“O MAIOR ROUBO DE ARTE DE TODOS OS TEMPOS” E O TRÁFICO INTERNACIONAL DE OBRAS DE ARTE

“O MAIOR ROUBO DE ARTE DE TODOS OS TEMPOS” E O TRÁFICO INTERNACIONAL DE OBRAS DE ARTE

Não é um mistério por si só, porque a humanidade se interessa tanto por casos não resolvidos – e o motivo para ser algo tão incorporado na cultura pop, há décadas. La Casa de Papel, Truque de Mestre, uma boa parte da franquia de Velozes e Furiosos e os filmes Ocean’s, todos têm um elemento em comum: tratam de roubos multimilionários. Apesar de que, a minissérie documental “O Maior Roubo de Todos os Tempos” (2021) se assemelharia mais a Lupin, nesta comparação.

Dirigida por Colin Barnicle e disponibilizada pela Netflix, seus quatro episódios tentam não somente contar a história do roubo do Museu Isabella Stewart Gardner, em 1990, como expor teorias, detalhes misteriosos e a evolução do caso (THIS IS A ROBBERY, 2021), ou melhor, suas complicações. Afinal, por mais que esteja ativo há mais de 30 anos e sob investigação do FBI, nenhuma prisão jamais foi feita pelo roubo em si. E o paradeiro das peças continua desconhecido.

Meio Bilhão em Arte: O Roubo do Museu Isabella Stewart Gardner

Jardim do Museu Isabella Stewart Gardner, localizado no centro do edifício (Siena Scarff/Isabella Stewart Gardner Museum).

A filantropa e patrona das artes Isabella Stewart Gardner, após a morte de seu marido, começou a colocar em prática os planos que ambos tinham de construir o próprio museu, tendo em vista sua extensa coleção de arte. Inaugurado em 1901, o Museu que leva seu nome dispõe de três andares de galerias, e ela viveu na construção até sua morte em 1924 (Isabella…, [s.d.]). Em seu testamento, uma condição: se a coleção do Museu mudasse, e sua visão criativa para o espaço e as obras nele dispostas fosse alterada permanentemente, todos os itens deveriam ser leiloados em Paris, e o dinheiro doado para a Universidade de Harvard (Flynn, 2023).

A série chega a fazer uma breve introdução deste histórico e da própria Isabella, pontuando sobre como ela era vista como uma excêntrica à época. Um momento que chama a atenção nessa seção do primeiro episódio sobre a patrona, é a forma como ela valorizava tanto a criação e a arte do museu que, para garantir que não o vissem antes de estar pronto mas precisando testar a acústica das salas, convidou crianças cegas para ouvir música nas salas, caracterizando a construção como “sua obra-prima” (THIS IS A ROBBERY, 2021). Por 89 anos, a coleção do Museu Isabella Stewart Gardner permaneceu a mesma, sendo alterada não pelos seus curadores, e sim por dois homens disfarçados de policiais, em uma madrugada fatídica.

Nas primeiras horas da madrugada de 18 de março de 1990, enquanto o restante de Boston ainda comemorava o Dia de São Patrício, os dois ladrões tinham uma ideia diferente. Vestidos de policiais, eles enganaram os dois seguranças em serviço, e passaram 81 minutos no museu, cortando diretamente as pinturas em torno de suas molduras. Os seguranças foram encontrados apenas na manhã seguinte, amarrados com fita adesiva, que também cobria seus olhos e fazia um círculo na cabeça de um deles. O documentário detalha, com entrevistas de personalidades importantes para o caso, como a então diretora do museu, o fotógrafo forense do FBI encarregado à época, o segurança que abriu a porta, outros seguranças que não estavam trabalhando, entre outros (THIS IS A ROBBERY, 2021).

Treze obras valiosas para a história da arte foram levadas, incluindo a “Tempestade no Mar da Galileia” (1633), a única paisagem marítima de Rembrandt; a “Dama e Cavalheiro de Preto” (1632), também de Rembrandt; e “O Concerto” (1658-1660), uma das únicas 35 pinturas de Vermeer. O valor total das obras roubadas, na última vez em que foi estimado, era de cerca de 500 milhões de dólares.

Tempestade no Mar da Galileia (1633), de Rembrandt, uma das obras roubadas.

A série não hesita em expor detalhes suspeitos em cada episódio, que fazem o espectador questionar se havia algum envolvimento interno. O segurança à mesa abriu a porta externa 20 minutos antes da chegada dos ladrões; os sensores de movimento, posicionados nas portas de cada sala, não detectaram nenhuma entrada no salão onde um dos quadros, um Manet, estava pendurado, além da última entrada do segurança que fazia a ronda; eles não saíram quando o alarme de um dos Rembrandts levados disparou (THIS IS A ROBBERY, 2021). São detalhes suspeitos, que vão pintando uma imagem progressivamente na mente do espectador, e em poucos dos suspeitos você para de considerar um envolvimento em algum nível – desde o segurança do museu, até um dos mafiosos mais relevantes de Boston em 1990.

