O HIRAK ARGELINO: UM NOVO MODELO DE REVOLUÇÃO NA ÁFRICA?

O HIRAK ARGELINO: UM NOVO MODELO DE REVOLUÇÃO NA ÁFRICA?

CONTEXTO GERAL

A Argélia é um país localizado no norte africano, com uma população de 40 milhões de habitantes, cuja economia é bastante dependente do petróleo. O regime político atual do país foi construído logo após o fim da guerra de independência, entre 1954 e 1962. Desde então, a Argélia funciona como república semipresidencialista, na qual há a figura do presidente e a de um primeiro-ministro. Nessa dinâmica, anteriormente, a eleição para presidente ocorria de forma direta, e o mandato possuía duração de 5 anos com possibilidade de reeleição. Entretanto, “em 2008, esses limites de mandatos foram removidos, permitindo que o presidente Abdelaziz Bouteflika cumprisse quatro mandatos.” (CAREY ARRIBAS, 2020, p. 4, tradução minha).

Diante disso, em janeiro 2019, quando um novo período eleitoral teve início, eclodiu uma gigantesca mobilização popular, conhecida como o Hirak Argelino[1], contra a candidatura de Abdelaziz Bouteflika para um quinto mandato. Para os manifestantes, o presidente de 82 anos não tem mais condições físicas de assumir o poder e sua candidatura foi vista como uma tentativa de manutenção de um regime político ultrapassado e elitista. “Buteflika estava no poder desde 1999, mas, devido a um derrame em 2013, ele não falou mais nem apareceu em público. (CAREY ARRIBAS, 2020, p. 13, tradução minha). Logo, sua tentativa de ficar no poder gerou uma onda de protestos que levaram o presidente a renunciar sua candidatura em abril de 2019.

HISTÓRICO POLÍTICO

A Argélia era um território francês até 1962, quando o país se tornou oficialmente independente. Diferentemente das demais colônias francesas, o país era tratado como um prolongamento da metrópole[2]. Diante disso, a guerra de independência argelina foi complexa e envolveu táticas de guerrilha e sabotagem; o grupo que esteve à frente dos movimentos foi a Frente de Libertação Nacional (FLN) e o seu braço armado, o Exército de Libertação Nacional (ELN). Por oito anos, de 1954-62, a luta armada argelina se ampliou na medida que o regime colonial francês se recusava a renunciar (LIPPOLD, 2005). De acordo com Sampaio (2013, p. 36), “a exploração colonial da Argélia foi uma das formas de colonialismo mais brutal que existiu, levava os nativos colonizados a perderem seu próprio caráter humano.” Diante disso, o movimento Argelino se construiu já dentro do cenário das lutas pós-coloniais do século XX e sua causa repercutiu internacionalmente.

A FLN levou o caso da independência da Argélia para a Organização das Nações Unidas, apoiada por diversos países árabes, asiáticos e socialistas. Diversos regimes apoiaram a causa argelina de diversas formas: financiamento de empréstimos, fornecimento de armamentos e ajuda na formação militar. Em 1955, na Conferência de Bandung, a FLN enviou observadores para participar das discussões acerca do colonialismo europeu. A França, após a conferência, reconheceu as particularidades da Argélia, mas a FLN não aceitou as propostas da antiga metrópole e não concordaria com outra proposta a não ser a autodeterminação da Argélia.” (SAMPAIO, 2013, p. 32-33)

A guerra de independência argelina, diante do exposto, nasce da insatisfação de um povo oprimido por um sistema colonial que o marginalizou e suprimiu sua identidade. Em um contexto de total exploração, o movimento independentista argelino foi fortemente apoiado pela população local, que não teve resistência em abraçar a causa nacionalista (SAMPAIO, 2013). A independência ocorreu em 1962, por meio da assinatura dos tratados de Evian, porém isso não representou o fim dos problemas do país, visto que diversas questões econômicas e sociais não foram resolvidas. “A economia estava devastada, os excessivos gastos militares do governo colonial aumentaram a dívida pública. […] A produção industrial havia reduzido em 35% e o país contava com dois milhões de desempregados, após um milhão de perdas durante a guerra.” (CUSTÓDIO, 2016, p. 33).

