PETRÓLEO: O VENENO DO DESENVOLVIMENTO VENEZUELANO?

PETRÓLEO: O VENENO DO DESENVOLVIMENTO VENEZUELANO?

Durante protesto na Venezuela, manifestante aponta o contraste entre os gastos com países aliados, arrecadados por meio da exploração petroleira, enquanto povo passa fome. Fonte: Reuters.

Desde 2013, a Venezuela passa por uma crise, resultado de uma mistura tóxica composta pela queda internacional do preço do petróleo, políticas governamentais falhas, a morte prematura de Hugo Chávez, corrupção, aumento do autoritarismo, conflitos políticos domésticos, tentativas de “mudança no regime” e, nos últimos anos, sanções estadunidenses (Strønen, 2022). Assim, resta uma dúvida: como um Estado como o venezuelano, que goza de abundância de um recurso tão essencial ao funcionamento da economia mundial como o petróleo, continua a vivenciar um subdesenvolvimento crônico marcado por crises tão profundas? Embora para muitos o ouro negro se apresente como o veneno que permeia todas as esferas da sociedade venezuelana, a resposta repousa em lençóis muito mais complexos, tecidos a partir de um sistema capitalista rentista pós-colonial. 

A formação do petro-estado venezuelano

A Venezuela foi forjada nas guerras de independência em 1830 como um dos países mais pobres da América Latina. Além de sua dívida, a infraestrutura não era uma prioridade das elites, que focavam apenas no lucro em detrimento de uma reconstrução. Dessa forma, o estado-nação venezuelano é consolidado, de fato, somente depois de 1908, quando Juan Vicente Gómez tem o controle centralizado sobre o território (Kingsbury, 2016). Nesse sentido, ele herda um país sem instituições ou entidades que possam exercer pressão de maneira organizada sobre o governo (Urbaneja, 2013). 

Juan Vicente, então, conduz uma política de concentração de poder no executivo, agindo como intermediário entre as preocupações estrangeiras com o petróleo e o subsolo (Kingsbury, 2016). Assim, a exploração petroleira se estabelece sob a lógica da dependência econômica, de maneira que quase ⅓ de sua superfície é cedida a empresas internacionais e apenas cerca de 5 a 10% da renda obtida a partir das produções era pertencente ao Estado (Rincón, 2016, p. 28). Ainda assim, devido à sua alta valorização no mercado internacional, o petróleo se consolidou como a principal commoditie de exportação em 1930, superando as produções de cacau e café que predominavam até então (Santos; De Souza, 2019).

Por conseguinte, cristaliza-se aqui a noção de que a proximidade de um indivíduo ao estado, mais do que seu controle sobre a força de trabalho, é a responsável pela riqueza e pelo prestígio (Coronil, 1997; Cartay, 2005). Isso impossibilita a acumulação de capital primitivo, essencial para a formação de uma burguesia consolidada, a qual tem olhos para o reinvestimento de renda em oportunidades locais. Nesse sentido, sem uma arquitetura produtiva e financeira eficiente, o país não é capaz de absorver grandes surplus das ações petrolíferas, e os lucros são todos deslocados para o exterior ou para rentistas (Kingsbury, 2016). 

Mais do que isso, a Venezuela passa a existir em um ciclo vicioso. Ao privilegiar essa burguesia rentista, o Estado impede a criação de um vínculo entre o aumento de produtividade e o crescimento e desenvolvimento interno. As elites não produzem riquezas reais: lucram somente por meio da cobrança pelo acesso às suas terras, sem produzir algo efetivamente, sem maior geração de empregos ou desenvolvimento científico. Por conseguinte, não há possibilidade sequer para a construção de um mercado consumidor suficiente para a industrialização ou a diversificação das exportações. Os venezuelanos ficam, então, perpetuamente dependentes do petróleo, presos em ciclos de violências estruturais, desigualdades e concentração de renda (Hitner, 2011, p. 6). 

A nacionalização do petróleo

Em 1976,a Petróleo de Venezuela S.A. (PDVSA) é criada, uma empresa de caráter nacional que objetivava transformar o Estado no único detentor dos benefícios do recurso. Isso ocorre após o país entrar na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), em 1960, a qual garante o melhor preço do recurso no mercado mundial. Em adição, ocorreu, em 1974, o Primeiro Choque do Petróleo, que também teve como consequência o aumento significativo do valor do barril. Tendo isso em vista, a nacionalização aumenta muito o lucro estatal que, no pico dos anos 70, também arrecadava uma quantidade maior de impostos maior do que nos últimos 50 anos combinados (Di John, 2009, p. 22).