O FBI não tinha, então, uma equipe especializada em crimes relativos ao roubo de arte, o que dificultou a forma como a qual a investigação foi tratada.  Outro ponto levantado na minissérie foi o fato de que os detetives estavam buscando ser promovidos, e a forma de ter êxito nos anos 90 era prendendo criminosos envolvidos com alguma máfia, o que também contribuiu para essa conduta. Eles também chegaram após a polícia de Boston e pessoal do museu, então a cena do crime estava contaminada (THIS IS A ROBBERY, 2021).

Foto tirada na cena do crime. As molduras vazias foram penduradas nas paredes novamente. (Netflix).

Os especialistas em segurança entrevistados também pontuam sobre o aumento dos roubos de arte, e como as obras são usadas como garantia para criminosos conseguirem acordos ou reduções nas penas, caso sejam presos. Ou, ainda, como meios de garantia de pagamento no mundo do crime, inclusive como moeda internacional.

Em Boston, em 1990, os dois maiores concorrentes seriam a máfia italiana ou a máfia irlandesa. Se fosse a máfia irlandesa, aquilo seria usado como garantia para a compra de armas para o IRA, por simpatizantes em Boston. E vamos admitir, havia muitos. Por outro lado, se fosse a máfia italiana, elas com certeza seriam usadas para outro tipo de crime, talvez como moeda de troca.

Dick Ellis, ex-chefe do Esquadrão de Arte e Antiguidades da Scotland Yard, em um dos episódios (THIS IS A ROBBERY, 2021).

O Museu Isabella Stewart Gardner ofereceu uma recompensa de 1 milhão de dólares, logo após o roubo, para quem tivesse informações que levassem ao paradeiro das obras.  Sete anos depois, a recompensa subiu para 5 milhões de dólares, e depois para 10 milhões (Flynn, 2023). Mesmo assim, o caso continua frio, e quase todos os suspeitos identificados estão mortos hoje em dia.

O Tráfico Internacional de Arte e Itens Históricos

As obras de arte são valorizadas como itens de luxo há séculos, e isso não mudou – pelo contrário, a tendência aparente é que as transações e o comércio de arte persista mesmo em face da inflação. De acordo com o Art Market Report 2024, as vendas globais de arte chegaram a cerca de 65 bilhões de dólares, mais de 330.9 bilhões de reais (THE ART…, 2024).

Um panorama de fundo para a minissérie, que não é tão bem explorado quanto poderia, mas que ainda assim desperta curiosidade, é quanto ao tráfico internacional de arte. É mencionado em um dos seus episódios que, frequentemente, obras caríssimas são utilizadas como garantia em acordos ilícitos, ligadas a esquemas de lavagem de dinheiro, ou mesmo contrabandeadas para fazerem parte das “coleções particulares” (ou seja, ocultas) de indivíduos que muitas vezes fazem parte de alguma organização criminosa. E a ligação entre o roubo de arte e o crime ainda vai além dos exemplos supracitados. Como posto pela especialista em segurança, Lina Kolesnikova:

Há claros indícios da existência de ligações estabelecidas entre o roubo de obras de arte e o crime organizado, evasão fiscal e o financiamento de terrorismo. Grandes redes ilícitas gravitam em torno de tais atividades. O comércio e tráfico de obras de arte é uma das atividades mais lucrativas associadas ao crime organizado (Kolesnikova, 2023, tradução nossa [1]).

No que tange ao financiamento de grupos terroristas, o tráfico de arte (e o chamado “artnapping” [2]) já é uma prática consolidada, utilizada desde 1976 – nesta ocasião, pelo Irish Republican Army (Kolesnikova, 2023). Seja obtendo as peças de museus ou de sítios arqueológicos, o tráfico de arte está ligado a diversos grupos e ataques. A exemplo de Mohammed Atta, um dos líderes no ataque do 11 de Setembro de 2001, que tentou vender antiguidades afegãs para pagar seu curso de piloto, seis meses antes. Ela emergiu como uma alternativa mais segura de obtenção de fundos, ainda que não tão lucrativa quanto os contrabandos de armamentos, de pessoas e de drogas, por exemplo (Hill, 2016; CRACKING…, 2023).

Apesar da falta de números precisos, estima-se, em geral, que o comércio ilegal de bens culturais é a terceira maior atividade criminosa internacional – depois do tráfico de drogas e de armas (Bardon, 2020).