A partir disso, após a independência, a Argélia passou por diversas revoltas que tinham como objetivo mudar a política do país.  Neste artigo, portanto, serão  retratados três momentos específicos que se relacionam com a atual situação da região:

As revoltas de 1988-1992, 2001

As revoltas populares de 1988 nasceram da insatisfação dos habitantes com o regime unipartidário implementado após a independência. Sendo assim, as reformas políticas que ocorreram nesse período tiveram como objetivo ampliar e solucionar problemas econômicos, sociais e culturais. Logo, com a abertura do sistema político, as restrições à liberdade de expressão, associação e organização foram atenuadas e diversos partidos foram legalizados  (AGHROUT, 2012). Porém, quando chegou o momento de colocar isso em prática, o que ocorreu foi diferente do estabelecido. Nas eleições parlamentares de 1991, ocorreria uma clara vitória da Frente Islâmica de Salvação (FIS), sabendo disso, o exército anulou os comícios e o FIS foi dissolvido. Após o evento, decretou-se estado de emergência no país e diversos direitos constitucionais foram suprimidos (AGHROUT, 2012). Desta forma, “ o  impasse político abriu uma era de violência brutal. Uma guerra civil não declarada que duraria de 1992 a 1999, embora existam fontes que a situam em outros anos.” (CAREY ARRIBAS, 2020, p. 7, tradução minha).

Nesse ínterim, mais uma vez a população se reuniu para protestar e denunciar a situação política do país. Em 2001, uma resolução cancelou o estado de emergência, mas não sem antes estabelecer uma ordem que proibia protestos na capital Argel, permitindo às autoridades oprimir e dissolver qualquer tentativa de movimentação popular. A partir daí, teve início o período que ficou conhecido como “Black Spring”, um levante que se iniciou após uma estudante ser presa, baleada e morta por uma brigada de policiais em Cabília. O confronto durou dois anos e teve como saldo 128 mortos e aproximadamente 5000 feridos (RACHIDI, 2019). O Black Spring é abordado aqui pois ele será essencial para entender o Hirak de 2019.

A ECLOSÃO DO HIRAK

O movimento, como citado anteriormente, faz parte de uma longa história de luta do povo argelino contra a ordem política estabelecida em seu país. “O slogan silmiyya (‘pacífico’) tem sido o lema dos manifestantes desde o início, a fim de evitar qualquer tendência para confronto violento.” (THIEUX, 2020, p. 213, tradução minha). A composição do movimento por “não ser politicamente marcado conseguiu reunir grandes massas de argelinos em todo o país, mas especialmente em Argel, onde a proibição de manifestações prevaleceu desde a famosa ‘Black spring’ de 2001.” (TILMATINE, 2019, p. 78, tradução minha). Como afirma Tilmatine (2019):

A imagem de um país totalmente empenhado em impedir a reeleição de Bouteflika e a renovação do sistema político começa a circular nos meios de comunicação estrangeiros que falam de um despertar do povo argelino. O nascimento de um movimento social e político argelino – o Hirak (“movimento” em árabe) – tornou-se conhecido no mundo como “A revolução do sorriso” pelo seu pacifismo, pela sua civilidade e pelo humor despojado dos manifestantes e especialmente pela sua tenacidade e sua determinação em libertar todo o pessoal político envolvido no regime de Bouteflika. […] No entanto, esse movimento era latente. Como o sociólogo argelino RatibaHadj-Moussa corretamente aponta, a raiva está fermentando há décadas em diferentes regiões do país ( p. 78, tradução minha).

Quando o Hirak eclodiu, em 2019, o Exército Popular Nacional da Argélia, herdeiro do ELN, que já desempenhava um papel central na vida política do país desde a sua independência em 1962, se tornou ainda mais essencial. Foi através da liderança militar, dirigida pelo chefe do Estado-Maior do Exército, general Ahmed Gaid Salah, que o presidente foi obrigado a renunciar, após 20 anos governando o país. Logicamente,  a pressão civil resultante da maior mobilização política desde a independência, foi a peça chave da renúncia (AMIRAH, 2019). As características do Hirak argelino foram herdadas de experiências anteriores, em especial a de 2001, e desta forma a movimentação em massa da população é uma estratégia para dificultar tentativas do governo de dissipar os protestos.

Dado o pressuposto, o que esse movimento traz de novo frente a outros como, por exemplo, a primavera-árabe, é exatamente esse modelo organizacional, juntamente com suas exigências. A maior parte dos movimentos que eclodiram durante a primavera-árabe demandavam a demissão de seus governantes e poucos realmente conseguiram transformar seu sistema político. Além disso, foi um movimento que sofreu extrema interferência externa, o que não é o caso do Hirak. De acordo com De Castro (2019):

Suas exigências são profundas e não vão se deter em sucessos pontuais como a demissão do ex-presidente para um quinto mandato, ou sua demissão como chefe de Estado, ou mesmo o cancelamento de eleições sem garantias, como as anunciadas para 4 de julho. Também não se contenta com uma justiça de aparências, com uma campanha instigada pelo exército de prisões e prisões domiciliares, por mais espetaculares que sejam as figuras na prisão, pois sabem que a verdadeira justiça só pode surgir em um sistema democrático que garanta o Estado de Direito.” (p. 29, tradução minha, grifo meu).

