AIDS NA ÁFRICA DO SUL PÓS-APARTHEID – NACIONALISMO E NEGACIONISMO

AIDS NA ÁFRICA DO SUL PÓS-APARTHEID – NACIONALISMO E NEGACIONISMO

Manifestação contra o negacionismo à AIDS. Cidade do Cabo, 2001 (Foto: Per-Anders Pettersson / Getty Images)

A África do Sul é um dos países com a maior taxa de infectados com o vírus HIV do mundo. Segundo o relatório do programa das Nações Unidas para o combate à AIDS (UNAIDS), em 2022, cerca de 17.8% de toda a população adulta do país (15 a 49 anos) eram portadores do vírus (UNAIDS, 2022). Parte dos motivos que explicam números tão elevados e a dificuldade do país africano em controlar a epidemia de HIV se devem às chagas deixadas pelo apartheid e a inação e negacionismo dos governos democráticos eleitos após 1994.

APARTHEID, SAÚDE PÚBLICA E AIDS

O regime colonial e a implementação das políticas de apartheid, na África do Sul nos séculos XIX e XX, promoveu a segregação racial em todas as esferas da vida social, sobretudo no âmbito da saúde pública. De fato, o próprio discurso da Saúde Pública viria a retroalimentar o racismo e a segregação no país, através de políticas para “prevenção de epidemias”. Imbuída de um flagrante higienismo, a primeira lei segregacionista do país é um exemplo desse tipo de política: o Public Health Act, de 1883, permitia às autoridades a promoção de vacinações obrigatórias, criação de zonas de quarentena e corredores sanitários (Youde, 2005).

A formação de uma ideologia segregacionista, aliada às teorias eugenistas da época, afirmava que as populações não-brancas (negros, mestiços e indianos) do país eram mais propensas a contrair e espalhar doenças. Uma vez que a transmissão de infecções seria provocada pela simples proximidade com populações negras, estes indivíduos constituiam uma constante ameaça a saúde dos brancos e, como resultado, a lógica para a proteção da saúde pública seria a segregação, discriminação e concentração das comunidades negras em zonas sanitárias. Em 1900, em resposta à epidemia de peste bubônica na Cidade do Cabo, o governo colonial promoveu a remoção forçada da população negra da cidade para “espaços nativos”, com base na lei de saúde pública de 1883 (Youde, 2005).

“Cuidado, esteja atento com os nativos”. Placa em Joanesburgo, África do Sul, 1956 (Foto: Three Lions/Getty Images)

A concentração de populações negras em zonas sanitárias tinha como efeito o aumento das condições para a propagação de epidemias dentro desses mesmos locais, exacerbando ainda mais o sentimento de desconfiança e ressentimento das populações negras para com as políticas de saúde pública.

“Para os negros, febre tifoide era uma recorrência diária, mas apenas quando ameaça a ‘preservação branca’ que causa agitação. Em geral, o Estado tem sido capaz de adoptar a sua atitude de laissez faire porque as epidemias permaneceram entre a “população excedente” da África do Sul dentro das fronteiras dos Bantustões” (Marks, Anderson, 1983 apud Youde, p.425, 2005, tradução nossa). 

A lógica do racismo e da segregação presente na política de saúde pública apartheid pode ser entendido através do que Foucault define como biopoder. Segundo sua formulação, o biopoder funciona mediante a divisão de pessoas em indivíduos que devem viver e que devem morrer (Foucault, 2012). O racismo, como controle da distribuição das pessoas em grupos, subgrupos, e o estabelecimento da censura biológica entre uns e outros, seria acima de tudo uma “tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder” (Mbembe, 2016).