No entanto, ao contrário do que se espera, tal nacionalização apenas aprofundou as lógicas pré-existentes na Venezuela. A empresa não é apenas controlada pela já existente elite, como também não se submete completamente ao governo. Além disso, a maior parte desse lucro não é revertida para o desenvolvimento da nação, escoando ao léu devido à onda de corrupção e planejamento incipiente do então presidente, pela primeira vez, Carlos Andrés Pérez (1974-1979) (Coronil, 1997). 

Carlos Andres Perez recebe o Presidente estadunidense Jimmy Carter durante uma visita à Venezuela. Fonte: NARA /1978

O restante é usado para subscrever empréstimos internacionais para o governo e para negócios do setor privado que faziam parte do círculo de Carlos. Como pagamento, ficam comprometidos os lucros futuros com o petróleo (Mommer, 2003, p.143). Desse modo, ainda que a economia venezuelana tenha crescido mais rápido que qualquer economia latino-americana dos anos 20 até os anos 80, seu colapso é o mais pronunciado, tornando o país um dos mais deficitários comparado aos seus vizinhos e os anos 90, uma década perdida (Kingsbury, 2016). 

O desenvolvimento de Hugo Chavéz: semeando o petróleo

Após as atribulações da década perdida, em 1997, a porcentagem da população vivendo em pobreza chegava ao pico de 60.9% e em extrema pobreza 29.5% (Weisbrot, Ray, Sandoval, 2009, p. 10). Nesse contexto, chega ao poder Hugo Chávez, o qual visava democratizar a distribuição dos arrendamentos petroleiros por meio de uma série de programas sociais, os quais persistiram e se expandiram apesar das crises e colapsos no mercado (Kingsbury, 2016). 

O início de seu governo foi marcado por conflitos com as uniões trabalhistas e a diretoria da PDVSA, as quais atendiam a desejos pessoais da burguesia rentista que a dominava, perpetuando o clientelismo político. Isso porque, à época, as uniões controlavam a distribuição de empregos e o pagamento concedido aos trabalhadores, cobrando para executar as atribuições (Gledhill, 2008). Indo contra a intervenção do governo de Chávez, as lideranças, que cada vez mais se voltavam a fraudes eleitorais para ganhar as eleições da união, produziram quatro greves gerais entre o fim de 2001 e o início de 2003 (Ellner, 2005, p. 62).

Filas de gasolina durante a greve do petróleo (2002-2003). Fonte: Prensa Presidencial / 2015.

É importante salientar que essas greves coincidiram com uma tentativa de golpe em abril de 2002, a qual tinha como principal objetivo a privatização da PDVSA, proibida pela Constituição de 1999 (Gledhill, 2008). O líder desse movimento, Pedro Carmona Estanga, trabalhava para uma companhia privada de petróleo, a Venoco. Outro grande apoiador, Gustavo Cisneros, além de ser chefe de uma grande transnacional que se beneficiaria com as privatizações, era um associado de longa data de George H. W. Bush, o qual tinha interesse em outra empresa petroleira que também seria diretamente beneficiada (Cervantes , 2004). 

Ainda assim, o governo de Hugo Chávez conseguiu implantar suas misiones bolivarianas(missões bolivarianas). Trata-se de uma série de programas que visavam avançar em diversos problemas, como o déficit habitacional, segurança alimentar, educação, conservação ambiental, orgulho cultural, empresas cooperativas e até mesmo cuidado veterinário (Kingsbury, 2016). É importante frisar que o sucesso político de Chávez provém de gastos estatais extensivos, possibilitados pela expansão do uso dos lucros da PDVSA (Strønen, 2022).

Hugo Chávez em discurso de camapanha. Fonte: Prensa Presidencial / 1998.

Assim, o petróleo se configura, nesse contexto político, como muito mais do que apenas um ativo financeiro  ou uma commodity global, mas também um símbolo imaginário para a cidadania, a nação, a justiça e a soberania venezuelana. É, ao mesmo tempo, o caminho para a solidificação de um possível bem-estar social, assim como a linguagem de comunicação com o exterior. Portanto, ainda que seja possível classificar a interferência de Chávez sobre a empresa como a causadora da crise no setor petrolífero venezuelano por ter desencadeado os protestos, é importante lembrar que havia um grande dilema político. Isso porque a PDVSA se mostrava como um estado dentro de um estado e, pelas tendências neoliberais e anti-nacionalistas, jamais se curvaria à vontade do governo, bloqueando qualquer projeto chavista (Strønen, 2022). 

