CEUTA E MELILLA: AS CIDADES ESPANHOLAS NA ÁFRICA E A CRISE MIGRATÓRIA DA UNIÃO EUROPEIA
Em maio de 2021, a entrada de cerca de 9.000 pessoas – um terço delas menores de idade – na cidade espanhola de Ceuta, localizada ao norte de Marrocos, resultou em uma crise humanitária e diplomática sem precedentes na região. Por conta de sua localização, Ceuta e sua cidade-irmã, Melilla, são um ponto conveniente de entrada de refugiados e migrantes africanos no espaço europeu. Ainda assim, há mais fatores a considerar ao tratar deste mais recente evento e sobre o que estas cidades vêm significando no âmbito das migrações. Desta forma, este texto pretende abordar alguns dos fatores das relações entre Espanha e Marrocos que levaram à crise e o que isto pode significar para o futuro.
O QUE SÃO CEUTA E MELILLA?
Ceuta e Melilla são as duas cidades autônomas espanholas que ainda se encontram no continente africano, ao norte de Marrocos e no litoral do mar Mediterrâneo. De fato, ambas são parte do território espanhol desde o século XVI e, portanto, nunca fizeram parte do reino de Marrocos, embora tenham sido parte de sérias disputas diplomáticas desde então. Em termos geográficos, as duas cidades se caracterizam como exclaves, ou seja, partes do território de uma nação encravados em outro país. Sua posição como as únicas fronteiras terrestres entre Europa e África as coloca como uma das mais convenientes rotas para migração entre os dois continentes (MIKHAEL, 2017).
Ambas as cidades possuem um misto de cultura árabe e europeia, o que inclui o uso das línguas espanhola e arábica, além da presença do Cristianismo e do Islã, mas sua única moeda é o Euro. Possuem autonomia local e governos próprios, com presença no Senado e na Câmara de Parlamentares espanhola (BBC, 2018). Não são Comunidades Autônomas, mas Cidades Autônomas sem capacidade legislativa, e tampouco fazem parte do espaço aduaneiro da União Europeia.
A questão migratória já era foco de preocupações de segurança nas cidades há anos, sendo que em 1993 iniciou-se o período de construção de cercas, que seriam reforçadas após incidentes em 1995, 1998 e 2005 (SCHAIN, 2013). As cercas já são uma parte conhecida da iconografia das crises migratórias, desde Estados Unidos a Hungria, Grécia e Áustria. Neste caso representam, assim como na Palestina, além de um obstáculo que impede a entrada de pessoas não autorizadas, uma forma de manter o domínio de um Estado sobre a reivindicação de outro. Ceuta e Melilla nunca fizeram parte de Marrocos, mas o crescimento da população marroquina nas cidades, bem como disputas territoriais sobre ilhas próximas, abre espaço para que representantes e apoiadores do reinado alauita tragam à superfície disputas territoriais e, como consequência, conflitos diplomáticos (ORTIZ, 2010; MIKHAEL, 2017).
AS RELAÇÕES ENTRE MARROCOS E ESPANHA: MIGRAÇÕES, SEGURANÇA E POLÍTICA
A disparidade de riqueza entre Espanha, que possui um PIB 12 vezes maior que o de Marrocos, e o reino alauita é uma das mais altas do mundo – não é à toa o massivo movimento entre as fronteiras e o aumento da população marroquina em Ceuta e Melilla. Desta forma, a Espanha possui um importante e único papel no controle de entrada de migrantes da Europa, com as duas exclaves sendo consideradas potenciais elos fracos no controle das fronteiras europeias (MIKHAEL, 2017). Os migrantes não vêm apenas de Marrocos, mas também dos demais países africanos. São pessoas que veem nas cidades oportunidades de entrar em território europeu no único caminho por terra entre os dois continentes. Ainda assim, a entrada é a nado. Como forma de ultrapassar o controle fronteiriço, é aproveitada a posição das enclaves entre Marrocos e o Mar Mediterrâneo.
As autoridades espanholas frequentemente utilizam o Acordo bilateral entre Marrocos e Espanha para expulsar pessoas que ultrapassaram ilegalmente as fronteiras. Em 2012, a Espanha representou 63% do total de rejeição de migrantes na Europa, sendo que oito em cada dez casos ocorreram nas duas enclaves (SCHAIN, 2013). Isto leva ao aumento dos pedidos de asilo, principalmente nos últimos anos. Apesar da regulação que data desde 1994, até 2014, não se havia formalizado nenhuma solicitação de asilo nas cidades, e naquele ano ocorreram pedidos suficientes para justificar a criação de oficinas de proteção internacional nas fronteiras (FERRERO, 2019). Já entre 2016 e 2017, o número de migrantes havia dobrado.
Por um lado, o aumento dos pedidos de asilo a partir deste período e a crescente presença de migrantes menores de idade – sobretudo na mais recente das crises – trazem à tona a urgente necessidade de revisão da legislação relativa às migrações em Ceuta, Melilla e nas Ilhas Canárias (MARTÍN, mai. 2021a). Por outro, também faz crescer as preocupações de segurança por parte das autoridades europeias. Os ataques terroristas em Barcelona em 2017, por instância, tiveram como principais suspeitos migrantes de origem marroquina. Isto chamou atenção para a capacidade da região de servir como campo de recrutamento do Estado Islâmico (MIKHAEL, 2017), algo exacerbado pelo fato de que as cidades são amplamente consideradas como não abrigadas pela cláusula de defesa coletiva da Organização Tratado Atlântico Norte (OTAN), uma das principais associações de defesa das quais a União Europeia é membro. Vale recordar, neste aspecto, que se deve levar em consideração outros fatores para além do texto do Tratado, como vontade política expressa (AZCÁRATE, 2020).
