“O PODEROSO CHEFÃO” E O MUNDO DO CRIME ORGANIZADO
Marlon Brando no papel de Don Vito Corleone (Foto: Steve Schapiro/ Getty Images)
Casamentos sicilianos, cabeças de cavalo, propostas irrecusáveis e uma narrativa de gerar incômodo em Frank Sinatra. Uma adaptação cinematográfica do livro homônimo do, nova-iorquino, Mário Puzo: “O Poderoso Chefão” (1972). O filme se consagrou na história do cinema mundial com a dinâmica dos clãs italianos do submundo criminal, eternizando a fictícia Família Corleone na cultura popular e transformando seu patriarca Vito – formalmente referenciado com Don Corleone – no padrinho mais famoso do planeta.
Devido ao vasto conhecimento de Puzo sobre o submundo do crime, houveram questionamentos internos nas organizações criminosas da época, se o autor possuía algum informante. Assim, como todo o realismo possível e algumas pitadas de fantasia, o best-seller literário, sob a direção de Francis Ford Coppola, explora uma temática digna de um departamento nas Nações Unidas: o mundo do crime organizado.
A DIÁSPORA ITALIANA E AS BÊNÇÃOS DO PADRINHO
“Por trás de toda grande fortuna há um crime.”
– Balzac
Ambientado na Manhattan dos anos de 1945 e inspirado nas verdadeiras Famílias da época (Bonanno, Colombo, Gambino, Genovese e Lucchese), o enredo aborda as relações das Famílias do submundo estadunidense em meio a realidade do pós-guerra. Desde a implementação da Lei Seca ocorrida em 1920, o principal foco econômico dos clãs italianos era o contrabando ilegal de bebidas alcoólicas (VEJA, 2021). De costa a costa, esses grupos fizeram proveito das restrições legislativas à importação, exportação e consumo de qualquer tipo de licor em solo norte-americano, e expandiram suas atuações ao mercado negro.
Na obra, a Genco Pura Olive Oil Company, empresa fundada por Corleone, além de comercializar no ramo alimentício como uma importadora de azeite italiano, era usada para encobrir os lucros ilícitos do comércio de álcool. Contudo, a imortal figura apadrinhadora do Don não surgiu dos frutos das oliveiras da Sicília, mas sim, da imagem de segurança e amparo que as Famílias possuíam na época. Com a chegada do século XX, uma industrialização em desenvolvimento e seu “American Way of Life”, os Estados Unidos da América se transformaram no destino de um grande fluxo de imigrantes europeus que sonhavam com melhores oportunidades. Quando a proibição foi publicada, cerca de 4 milhões de imigrantes italianos haviam se estabelecido no país, sendo que mais de 600 mil chegaram ao país durante o pós-Segunda Guerra, entre 1946 e 1970 (Palomba, 2023).
“E na nova terra ele mudou o nome para Corleone, tentando manter alguma ligação com sua aldeia natal. Foi uma das poucas atitudes sentimentais que realizaria na vida.”
– O PODEROSO CHEFÃO, pág. 201
Assim, envoltos em um cenário de instabilidade social, ausência de seguridade trabalhista e com necessidades básicas – alimentação, emprego e moradia – batendo à porta, a criminalidade não passa a ser vista como uma opção, mas transforma-se para muitos, na única saída. Dito isto, com mais incertezas cercando diversos futuros do que a garantia próxima de uma vida estável, nasce a figura protetora do padrinho das propostas irrecusáveis e da valiosa amizade. Nas palavras de Puzo, “um homem a quem todos recorriam em busca de auxílio e quem o fizesse jamais se desapontava” (Puzo, 1969, p.13)
Ainda que de forma fictícia e romantizada pelas lentes do cinema, a relação apresentada no longa entre pessoas socialmente vulneráveis e grupos criminosos, é um fator realista e extremamente recorrente nos dias atuais. Segundo Paarlberg (2022), os motivos pelos quais as pessoas se envolvem com a criminalidade engloba uma variada gama de fatores como estruturas econômicas, políticas migratórias estatais de deportação e legados de colonialismo, práticas que, assim como traumas, são passados de forma geracional. Tais gatilhos são o que criam as condições para que pessoas comuns se agarrem às oportunidades que podem proporcionar segurança, palavra que para diversos imigrantes ao redor do planeta, não faz lembrar a imagem do Estado.
