DE CHERNOBYL A GOIÂNIA: O APAGAMENTO RADIOATIVO DO ACIDENTE CÉSIO-137

DE CHERNOBYL A GOIÂNIA: O APAGAMENTO RADIOATIVO DO ACIDENTE CÉSIO-137

Técnicos da Comissão Nacional de Energia Nuclear e militares realizam a descontaminação das áreas com presença de material radioativo. (Foto: Luis Novaes/Folhapress)

Em 1987, um ano após o Acidente Nuclear de Chernobyl, a cidade de Goiânia se tornaria o cenário do maior acidente radiológico do Brasil. Após 36 anos, apesar da tentativa de esquecimento promovida pelo poder público, a tragédia com o Césio-137 ainda reside na memória da população da capital e nos corpos das vítimas do acidente.

O ACIDENTE COM O CÉSIO-137

No dia 13 de setembro de 1987, Roberto Santos Alves e Wagner Mota Pereira, dois catadores de materiais recicláveis encontraram em um prédio abandonado, no Centro de Goiânia, um aparelho de radioterapia desativado. A fim de arrecadar dinheiro vendendo os metais que compunham a máquina, os catadores a desmontaram. Foi assim que se rompeu a cápsula de proteção que continha o material radioativo cloreto de Césio-137, um pó de coloração azul e irradiante, iniciando o processo de contaminação (NUNES; MESQUITA, 2022). 

Poucos dias depois, Roberto e Wagner venderam o chumbo das peças e a cápsula de Césio à Devair Alves Ferreira, proprietário de um ferro velho localizado no Setor Aeroporto, a poucos quilômetros de onde o material foi encontrado. Sem imaginar o efeito desintegrador que as partículas radioativas provocam ao organismo, Devair, admirado pelas propriedades luminosas da substância misteriosa, começou a mostrá-la e distribuí-la aos amigos e familiares. 

Dentre as pessoas que interagiram diretamente com o cloreto de Césio estava a sobrinha de seis anos de Devair, Leide das Neves Ferreira, que se tornaria a vítima de com a maior dose de contaminação do acidente. Se contaminou internamente ao ingerir o pó presente em suas mãos após brincar com o material radioativo.

A menina Leide das Neves internada no hospital, no Rio de Janeiro(Foto: José Doval/Agência O GLOBO)

O acidente só viria a ser descoberto pelas autoridades sanitárias 15 dias após a retirada da cápsula de Césio das ruínas do prédio. Maria Gabriela Ferreira, esposa de Devair, após perceber que sua família e conhecidos começaram a passar mal depois de entrar em contato com a substância, bem como a morte dos animais domésticos da família, resolveu levar de ônibus a cápsula à Vigilância Sanitária, no dia 28 de setembro de 1987. Somente no dia seguinte o material foi identificado como fonte radioativa e a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) e a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) foram acionadas.

A demora para identificar o acidente, bem como a circulação do material pela cidade, fez com que ele adquirisse proporções enormes. Cerca de 112 mil pessoas foram monitoradas1, 249 apresentaram alto grau de contaminação, 20 pessoas tiveram que receber tratamento hospitalar e 4 vieram a óbito: Maria Gabriela Ferreira (38 anos), esposa de Devair; Leide das Neves (6 anos), símbolo do acidente; Israel Batista dos Santos (22 anos) e Admilson Alves de Souza (18 anos), funcionários do ferro velho (NUNES; MESQUITA, 2022).

