Além da Liberdade: Um filme sobre a Birmânia

Além da Liberdade: Um filme sobre a Birmânia

Além da Liberdade (The Lady) é um filme baseado na vida de Aung San Suu Kyi (Michelle Yeoh), considerada um símbolo de resistência birmanês. Resistência que permanece aos dias atuais, uma vez que a luta de Suu Kyi ainda está longe de terminar, fazendo do filme The Lady de extrema importância para aqueles que desejam compreender de forma elementar a questão da Birmânia entre sua independência (1948) à contemporaneidade.  

Primeiramente, Birmânia ou Myanmar? A problemática sobre qual termo é o correto para se referir ao território sudeste ásiatico começa em 1989, quando a junta militar, liderada pelo general Ne Win, mudou “Birmânia” para “Myanmar” e renomeou uma série de outros lugares. Desde então, o uso da nomenclatura antiga exprime resistência, não só pela população local como para alguns países do sistema internacional. Nesse sentido, muitas potências globais não reconhecem a tomada de poder pelo regime militar e não concordam com a mudança de nome do país, como acontece na França:

“É praticamente impossível ouvir falar de Myanmar na França. Nossos diplomatas até receberam em 2008 uma recomendação muito oficial, lembrando-os de que a pátria de Aung San Suu Kyi era de fato a Birmânia e não Myanmar […] a maioria dos meios de comunicação ainda prefere usar “Birmânia” em vez de “Mianmar”. Ainda recentemente, o Le Monde intitulou, por exemplo: “Birmânia convocada a tomar medidas para prevenir o genocídio contra os Rohingya” (ILS VOYAGENT, 2020)

Um pouco mais sobre a Birmânia:

Myanmar, também conhecido como Birmânia, fica no sudeste da Ásia. É vizinho da Tailândia, Laos, Bangladesh, China e Índia. Tem uma população de cerca de 54 milhões, a maioria dos quais falantes de birmanês. A maior cidade é Yangon (Rangoon), mas a capital é Nay Pyi Taw. A principal religião é o budismo. Existem muitos grupos étnicos no país, incluindo os muçulmanos Rohingya. Myanmar é governado por uma junta militar há muitos anos, desde que conquistou a independência do domínio colonial britânico em 1948. A União da Birmânia começou como uma democracia parlamentar, como a maioria de seus novos vizinhos independentes no subcontinente indiano. Mas a democracia representativa durou apenas até 1962, quando o general U Ne Win liderou um golpe militar e manteve o poder pelos vinte e seis anos seguintes. (CFR, 2021)

 Ne Win instituiu uma nova constituição em 1974 com base em uma política isolacionista e um programa econômico socialista que nacionalizou as principais empresas de Mianmar. A situação econômica deteriorou-se rapidamente e uma economia de mercado negro se consolidou. Em 1988, a corrupção generalizada, rápidas mudanças na política econômica relacionada à moeda de Myanmar e a escassez de alimentos levaram a protestos massivos liderados por estudantes. Em agosto de 1988, o exército reprimiu os manifestantes, matando pelo menos três mil e deslocando outros milhares.(CFR, 2021)

Adequamos, portanto, o nome Birmânia usado durante o filme Além da Liberdade. O filme acompanha dois aspectos, o lado pessoal de Suu Kyi e seu ativismo político em prol de uma Birmânia livre de domínio total militar, que congruentemente se inter-relacionam. A história se estabelece a partir da independência do país em 1948, emancipação que teve forte participação de Bogyoke Aung San, pai e grande inspirador político de Suu Kyi. Bogyoke dedicou sua vida a perfazer o domínio britânico em seu país, fundando e participando de diversos grupos e movimentos políticos birmaneses revolucionários e em prol da liberdade da nação. Entretanto, seis meses antes da efetuação política que traria a independência de seu país, em 19 de julho de 1947, foi assassinado pela oposição. Neste momento em diante, instaura a trajetória de Suu Kyi em continuar os passos de seu pai no ativismo pró-democracia birmanesa, mudando apenas o foco opositor, antes a Grã-bretanha e agora a junta militar.