Com isso em mente, é possível organizar, enquanto opostos, comunidades compostas por imigrantes e o Estado, sendo que a marginalização e repressão social do primeiro pelo segundo são o que alimentam a visão anti-estado que gera na ânsia por revolta contra o sistema opressor. Brutalidade policial, perfilamento étnico e racial e discriminação religiosa, geram como produto a xenofobia que perpetua como fogo por linhagens sociais a fio, enraizando ainda mais a inimizade entre as pessoas e o braço forte do Estado (Paarlberg, 2022).
DOS PÉS DE OLIVA A COCAÍNA: A ECONOMIA DAS FAMÍLIAS
Embora durante sua chefia, Vito tenha se mantido convicto sobre não permitir a adesão do clã às práticas de contrabando de entorpecentes, na atualidade, é impossível desvincular tal mercado com o mundo do crime organizado. De acordo com a reportagem de 2016 da BBC, o tráfico de drogas se configura nos dias de hoje como o comércio ilegal mais lucrativo do planeta, faturando trilhões de dólares a cada ano.
Em 2011, uma pesquisa desenvolvida pelo centro de estudos Global Financial Integrity (GFI), apresentou que dentre as atividades ilegais com maior lucro no mundo, quatro das cinco do pódio, são voltadas ao tráfico, estando em primeiro lugar o narcotráfico. A imagem a seguir, extraída do World Drug Report de 2022, apresenta a regionalidade dos problemas ocasionados pelo tráfico ao longo dos países americanos. Se na década de 1920, o que movia a tesouraria do submundo eram as apostas e o álcool, um século depois, os produtos mais buscados no mercado são os opioides, as armas e as pessoas.
Além de uma maior gama de ofertas, o crime organizado, como se conhecia nos anos em que se relacionam as ficcionais famílias de Puzo e Coppola, expandiram suas operações para fora das regiões costeiras dos EUA. Atuando nos mais diversos países, muitas vezes em colaboração com facções locais – como no caso da família Ndrangheta e sua parceria com o Partido do Comando Central, o PCC, no fluxo de drogas entre Américas e Europa (Insight Crime, 2019) -, ou se adaptando aos meios virtuais e aderindo aos crimes cibernéticos, como exposto por Tatiana Tropina, pesquisadora sobre as ilegalidades do mundo virtual:
“Criminosos cibernéticos empregam esquemas similares aos de B2B (negócios para negócios) para suas operações, a exemplo do sofisticado modelo de C2C (criminosos para criminosos), em que dados roubados e eficazes ferramentas para a facilitação das práticas criminosas no mundo virtual, estejam disponíveis por redes digitais”1
– Tropina, 2012, pág.160
LAÇOS: FAMILIARES, CULTURAIS E IMORTAIS
É indiscutível a participação da trilogia na formação do identitário popular. São diversos os produtos, seriados televisivos, referências e inclusive, pontos turísticos que, devido ao sucesso da trama dos Corleone, marcaram gerações. Constantemente reforçando ao longo da trama a relevância da construção da confiança dentro da hierarquia do crime organizado, “O Poderoso Chefão” é uma pintura de como as conexões podem mudar o mundo. Sendo elas ilícitas ou com o aval da lei, sanguíneas ou por acolhimento, seladas com acordos ou quebradas por ações, as teias humanas são, assim como o crime, sem fronteiras. E os inúmeros Vitos espalhados ao redor do mundo, com sua infinita rede de fiéis afilhados, são fortes exemplos disto.
IMAGENS
CHILTON, C. Behind-the-Scenes Photos From the Set of “The Godfather”. Esquire, 2022. Disponível em: https://www.esquire.com/entertainment/movies/g30444039/the-godfather-behind-the-scenes-photos/. Acesso em: 11 ago. 2023.