CHERNOBYL E A CONSTRUÇÃO MIDIÁTICA DO MEDO

Em 1987, o medo daquilo que era relacionado ao “nuclear” era algo que permeava o imaginário popular. Segundo Hobsbawn, no contexto de Guerra Fria: 

“Gerações inteiras cresceram sob a ameaça de batalhas nucleares globais que, alguns acreditavam poderiam começar e destruir a humanidade a qualquer momento. Eventualmente isso não aconteceu, mas por quarenta anos pareceu para nós uma possibilidade diária”

(Tradução nossa) (HOBSBAWN, 1995)

Os benefícios que a energia nuclear possui em seu uso cotidiano acabam sendo suprimidos pela percepção coletiva pelas consequências horríveis e destrutivas de sua utilização (CHAVES, 1998). O Acidente Radiológico de Goiânia aconteceu no ano seguinte à explosão da  usina nuclear de Chernobyl, que levou a um sentimento de medo e insegurança por toda a Europa, em razão do inimigo invisível: a radioatividade. Ainda que ambos os acidentes sejam classificados de maneira diferente em virtude de sua natureza2, a associação entre os dois eventos foi um mecanismo fortemente utilizado pela cobertura midiática alarmista da época, o que resultou em insegurança e medo.

Pessoas contaminadas acampadas no Estádio
Olímpico (Foto: Yoshikazu Maeda/O Popular)

A fim de atingir grandes massas, a mídia busca se utilizar de argumentos sensacionalistas, enfatizando fatos negativos em crimes hediondos e grandes catástrofes, disseminando um sentimento de insegurança social e o desenvolvimento de uma “cultura do medo” (OLIVEIRA JÚNIOR, 2016). 

Durante a reportagem do Jornal Nacional, produzida no dia 3 de outubro de 1987, a matéria compara os acidentes com o Césio e em Chernobyl:

“Repórter Valéria Sfeir em off: Os técnicos garantem que a situação está sob controle porque os focos de contaminação foram isolados, quem não entrar nessas áreas de contaminação, ou tiver contato com o Césio, não corre risco de contaminação, o acidente com o Césio em Goiânia é diferente do que aconteceu em Chernobil.

Repórter Valéria Sfeir: Quer dizer, nesse caso então não tem perigo de alastrar? 

Coord. CNEN: Não tem perigo de alastrar porque ele não é, não se encontra disponível no ar.”

(OLIVEIRA JÚNIOR, 2016)

Em 4 de outubro de 1987, a primeira página do jornal O Globo estampava “Radiação é maior que em Chernobyl”. De maneira parecida o jornal local “Diário da Manhã” estampava no mesmo dia “Chernobyl no Planalto”, usando um termo primeiramente cunhado pelo O Globo (CHAVES, 1998). 

A alusão ao acidente nuclear ocorrido no ano anterior, bem como a constante veiculação de imagens sobre o isolamento das vítimas em Goiânia e a transferência para hospitais de outros estados, os óbitos das vítimas, os trabalhos de descontaminação e as consequências da exposição à radioatividade também contribuiram para aumentar a discriminação de goianos e produtos oriundos do estado em outras cidades do país. (CHAVES, 1993)

Internacionalmente, o acidente em Goiânia foi comparado ao em Chernobyl no questionamento das capacidades do Brasil de lidar com a questão do lixo nuclear. Isso porque, mesmo que o país tivesse um programa nuclear em curso desde os anos 1960, não possuía depósitos de rejeitos radioativos. Segundo o The New York Times, em matéria no dia 13 de outubro de 1987, “O incidente em Goiânia tem demonstrado que as autoridades estão mal preparadas para lidar com qualquer incidente envolvendo radioatividade” (Tradução nossa) (SIMONS, 1987).  

Ainda, o jornal americano The Times-News, do dia 2 de novembro do mesmo ano, sob a manchete “Uso da Energia Nuclear pelo Brasil Questionado”, explana o fato à época da falta de um local seguro para o descarte de lixo atômico em face a descontaminação do acidente com o Césio, e questiona a segurança do programa nuclear brasileiro, em comparação ao acidente ocorrido em Chernobyl. “O Brasil não possui nem um local de descarte de lixo atômico, nem uma agência designada somente para regulação nuclear.” (tradução nossa) (GENASCI, 1987).