As marchas são organizadas de forma eficiente com objetivo de reduzir a possibilidade de confrontos, com voluntários chamados “coletes laranja” que auxiliam as pessoas que sofrem desmaios ou impactos, além de organizarem os grupos. O foco é evitar provocações que possam desencadear confrontos violentos. Outra característica é o ideal de que toda instrumentalização por grupos, partidos ou movimentos deve ser evitada. “Tudo está bem organizado e eficiente, no campo com os “coletes laranja” e na internet com o auxílio das redes sociais, entre as quais se destacam o Facebook e o Twitter, mídias que ainda não estavam disponíveis em 1988, nem em 2001.” (DE CASTRO, 2019, p. 30, tradução minha).

Atualmente, o movimento continua em ação, sendo que no ano passado foi suspenso por causa da pandemia, mas já voltou à ativa, exigindo o desmantelamento do sistema político que é visto como reflexo do período colonial marcado por autoritarismo e corrupção. Por fim, tem-se que o Hirak representa um movimento novo que surgiu de experiências históricas de um povo que há muito tempo luta por suas liberdades.


NOTAS

[1] “O Hirak argelino é um movimento que se enraíza com a guerra de independência (1954-1962), que se refere às reivindicações políticas – não resolvidas – desse período e que repensa praticamente todo o período pós-colonial da Argélia independente. É um movimento transversal, intergeracional e nacional, sem qualquer apropriação dele por qualquer partido, movimento, setor ou região do país.” (DE CASTRO, 2019, p. 29, tradução minha).

[2] “Como forma de dominação da sociedade argelina, os colonos impuseram o francês como língua oficial e única de ensino, o idioma árabe foi tratado como língua estrangeira e ocorreu proibição de livros nesta linguagem. A França abandonou seus princípios seculares na administração da Argélia, os colonizadores aplicaram leis em que os muçulmanos não poderiam ascender socialmente ou participarem do comando do território.” (SAMPAIO, 2013, p. 29)

FONTES

AGHROUT, Ahmed; MURILLO S, Lorena. LA “PRIMAVERA ÁRABE” DE ARGELIA:¿ TANTO PARA NADA?. Foro Internacional, p. 412-433, 2012.

RACHIDI, Ilhem. Algerians recall Black Spring as repression rises. AsiaTimes, 26, abril 2019. Disponível em: <https://asiatimes.com/2019/04/algerians-recall-black-spring-as-repression-rises/> Acesso em: 4 maio 2021

TILMATINE, Mohand et al. Représentations et système de gouvernement en Algérie. Qu’en pensent les jeunes à Alger et à Tizi Ouzou (Kabylie). 2019.

CUSTÓDIO, Tiago Oliveira. A Frente de Libertação Nacional na Guerra Por Independência e na Formação do Estado Argelino. 2016. Trabalho de Conclusão de Curso.

THIEUX, Laurence. Algeria in 2020: A Weakened Power Facing a Multidimensional Crisis. EMed. Mediterranean Yearbook, 2020.

DE CASTRO, Rafael Bustos García. El “hirak” popular: la nueva revolución argelina. Revista Argelina, n. 8, p. 27-36, 2019.

CAREY ARRIBAS, Catherine. El Hirak argelino:¿ una” segunda primavera árabe”?. 2020.

AMIRAH, H. Argelia 2019: la sociedad ha cambiado, el sistema aún no. Real instituto Elcano. 11, dezembro 2019. Disponivel em: < http://www.realinstitutoelcano.org/wps/portal/rielcano_es/contenido?WCM_GLOBAL_CONTEXT=/elcano/elcano_es/zonas_es/ari118-2019-amirah-argelia-2019-la-sociedad-ha-cambiado-el-sistema-aun-no> Acesso em: 4 maio 2021

LIPPOLD, Walter Günther Rodrigues. O pensamento anticolonial de Frantz Fanon e a Guerra de Independência da Argélia. Monografia, Porto Alegre, n. 1, 2005.

SAMPAIO, Thiago Henrique. O discurso de Jean-Paul Sartre sobre o colonialismo francês e a Guerra de Independência da Argélia (1954-1962). Revista Filogênese, v. 6, n. 1, p. 27-38, 2013.

Anna Clara Oliveira

Estudante do 7ºperíodo de Relações Internacionais na Universidade Federal de Goiás e pesquisadora no programa de iniciação científica sobre milícias brasileiras, crime organizado transnacional e assemblages globais da segurança.

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