ACORDO UE – MERCOSUL: ESPERANÇA OU TEMOR?

ACORDO UE – MERCOSUL: ESPERANÇA OU TEMOR?

A criação de blocos econômicos que permitam a prática de um comércio mais fluido, livre de taxações e outras barreiras alfandegárias é uma das melhores estratégias para aumentar a integração econômica e até política de qualquer região do mundo. Este é o objetivo tanto da União Europeia (UE) no continente europeu, quanto do MERCOSUL (Mercado Comum do Sul) no subcontinente Sul-americano.

Diante disso, para aumentar ainda mais a fluidez das trocas globais econômicas, políticas e sociais para além da integração regional entre países, é necessária uma integração entre as próprias regiões. É sobre isso que se trata (ou assim dizem seus defensores) o Tratado de Livre Comércio entre a UE e o MERCOSUL. O acordo, que teve suas negociações concluídas em 2019, vem sendo desenhado por setores empresariais e governamentais dos países envolvidos desde os primeiros anos após a fundação dos blocos econômicos. Para entender melhor suas possíveis consequências e o porquê as tentativas de concluí-lo já duram quase 30 anos, é preciso, antes, analisar os dois blocos de forma separada.

O nascimento da UE e do Mercosul

Após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), uma das maiores prioridades das lideranças européias era evitar que mais guerras, subsequentes ao conflito com maiores perdas humanas da história recente, surgissem no continente. Foi neste contexto que a Comunidade Econômica Europeia (CEE) foi criada. A ideia era que uma integração econômica bem-feita entre os países europeus desencorajaria novas guerras, já que as economias estariam profundamente interligadas (COSTA, 2020).

Contudo, a CEE não parou de evoluir e o que surgiu como um bloco de mera integração econômica se transformou, aos poucos, e principalmente a partir dos anos 1990, em uma união política e monetária nomeada de União Europeia. De acordo com Costa (2020); 

[…] o que começou como uma união essencialmente econômica evoluiu para uma organização que abrange um número cada vez maior de áreas de políticas, que hoje incluem política externa, de segurança e defesa, desenvolvimento e ajuda humanitária, além de mudanças climáticas, meio ambiente e saúde, justiça e migração (COSTA, 2020, p. 31)

Já o MERCOSUL foi fundado por iniciativa brasileira nos anos 1990 durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), graças à retórica regionalista adotada pelo então presidente. Além da integração regional alinhar-se com os interesses dos governos de outros grandes atores sul-americanos, como a Argentina, a criação do MERCOSUL fazia com que o Brasil tomasse um papel mais decisivo no debate internacional, bem como o de líder regional. Este era o grande objetivo de FHC para a política externa brasileira (VIGEVANI e CEPALUNI, 2011).

A aproximação entre a UE e o MERCOSUL e as tentativas de criar um acordo

Após o fim da Guerra Fria (1946-1991), a nova configuração geopolítica do mundo apontava para a intensificação da globalização liberal, comandada pelos Estados Unidos (EUA), bem como para uma crescente necessidade por parte de outras potências de expandir política e economicamente para novos mercados. Foi pensando nisso que as lideranças de ambos os blocos econômicos demonstraram interesse em integrar suas atividades econômicas externas através de um Tratado de Livre Comércio (TLC).

As primeiras tentativas de um acordo começaram em 1999. Porém, devido à falta de coesão interna do MERCOSUL, principalmente no que diz respeito às relações bilaterais entre Brasília e Buenos Aires, e ao resultante desencontro de objetivos entre a UE e o MERCOSUL (a exemplo da exportação livre de tarifas do agronegócio sul-americano prejudicar o agronegócio europeu), as negociações foram suspensas no ano de 2007. Além disso, a ascensão de governos progressistas, focados em reforçar a Cooperação Sul-Sul[1] tanto no Brasil quanto na Argentina, ajudou a colocar esses planos em pausa.