Triagem de possíveis casos de contaminação radiológica por Césio-137 no Estádio Olimpico de Goiânia (Foto: Secretaria de Saúde do Estado de Goiás)

IMPACTO INTERNACIONAL

Passados 36 anos do maior acidente radiológico da história, ao se analisar os impactos do acidente hoje, é possível identificar dois tipos de efeito. O primeiro se refere às consequências do acidente à nível internacional, e o segundo a forma como o Estado lida com a história do evento.

A cooperação internacional com a AIEA em resposta ao evento foi um fator importante para o controle do acidente e a aproximação do Brasil aos parâmetros internacionais de regulamentação da energia nuclear. Segundo relatório da agência, desde o acidente foram realizadas numerosas atividades colaborativas entre o país e a AIEA, promovendo experiência para a coordenação da assistência internacional e prevenção de eventos futuros (IAEA, 1988).

O acidente em Goiânia também motivou a criação, em 1990, da Escala Internacional de Eventos Nucleares e Radiológicos, pela AIEA. A escala, dividida em níveis de 1 à 7 ordem crescente de gravidade (sendo de 1 a 4 incidentes, e 4 a 7 acidentes), tem como objetivo comunicar a população e a comunidade científica das consequências de um acidente envolvendo radiação (NUNES; MESQUITA, 2022).

O APAGAMENTO DAS VÍTIMAS E DA HISTÓRIA 

Internamente, o que se vê é que há um apagamento efetivo por parte do poder público da história e das vítimas do acidente. Há décadas as vítimas reivindicam, sem sucesso, a construção de um memorial ao Acidente do Césio em Goiânia. Em 2008, o anúncio da construção do “Memorial do Césio e do Centro de Referência”, pela Secretaria de Saúde de Goiás foi abandonado por falta de verba, e mesmo com a aprovação da construção do memorial pela Assembleia Legislativa de Goiás em 2012, a ideia permanece no papel (ALVES, 2019).

Outrossim, os cortes de recursos para tratamento e pensões das vítimas do acidente são, para além da invisibilização da história do acidente, um apagamento das próprias vítimas por parte do Estado. Há anos as vítimas lutam pelo reajuste das pensões pagas pelo Estado, e pelo acesso a medicamentos e tratamentos no Centro de Atendimento aos Radioacidentados (CARA) (MARTINS, 2017). Os Radioacidentados denunciaram aos membros da AIEA a falta de respeito do Estado brasileiro em não desenvolver políticas públicas capazes de devolver a dignidade aos cidadãos, que “adoecem por carregarem as consequências físicas, psicológicas e sociais das falhas na fiscalização da CNEN e da falta de assistência a que têm direito.” (MAPA DE CONFLITOS, 2023). 

Tambores para coleta de lixo contaminado, em Goiânia (Foto: Jamil Bittar/Agência O GLOBO)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chernobyl e Goiânia foram dois desastres cuja comparação massiva por parte da mídia demonstrou à época como o temor do desconhecido, do inimigo invisível que é a radiação nuclear, poderia levar pânico e insegurança a população. Hoje, 36 anos depois, o que há é uma tentativa por parte do poder público de promover o esquecimento da história do evento e dos radioacidentados. A da maior tragédia radiológica do mundo aconteceu aqui, no Brasil, e as vítimas ainda vivem com as marcas do Césio nos seus corpos. Rememorar é portanto mais que um ato de preservação da história, mas um ato de luta e resistência daqueles que ainda sofrem pelo que se quer ser apagado.

REFERÊNCIAS

Alves, R. Vítimas da tragédia com o césio 137 em Goiânia reivindicam memorial. [S. l.], 2019. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/07/08/interna-brasil,768979/vitimas-da-tragedia-com-o-cesio-137-em-goiania-reivindicam-memorial.shtml. Acesso em: 10 ago. 2023.

Chaves, E. G. IMPACTO PSICO-SOCIAL DO ACIDENTE COM 0 CÉSIO-137 NA SOCIEDADE BRASILEIRA. 2o Simposio internacional sobre o acidente radioativo com cesio-137, 1993. 