O Estado Islâmico chegou a criar um “departamento de ‘recursos naturais’ que foca especificamente em antiguidades enterradas” (Kolesnikova, 2023, tradução nossa [3]). É interessante notar que as organizações frequentemente se aproveitam da instabilidade política nos Estados em que roubam as antiguidades de sítios arqueológicos, tendo se observado um aumento exponencial de peças clandestinas advindas do Oriente Médio após a Primavera Árabe, em 2011 (MET…, 2022).

É claro que o tráfico de arte não se restringe a organizações externas aos museus, ainda que seja realizado com menos frequência. É o caso do ex-diretor do Museu do Louvre e então embaixador francês para cooperação internacional em termos de patrimônio cultural, Jean-Luc Martínez, que foi acusado e preso em 2022 pelo envolvimento em fraude e cumplicidade relativa a obras egípcias roubadas durante a Primavera Árabe. A investigação envolveu não somente a França, como os Estados Unidos (através da descoberta que o MET havia comprado algumas das obras pensando ser de origem legítima) e Emirados Árabes Unidos (Chrisafis, 2022).

Imagem da Operação Athena II da INTERPOL e WCO, em 2019 (INTERPOL).

Diversos esforços são tomados pelos Estados, em suas forças policiais e na cooperação internacional, claramente necessária para o combate a esse mercado ilícito, através das Organizações apropriadas. Em 1970, foi elaborada, em conferência da UNESCO, a Convenção Relativa às Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais. Ela foi firmada de modo a estabelecer algumas providências aos Estados para proteger os seus respectivos bens culturais e históricos, bem como os de outrem, proibindo a importação e exportação ilícita de tais itens explicitamente em suas legislações e em tentativa de prevenir mais roubos.

Outras Organizações Internacionais, como a INTERPOL e a Organização Mundial das Alfândegas (WCO), e Organizações Intergovernamentais Regionais como a OSCE e a Europol, estão constantemente realizando operações investigativas na tentativa de recuperar artefatos e obras de arte roubadas, e milhares de itens têm sido encontrados, bem como dezenas de suspeitos presos, nos últimos anos. A INTERPOL elaborou, ainda, uma base de dados de obras roubadas, alimentada pelos relatórios das polícias dos Estados e pela UNESCO e apurada pelos experts empregados na Organização. Ela está disponibilizada para o público geral e possui mais de 52 mil itens registrados (STOLEN…, [2024?]). Há ainda, um aplicativo chamado ID-Art, para facilitar a identificação pelo público, e consequentemente as investigações da Organização (INTERPOL…, 2021).

Anúncio de artefatos históricos chineses procurados pela INTERPOL após roubo em um museu, em 2023 (INTERPOL).

Considerações Finais

É comum torcermos para os ladrões, em filmes de grandes roubos – como uma espécie de Robin Hood modernos, suas narrativas os tornam os mocinhos na perspectiva apresentada. Porém, no que se refere ao Roubo do Museu Isabella Stewart Gardner, é dificilmente o caso, e a minissérie torna isso claro. Ela certamente deixa o espectador com mais perguntas do que respostas, contemplativo por dias após assisti-la. Essa é a beleza e a maldição a se estudar um caso não resolvido. Quem eram os ladrões? Será que havia envolvimento interno dos seguranças do museu? Foi um feito de alguma organização criminosa? Onde estão as obras hoje em dia? O roteiro e a estruturação das entrevistas, seus cortes e edição elaboram o mistério na mente, quase como se você próprio estivesse revisitando os arquivos do caso e montando um quadro, passando uma linha vermelha em cada ponto.

Contudo, ambos roteiro e edição são também seus maiores inimigos. Como mencionado anteriormente, a série toca de maneira superficial na possibilidade de que as obras tenham deixado os Estados Unidos, sendo contrabandeadas e atingindo o âmbito internacional. Uma das principais teorias, devido ao modus operandi, em torno do IRA ter sido o responsável pelo roubo, acaba por ser brevemente elaborada, enquanto há um grande cuidado em explicar sobre as máfias de Boston à época e seus integrantes-chave como suspeitos, ou mesmo ao demorar-se em Myles Connor, mais do que o necessário. É claro que deve-se levar em consideração que o caso ainda está aberto, e algumas informações provavelmente não foram incluídas para não prejudicar a investigação oficial. Mas, não há como escapar do sentimento de que deveria ter mais para a minissérie, talvez um episódio ou dois.

Resta esperar que alguma informação nova surja para resolver esse mistério. Enquanto isso não ocorre, o museu permanece com molduras vazias em suas paredes, e as treze obras seguem desaparecidas.