O impeachment de Dilma Rousseff (2011-2016), no Brasil, e a eleição de Maurício Macri (2015-2020), na Argentina, marcaram o fim dos governos orientados à esquerda nos dois países líderes do MERCOSUL. A partir disso, o TLC UE-MERCOSUL voltou a ser discutido em nível governamental. Mesmo assim, o desencontro de interesses entre os blocos, ainda que atenuado, continuou sendo um grande entrave para a fluidez das negociações do tratado (PENAFORTE, RIBEIRO, BONES, 2018). 

O fim das negociações, mas só o início da burocracia

Em julho de 2019, após 20 anos dos primeiros rascunhos de um acordo, as negociações para o TLC UE-MERCOSUL foram finalmente concluídas. O tratado negociado, caso venha a ser concluído, representará uma das maiores áreas de livre-comércio do mundo, abrangendo uma área de 780 milhões de habitantes e 20 trilhões de dólares em PIB, ou 25% do PIB mundial (SALGADO e BRESSAN, 2021).

Apesar das negociações terem encontrado um fim, até o TLC UE-MERCOSUL entrar de fato em efeito há uma miríade de revisões técnicas dos termos do acordo e processos políticos internos em todos os países-parte pela frente. A despeito disso, o Secretário de Negociações Bilaterais e Regionais nas Américas do governo brasileiro, Pedro Miguel da Costa e Silva (2021), garante que:

Não se cogita renegociar ou reabrir o acordo. […] a Comissão Europeia negociava e falava em nome do bloco, mas todos os países membros da União Europeia eram permanentemente consultados. Nenhum deles pode, agora, alegar que desconhecia os termos acordados (SILVA, idem).

Sendo assim, o secretário do Ministério das Relações Exteriores brasileiro garante que não há como regressar para a fase de negociações que durou duas décadas e praticamente cinco trocas de governo no Brasil. Contudo, por mais que o secretário tenha garantido que todos os países-parte do lado europeu estão cientes dos termos, isso não significa que alguns deles não possam vir a colocar objeções contra alguns itens do tratado, a exemplo do protecionismo do setor agrário da França, que teme perdas comerciais com a abertura do mercado europeu ao agronegócio sul-americano:

Uma abertura econômica que caiba a liberação de produtos agrícolas seria favorável ao bloco [ao MERCOSUL] em virtude do reconhecido dinamismo desse setor. Por outro lado, os interesses específicos de segmentos comerciais e sindicais com possíveis perdas do bloco europeu serão obstáculos ao avanço do acordo (PENAFORTE, RIBEIRO, BONES, 2018, p.16)

Porém, por mais que o tratado ainda não esteja formalizado, as duas instituições ficam cada vez mais próximas de atingir os objetivos de integração, rascunhados em 1999,  mediante o passo dado em 2019. Considerando a possibilidade do acordo ser oficialmente celebrado ainda nesta década, resta analisar quais são as perspectivas futuras para o Brasil e principalmente para o MERCOSUL com a criação de tamanha área de livre comércio.

O que esperar do TLC UE-MERCOSUL

Por mais que um acordo de livre comércio entre o MERCOSUL e a União Europeia pareça, superficialmente, trazer apenas vantagens para ambas às partes, existem críticas por parte de alguns especialistas quanto a superestimação dos possíveis benefícios pros países do Cone Sul[2]. Em seu artigo intitulado “Acordo MERCOSUL-União Europeia: entre o discurso e a realidade.”, o doutor em Relações Internacionais Charles Pennaforte, em conjunto com os graduandos Genaro da Silva Ribeiro e  Nairana Karkow (2018) esboçam dúvidas quanto a equidade dos ganhos por parte da União Europeia e do MERCOSUL, demonstrando preocupação com o fato do acordo poder vir a trazer menos benefícios pros países-parte sul-americanos do que se espera:

Os perigos que cercam o setor industrial brasileiro a partir destas propostas parecem superar muito os possíveis benefícios dados ao setor agropecuário. Acreditamos que a avaliação sobre os possíveis benefícios gerados por um acordo, obedecem a uma perspectiva linear que não leva em consideração as assimetrias das relações comerciais entre o Mercosul e a UE. […] a produção de produtos de maior valor agregado, cujo desenvolvimento deveria constituir a prioridade dos países em desenvolvimento, teria seu crescimento posto em cheque devido à competição desleal em termos tecnológicos. (PENAFORTE, RIBEIRO, BONES, 2018, p.16-17)  

Em contrapartida àqueles que se preocupam com a perda de soberania dos países do Cone Sul e com o enfraquecimento das indústrias locais (que ainda se encontram em desenvolvimento), representantes do setor empresarial brasileiro vêem o acordo como uma grande oportunidade de crescimento e investimento para as empresas sul-americanas.