NAST, C. Photos: The Godfather Photo Album. Vanity Fair, 2009. Disponível em: https://www.vanityfair.com/culture/photos/2009/03/godfather-slideshow200903. Acesso em: 15 ago. 2023.
REFERÊNCIAS
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EUROPOL. Mafia-Structured Organised Crime Groups (OCG). EUROPOL. Disponível em: https://www.europol.europa.eu/crime-areas-and-statistics/crime-areas/mafia-structured-organised-crime-groups-ocg. Acesso em: 16 ago. 2023.
FICHA TÉCNICA COMPLETA – O PODEROSO CHEFÃO – 7 DE JULHO DE 1972 | FILMOW. Disponível em: https://filmow.com/o-poderoso-chefao-t5755/ficha-tecnica/. Acesso em: 15 ago. 2023.
FORTI, L. O contrabando que mudou o mundo – PARTE 1 | Lelo Forti. VEJA Abril, 2021. Disponível em: https://vejario.abril.com.br/coluna/lelo-forti/lei-seca-al-capone. Acesso em: 15 ago. 2023.
FRANÇA, B.; BERTOLDO, C. Mario Puzo: como a vida do escritor inspirou a obra “O Poderoso Chefão”. Revista Galileu, 2022. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2022/02/mario-puzo-como-vida-do-escritor-inspirou-obra-o-poderoso-chefao.html. Acesso em: 11 ago. 2023.
LIBRARY OF CONGRESS. The Great Arrival | Italian | Immigration and Relocation in U.S. History | Classroom Materials at the Library of Congress | Library of Congress. Disponível em: https://www.loc.gov/classroom-materials/immigration/italian/the-great-arrival/. Acesso em: 15 ago. 2023.
NEVES, Y.; BETANCUR, M. PCC-‘Ndrangheta, the International Criminal Alliance Flooding Europe with Cocaine. Insight Crime, 2019. Disponível em: https://insightcrime.org/news/analysis/pcc-ndrangheta-criminal-alliance-flooding-europe-cocaine/. Acesso em: 16 ago. 2023..
PAARLBERG, M. A. Transnational gangs and criminal remittances: a conceptual framework. Comparative Migration Studies, v. 10, n. 1, p. 24, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.1186/s4087802200297x.
PALOMBA, A. L. A Brief History of Italian Immigration to the United States Post World War II. America Domani, 2023. Disponível em: https://americadomani.com/a-brief-history-of-italian-immigration-to-the-united-states-post-world-war-ii/. Acesso em: 15 ago. 2023.
SCIARRONE, R.; STORTI, L. The territorial expansion of mafia-type organized crime. The case of the Italian mafia in Germany. Crime, Law and Social Change, v. 61, n. 1, p. 37–60, 11 ago. 2013.
SPAPENS, T.; MOORS, H. Intergenerational transmission and organized crime. A study of seven families in the south of the Netherlands. Trends in Organized Crime, v. 23, n. 3, p. 227–241, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1007/s1211701909363w.
THE MOB MUSEUM. Prohibition Profits Transformed the Mob – Prohibition: An Interactive History. Disponível em: https://prohibition.themobmuseum.org/the-history/the-rise-of-organized-crime/the-mob-during-prohibition/. Acesso em: 15 ago. 2023.
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WE ARE FAMILY: CRIME ORGANIZATIONS AROUND THE WORLD. Focus Features, 2008. Disponível em: https://www.focusfeatures.com/article/we_are_family__crime_organizations_around_the_world. Acesso em: 15 ago. 2023.
NOTAS DE RODAPÉ
- Texto original: “Cybercriminals employ schemes similar to the legitimate B2B (business-to-business) models for their operations, such as the highly sophisticated C2C (criminal-to-criminal) models, which make stolen data and very effective tools for committing cybercrime available through digital networks”. (Tropina, pág. 160, 2012)
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