Notas

[1] There are clear indications of existence of established links between the theft of works of art and organised crime, tax evasion and the financing of terrorism. Large underground networks gravitate around such activities. Trade and trafficking of works of art is one of the most lucrative activities associated with organised crime (Kolesnikova, 2023).
[2]  Uma junção de art (arte) com kidnapping (sequestro), o artnapping é uma prática ilícita que se traduz no furto ou roubo de uma obra de arte, com os infratores pedindo uma quantia em dinheiro como resgate da obra em questão.
[3] (…) “natural resources” department that specifically focused on buried antiquities (Kolesnikova, 2023).

Referências

BARDON, Agnès. Traficantes de arte: pilhagem das identidades dos povos. UNESCO, 14 out. 2020. Disponível em: https://www.unesco.org/pt/articles/traficantes-de-arte-pilhagem-das-identidades-dos-povos. Acesso em: 10 abr. 2024.

CHRISAFIS, Angelique. Former head of Louvre charged in Egyptian artefacts trafficking case. The Guardian, 26 maio 2022. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2022/may/26/former-louvre-head-jean-luc-martinez-charged-egyptian-antiquities-trafficking-case. Acesso em: 10 abr. 2024.

CONVENTION on the Means of Prohibiting and Preventing the Illicit Import, Export and Transfer of Ownership of Cultural Property. 17 nov. 1970. Disponível em: https://www.unesco.org/en/legal-affairs/convention-means-prohibiting-and-preventing-illicit-import-export-and-transfer-ownership-cultural. Acesso em: 11 abr. 2024.

CRACKING down on illicit art trade to improve security – The OSCE’s critical role. OSCE, 13 abr. 2023. Disponível em: https://www.osce.org/stories/cracking-down-on-illicit-art-trade-to-improve-security. Acesso em: 9 abr. 2024.

FLYNN, Sheila. Police imposters pulled off the world’s biggest art heist 33 years ago. Can a haunted man and $10m reward solve it? Independent, 19 mar. 2023. Disponível em: https://www.independent.co.uk/news/world/americas/gardner-museum-art-theft-heist-boston-b2303056.html. Acesso em: 11 abr. 2024.

HILL, Charles. A Euro Border Guard and Hybrid Warfare. An Art Theft Perspective: Human Dimensions and a Moral Imperative. Connections – The Quarterly Journal, 2016, v. 15, n. 4, p. 111-120. Disponível em: https://connections-qj.org/article/euro-border-guard-and-hybrid-warfare-art-theft-perspective-human-dimensions-and-moral. Acesso em: 9 abr. 2024.

INTERPOL launches app to better protect cultural heritage. INTERPOL, 6 maio 2021. Disponível em: https://www.interpol.int/en/News-and-Events/News/2021/INTERPOL-launches-app-to-better-protect-cultural-heritage. Acesso em: 10 abr. 2024.

ISABELLA Stewart Gardner: an unconventional life. Isabella Stewart Gardner Museum, [s.d.]. Disponível em: https://www.gardnermuseum.org/about/isabella-stewart-gardner. Acesso em: 11 abr. 2024.

KOLESNIKOVA, Lina. Stolen masterpieces: Assessing the impact of artnapping. [Entrevista concedida a] James Thorpe. ISJ – International Security Journal, 5 set. 2023. Disponível em: https://internationalsecurityjournal.com/stolen-masterpieces-artnapping. Acesso em: 11 abr. 2024.

MET e Louvre envolvidos no caso de tráfico internacional de antiguidades. Estado de Minas, 7 jun. 2022. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/cultura/2022/06/07/interna_cultura,1371586/met-e-louvre-envolvidos-no-caso-de-trafico-internacional-de-antiguidades.shtml. Acesso em: 10 abr. 2024.

STOLEN Works of Art Database. INTERPOL, [2024?]. Disponível em: https://www.interpol.int/en/Crimes/Cultural-heritage-crime/Stolen-Works-of-Art-Database. Acesso em: 10 abr. 2024.

THE ART Basel and UBS Global Art Market Report 2024. UBS, [2024?]. Disponível em: https://www.ubs.com/global/en/our-firm/art/collecting/art-market-survey.html#:~:text=Global%20art%20sales%20continue%20to,pre%2Dpandemic%20level%20in%202019. Acesso em: 10 abr. 2024.

THIS IS A ROBBERY: The World’s Biggest Art Heist. Direção de Colin Barnicle. Estados Unidos: Barnicle Brothers Production; TriBeCa Productions, 2021. 1 minissérie (4 episódios, 210 min.). Disponível em: https://www.netflix.com/title/81032570. Acesso em: 14 mar. 2024.

Mariana de Castro Lopes Alphonsus de Guimaraens

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