De acordo com os técnicos do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Marcelo José Braga Nonnenberg e Fernando José Ribeiro (2019), as vantagens comerciais oferecidas pelo acordo têm o potencial de fazer a produtividade das economias sul-americanas aumentar, principalmente da brasileira. Eles também rebatem a noção de que ganhos para a UE significam perdas para o MERCOSUL:

[…] o comércio internacional não pode ser entendido como um jogo de soma zero, em que os ganhos de um lado são perdas do outro. A liberalização do comércio, com redução de barreiras tarifárias e não tarifárias, representa ganhos para todos, na medida em que permite aos países aproveitarem as suas vantagens comparativas, exportando os produtos em que são mais competitivos e importando a um preço menor os bens em que são menos competitivos (NONNENBERG e RIBEIRO, 2019, p.06)

 Além disso, como apontado por Vitória Totti Salgado e Regiane Nitsch Bressan (2020), o acordo deu uma sobrevida para a importância do MERCOSUL, que vinha sendo diminuída desde o governo Temer (2016-2018) no Brasil.   

A partir de tudo o que foi apresentado nesse artigo, só podemos concluir que, caso o Tratado de Livre-Comércio União Europeia-MERCOSUL venha a ser formalizado, apenas o tempo nos mostrará se tal acordo de proporções inéditas entre instituições internacionais será um avanço ou um retrocesso.

BIBLIOGRAFIA

CEPALUNI, Gabriel; VIGEVANI, Tullo. Política externa brasileira na era Fernando Henrique Cardoso: a busca de autonomia pela participação. In: A Política Externa Brasileira: A busca de autonomia, de Sarney a Lula. São Paulo: UNESP, 2011. p. 88-118.

COSTA, Oliver. Um aprofundamento e alargamento da UE. In: A União Europeia e sua Política Externa: Histórias, Instituições e Tomada de Decisão. Brasília: Cidade Gráfica, 2020. p. 31-65.

NONNENBERG, Marcelo José Braga; RIBEIRO, José Fernando. Análise preliminar do acordo Mercosul- -União Europeia. Carta de Conjuntura, n.44, 3º trimestre de 2019.

PENNAFORTE, Charles; RIBEIRO, Genaro da Silva; BONES, Nairana Karkow. ACORDO MERCOSUL-UNIÃO EUROPEIA: ENTRE O DISCURSO E A REALIDADE. IMPACTOS E PERSPECTIVAS. Revista Conjuntura Austral, Porto Alegre, vol.9, n.46, p. 5-21, abr/jun 2018.

SALGADO, Vitória Totti; BRESSAN, Regiane Nitsch. O ACORDO DE ASSOCIAÇÃO MERCOSUL-UNIÃO EUROPEIA E A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA. Revista Neiba, Cadernos Argentina-Brasil, Rio de Janeiro, Vol. 9, 2020.

SILVA, Pedro Miguel da Costa e. Acordo MERCOSUL-União Europeia para principiantes. Ministério das Relações Exteriores, 2021. Disponível em: <https://www.gov.br/mre/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/discursos-artigos-e-entrevistas/diplomatas/artigos/acordo-mercosul-uniao-europeia-para-principiantes-gazeta-do-povo-26-03-2021>. Acesso em: 02 ago 2021. 


[1] Assim é chamada a estratégia diplomática de priorizar relações internacionais com países do Sul Global, ou seja, dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento

[2] Porção sul da América do Sul

Letícia Martins Lima

Internacionalista em formação pela Universidade Federal de Goiás, gosta da área geral de Relações Internacionais, mas tem interesse mais específico nas áreas de Política Internacional e Diplomacia.

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