Colonialidade, petróleo e desenvolvimento na Venezuela

Levando em conta os acontecimentos supracitados, fica evidente uma relação paradoxal entre a abundância e a falta crônica em que a Venezuela se insere. Nesse sentido, surge a noção de que a abundância de um recurso altamente valorizado condena um país à corrupção, à desigualdade e ao subdesenvolvimento (Karl, 1997; Naím, 2009; Schubert, 2006). O país é, então, definido pelo petróleo, mas também por seu projeto de transcendê-lo economicamente. Sobre essa lógica, se desenvolve a colonialidade da raça, do território e do desenvolvimento. No imaginário venezuelano, prevalece, então, um constante pessimismo, uma falta de fé na habilidade de um dia não mais depender de algo considerado amaldiçoado. Num mundo cheio de entraves estruturais pós-coloniais, o desenvolvimento é um horizonte sempre distante (Kingsbury, 2016). 

No entanto, a associação direta e sem nuances realizada entre o petróleo e o subdesenvolvimento não leva em conta o sistema capitalista desigual no qual a nação está inserida.. Desde o século XX, a dinâmica estrutural de extração petroleira tem se fortalecido e cristalizado, bem como os princípios de desenvolvimento forjados no Norte Global (Kingsbury, 2016). Assim, essa abordagem sofre de alguns problemas: ao focar somente no Estado, exclui aspectos históricos, estruturais e políticos, incluindo atores econômicos externos e regimes financeiros que modelam as ações de um território. Em segundo lugar, não compreendem os processos políticos, sociais e econômicos que saturam as dinâmicas com significados culturais e simbólicos. Por fim, ignora os legados coloniais, o neo-colonialismo e os regimes de poder e conhecimento (Strønen, 2022). 

Selo venezuelano exibindo campos de extração de petróleo. Fonte: Mark Morgan / 2015.

Desse modo, o entendimento de que o petróleo seria o causador do subdesenvolvimento venezuelano parte do princípio de que conhecimento, identidades e posições sociais são ordenadas, seguindo o pressuposto da colonialidade assim como descrita por Quijano (2014). Com o objetivo de controlar o trabalho e garantir capital, são produzidas explicações que ignoram e colonizam a imaginação do dominado, naturalizando assimetrias e estruturas de dominação e submissão (Quijano, 2000). A culpa de um país mal desenvolvido é, então, de sua própria população, a qual deve passar por um longo e sofrido período de tempo para que possa, enfim, ascender a uma sabedoria e se autogovernar eficientemente (Kingsbury, 2016).

Portanto, é importante que a situação venezuelana seja observada de maneira completa, compreendendo obstáculos estruturais nacionais e internacionais que se apresentam durante sua história. As tentativas chavistas de democratização do acesso ao petróleo e as resistências enfrentadas na construção de instituições produtivas e financeiras que possam lidar com essa riqueza demonstram como o sucesso de um país não se atrela somente à sua própria população. Desse modo, as relações de poder que se estabelecem por meio da colonização e hoje se traduzem por meio do capitalismo e do neoliberalismo explicitam como o verdadeiro veneno venezuelano não é sua riqueza, mas a pobreza que a circunda. 

Referências

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CERVANTES, Jesusa. Misión: Privatizar Pemex. Proceso, v. 14, p. 28-31, 2004.

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ELLNER, Steve. The emergence of a new trade unionism in Venezuela with vestiges of the past. Latin American Perspectives, v. 32, n. 2, p. 51-71, 2005.

GLEDHILL, John. “The people’s oil”: Nationalism, globalization, and the possibility of another country in Brazil, Mexico, and Venezuela. Focaal, v. 2008, n. 52, p. 57-74, 2008.

HITNER, Verena. Uma análise do malogro do modelo de desenvolvimento latino-americano dos anos 1990: os limites internos da Venezuela. 2011. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.

KARL, Terry Lynn. The paradox of plenty: Oil booms and petro-states. Univ of California Press, 1997.

KINGSBURY, Donald V. Oil’s colonial residues: geopolitics, identity, and resistance in Venezuela. Bulletin of Latin American Research, v. 35, n. 4, p. 423-436, 2016.

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WEISBROT, Mark et al. The Chávez administration at 10 years: The economy and social indicators. Center for Economic and Policy Research, p. 1-24, 2009.

Kaillany Azevedo Batista

Interessada em Memória Política, Gênero e Economia Política. Graduanda em Relações Internacionais na UFG e Assistente de Pesquisa no INCT-INEU. Tagarela, leitora voraz, maníaca por música, madrinha de gatos e tia das plantas.

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