da República, Contrarrevolução de 64, Impeachment? Ou tem golpe aí no meio? Para qual público o discurso está sendo direcionado? Quem o apoia e o reproduz? Essas são algumas questões que não saem da cabeça.

Espero que o leitor tenha se sentido motivado a acompanhar mensalmente mais uma coluna neste site excepcional. Não se esqueça de nós! Até a próxima.

REFERÊNCIAS

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Editora Revistas dos Tribunais LTDA. São Paulo, 1990.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Editora da UNICAMP. São Paulo, 1990.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma: A questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Psicol. clin. [online]. 2008, vol.20, n.1, pp.65-82. ISSN 1980-5438.

Iago Dalfior

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