Chaves, E. G. Societal Representations on the Accident with Caesium-137. Goiânia, Ten Years Later – Proceeding of an International Conference Goiânia, Brazil 26 – 31 October 1997, IAEA-GOCP. 1998. 

Genasci, Lisa. Brazil Use of Nuclear Energy Questioned. The Times-News. Hendersonville, 2 de novembro de 1987. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=foRPAAAAIBAJ&lpg=PA7&dq=goiania%20cesium%20accident%20nuclear%20program&hl=pt-BR&pg=PA7#v=onepage&q=goiania%20cesium%20accident%20nuclear%20program&f=false. Acesso em 09 de agosto de 2023.

Hobsbawn, E., Era dos Extremos, O Breve Seculo XX (The Age of Extremes, The Short Twentieth Century), Companhia das Letras, Sao Paulo (1995) 34. 

IAEA. The Radiological Accident in Goiânia. International Atomic Energy Agency, Viena, , 1988. 

Mapa de Conflitos. GO – VÍTIMAS DO CÉSIO 137 ATÉ HOJE LUTAM PELO RECONHECIMENTO PLENO DE SEUS DIREITOS – MAPA DE CONFLITOS ENVOLVENDO INJUSTIÇA AMBIENTAL E SAÚDE NO BRASIL. [S. l.], 2023. Disponível em: https://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/conflito/go-vitimas-do-cesio-137-ate-hoje-lutam-pelo-reconhecimento-pleno-de-seus-direitos/. Acesso em: 10 ago. 2023.

Martins, Vanessa. Após 30 anos, vítimas do acidente com césio-137 dizem sofrer com a falta de apoios médico e financeiro, em Goiânia. [S. l.], 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/goias/cesio30anos/noticia/apos-30-anos-vitimas-do-acidente-com-cesio-137-dizem-sofrer-com-a-falta-de-apoios-medico-e-financeiro-em-goiania.ghtml. Acesso em: 10 ago. 2023.

Nunes, L. D.; Mesquita, N. A. D. S. The Non-Silencing of the Accident with Cesium 137- the Story Retold by the Freireano Eye. Revista Virtual de Química, v. 14, n. 6, p. 1107–1115, 2022. 

Oliveira Junior, E. M. D. O grande medo de 1987 : uma releitura do acidente com o Césio-137 em Goiânia. Doctorate—[s.l.] Universidade de Brasília, 6 jul. 2016.

Simons, M. Radiation Accident in Brazil Stirs Misgivings Over Nuclear Program. The New York Times, , 13 out. 1987. Disponível em: <https://www.nytimes.com/1987/10/13/world/radiation-accident-in-brazil-stirs-misgivings-over-nuclear-program.html>. Acesso em: 9 ago. 2023‌Assembléia Legislativa de Goiás.

  1. Goiânia possuía em 1987 uma população de aproximadamente 900 mil habitantes, o que representa mais de 12% da população em monitoramento.(NUNES; MESQUITA, 2022) ↩︎
  2. “Os acidentes nucleares são divididos em dois grupos: Acidente Radioativo ou Nuclear e Acidente Radiológico O primeiro tipo de acidente é aquele que envolve equipamento no qual ocorre a reação nuclear, como os reatores das Usinas Nucleares, a exemplo do acidente que ocorreu em Chernobyl, na Ex-união Soviética em 1986. Já acidente radiológico é aquele que envolve uma fonte radioativa, como o que ocorreu em Goiânia.” (NUNES; MESQUITA, 2022) ↩︎

Cairo José Alves Guimarães

Goiano, graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Goiás. Tenho interesse em temas relacionados a América Latina, relações interregionais, teorias decoloniais e pós-coloniais. Ouço Chico, leio Pessoa e tenho muitas pastinhas no Pinterest.

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