ESPECIAL COPA DO MUNDO: DA FORMAÇÃO DA PÁTRIA DE CHUTEIRAS AOS DIAS DE HOJE
No dia 21 de junho de 1914 era organizado o primeiro jogo da história da Seleção Brasileira pela então Federação Brasileira de Sports (FBS), embrião do que viria a ser a atual Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Na ocasião, os jogadores do futebol amador, dentre eles Friedenreich, Marcos de Mendonça, Abelardo de Lamare, Rubens Salles e Sylvio Lagreca, surpreenderam ao derrotar os profissionais do time inglês Exeter City pelo placar de 2×0 (CBF, 2021). Começava ali uma trajetória esportiva recheada de glórias, reconhecimento e também de algumas decepções.
O consenso histórico sobre a disseminação do futebol no Brasil data de 1894, ano em que o jogador de futebol paulista Charles Mïller trouxe o esporte para terras brasileiras direto da Inglaterra (GUTERMAN apud NASCIMENTO, MENDES e NAIFF, 2014) . A partir daí, o esporte foi se popularizando cada vez mais com a fundação dos primeiros clubes de futebol no Rio de Janeiro como o Fluminense (1902) e o Botafogo (1904), chegando ao alcance em massa às classes sociais mais baixas entre os anos 1930 e 1940 (RIBEIRO apud COSTA e MALCHER, 2011).
Gilberto Freyre (apud NASCIMENTO, MENDES e NAIFF, 2014) argumenta que a popularização da seleção brasileira foi impulsionada após a boa campanha na Copa do Mundo de 1938, na França, na qual o time terminou em terceiro lugar após ganhar de 4×2 da Suécia. Ali nascia a faísca do gosto popular por acompanhar o desempenho da equipe nacional em torneios internacionais.
Naturalmente, durante a trajetória de desenvolvimento do que o escritor, jornalista, cronista e confesso admirador da canarinha Nelson Rodrigues (1993) chamou de “Pátria de Chuteiras”, a criação da identificação da seleção brasileira junto à população teve grande participação do elemento político. Desde a tentativa da construção de uma identidade nacional com Getúlio Vargas (COSTA e MALCHER, 2011) até o uso político da campanha exitosa do tri-campeonato mundial pela Ditadura Militar brasileira (NASCIMENTO, MENDES e NAIFF, 2014). Neste artigo, iremos abordar essa construção de imagem da seleção canarinha atrelada ao contexto político brasileiro.
Fundação, profissionalização e Copa do Mundo de 1950 (1914-1950)
Apesar da instituição seleção brasileira em si ter sido fundada em 1914, foi apenas em 1916, com a assinatura do ministro das Relações Exteriores do presidente Venceslau Brás, Lauro Müller, que a Federação Brasileira de Sports (FBS) seria convertida em Confederação Brasileira de Desportos (CBD), institucionalizando de vez a prática do futebol no Brasil (SARMENTO, 2013). A partir daí, a relação entre a seleção brasileira de futebol e a população só se estreitaria. Em 1919, na conquista da primeira Copa América, o presidente Delfim Moreira decretou ponto facultativo, criando a tradição cultural de parar o expediente no país para acompanhar o time nacional em partidas importantes (COSTA e MALCHER, 2011).
Cada vez mais incorporado à cultura popular, o futebol foi se convertendo em um elemento sociocultural de participação significativa nos acontecimentos da vida nacional brasileira, especialmente após o início da realização da Copa do Mundo a cada quatro anos, começando em 1930. Neste contexto, a ditadura do Estado Novo comandada por Getúlio Vargas (1930-1945) ajudou a impulsionar um bom desempenho esportivo da seleção brasileira com o objetivo de criar uma noção de identidade nacional coletiva e de ajudar a amenizar tentativas de revoltas populares no cenário de crise da economia cafeeira no qual o Brasil se encontrava à época (COSTA e MALCHER, 2011).
A despeito do projeto político de Vargas – ou com a ajuda dele – a popularização do esporte no país foi rápida. A concretização do estilo de jogo brasileiro como o “futebol arte” do drible e do talento puro em oposição ao estilo mais técnico e científico do europeu de jogar futebol foi o fator fundante da expressão “Pátria de Chuteiras”, cunhada por Nelson Rodrigues, simbólica da consolidação do futebol na cultura brasileira (idem, 2011). Este momento inicial culminou na realização de uma Copa do Mundo no Brasil em 1950.
O que começou com otimismo por parte de população e governo, terminou em uma das principais vergonhas esportivas da seleção brasileira. A derrota por virada para o rival sul-americano Uruguai na final de uma Copa em casa por 2×1 ficou conhecida como “Maracanazo” ou “Maracanaço”, em referência ao nome do estádio-símbolo do futebol brasileiro, onde se deu a final do evento. O acontecimento foi, inclusive, o motivo do abandono por parte da então CBD da camiseta branca da seleção como segundo uniforme, já que foi considerada pelos dirigentes como “azarada” (PLACAR, 2019).