O apartheid, como uma expressão desse racismo e biopoder, pouco fez durante os anos 1980 e 1990 para mitigar a epidemia de AIDS no país entre a população negra, utilizando-se da mesma retórica de saúde pública dos anos 1900. Segundo as palavras de um membro do Conservador do Parlamento da África do Sul, ao debater a questão da AIDS, em 1990: “A AIDS será responsável pela eliminação em larga escala da população negra, de tal forma que os negros se tornarão em realidade uma minoria na África do Sul em cinco anos” (Youde, 2005, p. 456).

Relatos da Comissão de Verdade e Reconciliação corroboram com a narrativa de que o governo do apartheid não apenas foi negligente na ação contra a epidemia, como também agiu deliberadamente para espalhar o virus entre comunidades negras, através da inserção de trabalhadores sexuais infectados em campos de trabalho e mineração, com o objetivo de exterminar essas populações e perpetuar o regime (Youde, 2005).

Fotografia de placas de segregação em uma estação de trem sul-africana, 1972. (Foto: Ernst Cole/Wikicommons)

FIM DO APARTHEID CONSTRUÇÃO DE UMA IMAGEM NACIONAL

O fim do apartheid, em 1994, simbolizou um momento de reconstrução nacional e superação do passado racista do país. O discurso da “nação arco-íris”, de um país culturalmente rico dentro de sua diversidade, a fim de promover a reconciliação nacional através de princípios não-racistas, abraçando o multiculturalismo e a democracia, simboliza a abordagem retórica do governo neste momento (Stinson, 2009). Apesar da urgência que a agenda de combate ao HIV requeria, a competição com a agenda política de construção nacional e os desafios em enfrentar as desigualdades raciais e socioeconômicas institucionalizadas pelo apartheid, deixaria pouco espaço para discussão da questão da AIDS.

Durante o governo Mandela (1994-1998), os planos nacionais de combate a epidemia reservaram-se apenas a métodos de prevenção, cujo pouco preparo institucional e implementação inadequada permitiu um aumento exponencial do HIV no país, evoluindo de uma prevalência de 4% entre a população, em 1994, para 22.8% em 1998 (Simelela et al., 2015). As primeiras reações do governo direcionadas exclusivamente à epidemia de AIDS só viriam a ocorrer durante a presidência de Thabo Mbeki, após 1999.

GOVERNO MBEKI – NEGACIONISMO E NACIONALISMO

O legado de tensão social do apartheid e o processo de construção de uma nova identidade nacional não pode ser dissociado da forma como o governo Mbeki lidou com o vírus. O histórico da luta anti-apartheid às formas de opressão contra a população negra na África do Sul foi de grande influência para a visão do presidente sobre o HIV. Segundo Vieira (2011), o governo Mbeki interpretou a epidemia como uma exposição das disparidades globais de distribuição de riqueza, geradas pela globalização, e perpetuação da situação de dependência do continente africano para com o norte global (Vieira, 2011).

Ao buscar forjar uma nova identidade para a África do Sul, Mbeki desafiou a agenda científica e discursiva internacional sobre o controle da AIDS. Em 2000, o presidente afirmou, durante a 13ª Conferência Internacional sobre a AIDS em Durban que “nem todos os problemas do país poderiam ser colocados em um vírus, e que a pobreza mata mais pessoas no mundo do que a AIDS” (Daniel, 2003). Já em entrevista à Time Magazine, Mbeki afirmaria que “o HIV não pode causar AIDS, uma vez que o vírus não é a causa da Síndrome da imunodeficiência” (Daniel, 2003).

O governo Mbeki também levantaria desconfianças em relação às indústrias farmacêuticas estadunidenses produtoras de antirretrovirais. O entendimento dos Estados Unidos como uma nova forma de poder colonial/imperialista e a proximidade dos laços entre o governo americano e a industria farmacêutica foram interpretados pelos líderes do governo sul-africano, como uma trama capitalista contra os negros do país (Vieira, 2011, p. 25). 