Sua história e manifestação política

Suu Kyi se mudou para a Inglaterra enquanto jovem, casou-se e teve dois filhos. Vivia uma vida comum e usual na Inglaterra, até quando, infelizmente, recebeu a notícia que sua mãe se encontrava gravemente doente em 1988. Decidiu assim, retornar ao país de origem e cuidar de sua mãe. Em pouco tempo Aung San Suu se encontrava atônita sobre a conjuntura birmanesa, na qual os opositores políticos e movimentos estudantis eram fortemente reprimidos. Suu é, portanto, impelida pelo inolvidável passado de seu pai e por suas convicções à liderar uma posição democrática contra o governo ditatorial e opressor liderado pelos militares. 

Em um episódio importante do filme, na qual muitos figurantes birmaneses se emocionaram com a cena, Suu Kyi realizou seu primeiro discurso que promoveria sua campanha eleitoral, que ocorreu logo após Ne Win (primeiro-ministro) renunciar em 1988. Entretanto, como o desenvolvimento das organizações políticas e parlamentares não satisfizeram os militares, um círculo de oficiais do exército leais a Ne Win organizou um golpe no final de setembro que criou um governo do Conselho Estadual de Restauração da Lei e Ordem (SLORC). Com isso, Suu continuou promovendo uma campanha em oposição ao governo vigente. 

Em julho de 1989, no aniversário do assassinato de seu pai, ela acusou Ne Win de ainda controlar o exército e o SLORC. No dia seguinte, ela foi colocada em prisão domiciliar e proibida de se envolver em atividades políticas e de ter contato com a mídia estrangeira ou embaixadas e, algum tempo depois, também teve as visitas de seu marido e filhos restringida. O filme se prende, a partir desse momento da vida de Suu, a representar o impasse da escolha da ativista em lutar pelo seu país e ao mesmo tempo lidar com a solidão de mais de 15 anos em prisão domiciliar. O governo birmanês em diferentes momentos implicou que a prisão de Suu poderia ser interrompida a qualquer momento que ela decidisse sair do país, mas esta alternativa Aung San Suu nunca escolheu, nem mesmo quando descobriu que seu marido estava com câncer. Como observado pela revista Time:

Sob prisão domiciliar na maior parte das últimas duas décadas, Suu Kyi provou ser um símbolo de resiliência dentro da tirania. A junta a encorajou a se juntar ao marido doente na Inglaterra; mas ela ficou sabendo que se ela partisse, ela nunca teria permissão para voltar. Como a música do U2 “Walk On”, dedicada a Suu Kyi, proclama: “Você poderia ter voado / Um pássaro cantando em uma gaiola aberta / Quem só voará, só voará para a liberdade.” Bono do U2 escreveu em TIME: “Sua voz tranquila de razão faz o mundo parecer barulhento, louco; é um mantra baixo de graça em uma era de terror. ”

Em vários momentos do filme a figura de Gandhi aparece de forma simbólica, seja em um livro carregado por Aung San Suu, seja por meio de uma fotografia ou quadro. Suu Kyi, como observado por Bono, em meio a tirania, a mortes e opressão seguiu sendo pacífica e se tornando junto a Gandhi um dos maiores símbolos do ativismo não violento. Tão importante foi seu papel na Birmânia e a forma como fomentou uma política pacífica que em  1991, foi ganhadora do Prêmio Nobel da Paz. 