Frente a tudo isto, as fronteiras também têm sido sujeitas a jogos de poder entre a União Europeia e Marrocos, visto que, para além das disputas territoriais, este último ainda é capaz de exercer determinado nível de controle sobre a presença de migrantes em torno das cidades (MIKHAEL, 2017). Na crise de 2021, isto se torna particularmente emblemático por causa do possível uso da crise migratória como resposta à posição europeia frente ao Saara Ocidental. Vejamos a questão a seguir.
a. A questão do Saara Ocidental
O Saara Ocidental é considerado pela Europa e por outros atores internacionais como uma das “últimas colônias” na África e um território ocupado por Marrocos. Desta forma, é amplamente considerado que um dos motivos do estopim de migrações que ocorreu em maio foi a disputa comercial entre Marrocos e União Europeia, sobretudo a partir da afirmação da sentença do Tribunal de Justiça europeu, em 2016, de que a região seria uma entidade soberana. Isto tem como efeito imediato a não inclusão dos produtos agropecuários derivados da região no acordo comercial entre União Europeia e Marrocos.
No entanto, os Estados Unidos, durante o governo Trump, reconheceram a soberania marroquina sobre a região em troca do reconhecimento de Israel na questão palestina – posição que não foi alterada no governo Biden. Isto dá ao Marrocos uma maior motivação durante o que é considerado como estopim da crise de 2021: a decisão, por parte da Espanha, de admitir Brahim Gali, o líder de um movimento pela liberação do Saara Ocidental, para tratamento de COVID-19 em território europeu. Para muitos analistas e a oposição espanhola, isto levou Rabat a afrouxar seu controle de fronteiras, embora Madrid tenha buscado manter as duas questões separadas (MARTÍN, mai. 2021b).
A CRISE MIGRATÓRIA DE CEUTA E EFEITOS FUTUROS
No dia 16 de maio, ocorreu a abertura, por parte de Marrocos, das fronteiras em Ceuta. Desde o dia 17, entre 8.500 e 10.000 pessoas entraram no território pelo mar ou por pontos fracos das cercas, o que caracteriza o maior influxo de migrantes da história da Espanha – e entre estes números, centenas eram menores desacompanhados (MARTÍN, mai. 2021a). A resposta do governo espanhol foi mobilizar o exército das fronteiras. Até o dia 25, 7.500 destas pessoas já haviam retornado (EL PAÍS, mai. 2021). Outro efeito imediato foi a reafirmação da identidade europeia de Ceuta. “As fronteiras espanholas são fronteiras europeias”, adverte Ylva Johansson, a comissária europeia de Interior, ideia essa corroborada pela presidente da Comissão Europeia Úrsula Von Der Leyen. Há, por parte dos líderes europeus, a defesa do novo pacto migratório, que está em processo de negociação há alguns anos (MIGUEL E ABRIL, mai. 2021).
De fato, a legislação atual representa um sério obstáculo para pessoas que pedem asilo à Espanha, o que leva a críticas ao tratamento espanhol às pessoas refugiadas (FERRERO, 2019). O governo também tem sido criticado em relação à transparência, visto que ocultou o número de migrantes ilegais que atravessaram as fronteiras em Ceuta, Melilla e nas Canárias nos últimos anos (GONZÁLES, mai. 2025). A questão dos direitos humanos, portanto, se torna relevante, visto que o ocorrido desencadeou uma crise humanitária sem precedentes que afeta diretamente jovens e crianças, que não é resolvida pela atitude militarista de Madri.
Resta saber, ainda, o que isto significará para as relações entre Marrocos e Espanha. Madri afirma que as relações melhoraram desde a crise e se ofereceu para representar Marrocos frente à União Europeia (REUTERS, mai. 2021). Rabat, no entanto, continua a condenar a Europa sobre a questão do Saara Ocidental e o abrigo de Gali. Sua postura, na realidade, transcende suas tensões com a Espanha e é símbolo de sua estratégia de reivindicação da região (HERRANZ, mai. 2021).
A crise de Ceuta é apenas uma culminação de tensões que vêm se construindo há décadas e um sintoma de uma crise diplomática de maior escala. Para que um acontecimento semelhante não se repita, seriam necessárias mudanças sistêmicas tanto nos governos em questão como nos demais atores internacionais que influenciaram suas ações. Por enquanto, no entanto, o que resta é agir sobre os destroços que esta crise humanitária deixou.
Referências Bibliográficas
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AZCÁRATE, Francisco J. A. Ceuta, Melilla y el paraguas de la OTAN. Global Strategy Report, 16/2020.
CEUTA, Melilla Profile. BBC. 2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-africa-14114627>. Acesso em: 27 mai. 2021.
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GONZÁLES, Fernán. Sánchez oculta a Transparencia cuántos ilegales ha trasladado desde Canarias, Ceuta y Melilla. OK Diário España. Disponível em: <https://okdiario.com/espana/sanchez-oculta-transparencia-cuantos-ilegales-trasladado-desde-canarias-ceuta-melilla-7245095>. Acesso em: 27 mai. 2021.
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