“Privar os pobres de acesso a medicamentos é um crime contra a humanidade” – Manifestação contra a indústria farmaceutica na África do Sul, em 2001. (Foto: Lori Waselchuk/Doctors withot Borders)

Quanto à política de medicamentos para AIDS, Mbeki recusou ofertas da indústria farmacêutica e tomou posição contrária à distribuição de remédios à população, sob o argumento de desconfiança e possíveis efeitos colaterais. Segundo o presidente, as ofertas de medicamentos dos países do ocidente não representariam um esforço humanitário mas “uma tentativa de utilizar a África como campo de testes para essas drogas” (Youde, 2005).

Esta postura negacionista, ao invalidar a epidemia de AIDS, também se deve a uma reação aos discursos de intelectuais acadêmicos durante a era do apartheid, que de maneira racista, a fim de atacar e invalidar a cultura e sexualidade dos africanos, associavam as origens do vírus no continente à supostos hábitos sexuais promíscuos envolvendo macacos (Daniel, 2003).

Em face do criticismo nacional e internacional, apenas nos anos 2000 o governo sul-africano começou a moderar o discurso negacionista em relação ao HIV. Em 2002, ao lançar o primeiro programa de tratamento antirretroviral à pessoas infectadas com o vírus, o governo Mbeki assumiu o compromisso de combater a doença, com o HIV and AIDS and STI Strategic Plan for South Africa 2000-2005, partindo do princípio de que o “governo tem por base a premissa de que o HIV é causador da AIDS” (Simelela et al., 2015, p. 258).

“Thabo Suas ideias são tóxicas” Manifestação contra o negacionismo à AIDS, Cidade do Cabo, 2001 (Foto: Anna Zieminski/Getty Images)

CONCLUSÕES

A epidemia de AIDS na África do Sul é um dos problemas mais graves enfrentados pelo país. Passadas três décadas desde as primeiras infecções de HIV, é evidente que o Estado sul-africano foi incapaz de frear o avanço do vírus e hoje apresenta uma das maiores taxas de contaminação do mundo. A construção de uma nova imagem de nação sul-africana pós-apartheid entrou, em certa medida, em choque com o regime internacional de combate ao HIV, em virtude do legado da noção de saúde pública e das políticas implementadas durante o período colonial e o apartheid, provocando um conflito discursivo e a politização no processo de prevenção e combate à AIDS. Isso gerou um processo de convergência entre o nacionalismo sul-africano por parte do governo com o negacionismo à AIDS, que, por consequência, atrasou a implementação de medidas efetivas de combate à epidemia no país.

REFERÊNCIAS

Daniel, J. (ED.). State of the nation: South Africa 2003 – 2004. Cape Town: HSRC Pr, 2003. 

Foucault, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber; tradução de Maria Thereza da Costa e J. A. Guilhon Albuquerque. 22. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2012.

Mbembe, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Revista Arte & Ensaios. v. 32, 2016. 

Simelela, N. et al. A Political and Social History of HIV in South Africa. Current HIV/AIDS Reports, v. 12, n. 2, p. 256–261, jun. 2015. 

Stinson, A. T. National Identitý and Nation-building in post-apartheid South Africa. [s.l.] Rodes University, 2009.

UNAIDS. Country Factsheets South Africa 2022 – HIV and AIDS Estimates. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://www.unaids.org/en/regionscountries/countries/southafrica>. Acesso em: 28 ago. 2023.

Vieira, M. A. Southern Africa’s response(s) to international HIV/AIDS norms: the politics of assimilation. Review of International Studies, v. 37, n. 1, p. 3–28, jan. 2011. 

Youde, J. The Development of a Counter-Epistemic Community: AIDS, South Africa, and International Regimes. International Relations, v. 19, n. 4, p. 421–439, dez. 2005. 

Cairo José Alves Guimarães

Goiano, graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Goiás. Tenho interesse em temas relacionados a América Latina, relações interregionais, teorias decoloniais e pós-coloniais. Ouço Chico, leio Pessoa e tenho muitas pastinhas no Pinterest.

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