Em 12 de novembro de 2010, dias após o Partido da Solidariedade e Desenvolvimento (USDP), apoiado pela junta, ter vencido as eleições realizadas após um intervalo de 20 anos, a junta finalmente concordou em assinar ordens permitindo a libertação de Aung San Suu. Ao longo dos anos após sua libertação, Suu ocupou vários cargos governamentais, incluindo o de Conselheira de Estado e de Ministro das Relações Exteriores. E enfrentou polêmicas como a questão de intolerância e violência às minorias Rohingya: 

Desde que se tornou conselheira estadual de Mianmar, sua liderança foi parcialmente definida pelo tratamento da minoria Rohingya, de maioria muçulmana, no país. Em 2017, centenas de milhares de Rohingya fugiram para o vizinho Bangladesh devido a uma repressão militar desencadeada por ataques mortais a delegacias de polícia no estado de Rakhine. Mianmar agora enfrenta um processo acusando-o de genocídio no Tribunal Internacional de Justiça (CIJ), enquanto o Tribunal Penal Internacional está investigando o país por crimes contra a humanidade. Os ex-apoiadores internacionais de Suu Kyi a acusaram de não fazer nada para impedir o estupro, assassinato e possível genocídio ao se recusar a condenar os militares ainda poderosos ou reconhecer relatos de atrocidades. Alguns inicialmente argumentaram que ela era uma política pragmática, tentando governar um país multiétnico com uma história complexa. (BBC, 2021)

Em 2021 a vida de Suu Kyi toma proporções que remetem ao passado: os militares acusaram seu partido, a Liga Nacional para a Democracia, de fraude nas eleições que venceram em novembro de 2020, ocasionando um golpe militar em 1 de fevereiro de 2021. Os militares de Mianmar reprimiram brutalmente os manifestantes pró-democracia desde o golpe de fevereiro, matando mais de 800 pessoas e prendendo mais de 4.000, de acordo com o grupo de monitoramento Associação de Assistência para Prisioneiros Políticos (AAPP). (BBC, 2021)

Atualmente, Suu Kyi enfrenta duras acusações e permanece prisioneira política, de acordo com a BBC(2021) “As seis acusações contra Suu Kyi, 75, também incluem a importação ilegal de rádios portáteis e violação das regras do coronavírus. Seus advogados disseram que ela parecia estar com boa saúde na reunião na capital Nay Pyi Taw, mas não teve acesso à mídia durante sua prisão domiciliar e tinha conhecimento limitado do que estava acontecendo no país.”O filme Além da Liberdade resume a grosso modo a vida de Aung San Suu Kyi até a sua liberdade em 2010. É um filme modesto, porém sensível e que ao assistir anseia o telespectador a entender e estudar mais sobre a Birmânia, país com uma história de longos anos de opressão e paupere que obscureceu paisagens naturais fabulosas e únicas. A luta de Suu é antiga e, infelizmente, ainda não teve um fim, mas que com certeza junto a seu pai se tornará um dos maiores símbolos não só de seu país como no mundo todo.

REFERÊNCIAS

ILSVOYAGENT. BIRMANIE AU MYANMAR?. Disponível em:< https://ilsvoyagent.fr/2020/01/29/birmanie-ou-myanmar > Acesso em: 03 de jun. 2021

CFR. Myanmar’s Troubled History: Coups, Military Rule, and Ethnic Conflict. Disponível em:<https://www.cfr.org/backgrounder/myanmar-history-coup-military-rule-ethnic-conflict-rohingya> Acesso em: 03 de jun 2021

TIME. The Lady: Michelle Yeoh as Political Heroine Aung San Suu Kyi. Disponível em <https://entertainment.time.com/2012/04/12/the-lady-michelle-yeoh-as-political-heroine-aung-san-suu-kyi/> Acesso em 04 de jun. 2021
BBC. Myanmar: Aung San Suu Kyi appears in court for first time since military coup. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-asia-57227241> Acesso em 04 de jun. 2021

Ana Clara Bueno

Estudante de Relações Internacionais pela UFG. Apaixonada por Direitos Humanos, Segurança internacional e Política Externa. Mescla todas suas paixões com produções cinematográficas. Futura ativista dos Direitos dos Animais.

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