Primeira Copa do Mundo e o Rei Pelé (1958-1962)
Apesar da vergonha histórica, a seleção brasileira viria a conseguir ganhar sua primeira Copa do Mundo oito anos depois, em 1958, tendo derrotado os anfitriões suecos por 5×2 na final do torneio. Após a primeira vitória, o time conseguiria emplacar um bicampeonato seguido na Copa do Mundo de 1962, no Chile. Nesta época surgiam os dois primeiros ídolos do futebol brasileiro, Pelé e Mané Garrincha. Com Pelé, especialmente, sendo alçado ao estrelato devido ao desempenho decisivo nas fases finais da Copa de 1958 com apenas 17 anos de idade.
Os feitos de Pelé com a camisa da seleção brasileira viriam a lhe render a alcunha de “Rei do Futebol” dentre os escritores brasileiros, com Nelson Rodrigues tendo sido o primeiro a usar esse termo em relação ao jogador quando escreveu uma crônica intitulada “A Realeza de Pelé” (RODRIGUES, 2013). O surgimento dos primeiros ídolos do futebol brasileiro trouxe expectativas para o desempenho da seleção brasileira nas próximas Copas do Mundo, tanto por parte do governo quanto da população.
A Campanha do tri em 1970 e a Ditadura Militar
Após a conquista da Copa do Mundo de 1962, a seleção brasileira só viria a entrar em campo pela competição internacional novamente na Copa do Mundo de 1966 na Inglaterra sob o governo de uma Ditadura Militar (1964-1985), instituída após um golpe de Estado no governo do então presidente João Goulart (1961-1964). E, apesar da campanha decepcionante naquele ano, o novo regime não escondia a intenção de continuar a instrumentalizar o futebol para se legitimar perante as massas, inclusive assegurando o apoio do então presidente da CBD, João Havelange.
Um dos exemplos emblemáticos de interferência governamental na seleção brasileira à época datam de 1969, ano em que o presidente Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) teve uma discordância pessoal com o então técnico da seleção brasileira João Alves Jobim Saldanha sobre a escalação da estrela do Atlético Mineiro, Dário. Após Saldanha responder a indagação de Médici com um ácido “Vamos combinar o seguinte: o senhor escala seu Ministério, eu escalo a seleção”, o técnico logo seria substituído por Mário Jorge Lobo Zagallo para a disputa da Copa do Mundo de 1970, no México (NASCIMENTO, MENDES e NAIFF, 2014).
Durante todo seu governo, Médici procurou atrelar sua imagem à seleção brasileira de futebol:
Desde sua posse, a estratégia de popularidade desenvolvida pelo órgão responsável pela propaganda oficial era de quebra de hierarquia e o rompimento de desigualdades que o futebol poderia proporcionar. Isto se materializaria na imagem de Médici, que não só receberia e apoiaria a seleção, como também era um torcedor, o que fazia dele um homem comum/igual. (NASCIMENTO, MENDES e NAIFF, 2014, p. 148)
Assim, após o êxito em conquistar a taça do mundo pela terceira vez, o Regime Militar se viu vitorioso na consagração do modelo ufanista de país pregado pela propaganda governamental. O encontro dos jogadores do Esquadrão de 70 posando com a taça Jules Rimet ao lado do general governante consolidava a conquista para o regime de exceção.
Contudo, as tentativas de controle exacerbado da ditadura nas campanhas das copas de 1974 e 1978 e os subsequentes fracassos esportivos culminaram na desmilitarização do comando do futebol no Brasil em 1979, sob o governo de João Figueiredo (1979-1985). Na Copa do Mundo de 1982, portanto, houve uma retomada da identificação popular nacional com o futebol-arte praticado pela seleção da época, apesar da decepção advinda da derrota para a seleção italiana na ocasião.
A reabertura democrática e conclusões
Após a redemocratização, a seleção brasileira de futebol voltou a vencer uma Copa do Mundo apenas em 1994, 24 anos depois da campanha do tri, vencendo o pentacampeonato em 2002 quase que de forma seguida. O futebol continuou a ser um elemento sociocultural entrelaçado a política, a exemplo do próprio Pelé ter sido ministro dos esportes do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) ou de, logo após, o governo Lula (2003-2010) ter trago a Copa do Mundo para ser sediada no Brasil em 2014, 64 anos depois de 1950.
Hoje em dia, apesar da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) enfrentar crises de afastamento do torcedor brasileiro médio em relação a seleção, que são impossíveis de serem detalhadas sem estender o tamanho deste artigo, a identificação popular com o time nacional que a representa nunca deixa de ficar evidente, especialmente a cada quatro anos de realização de Copas do Mundo. Assim, apesar dos altos e baixos, a relação de carinho e desconfiança do brasileiro junto ao seu time nacional continua sendo característica fundamental da cultura brasileira.
NOTAS DE RODAPÉ:
- João Havelange viria a se tornar o primeiro – e até então único – brasileiro presidente da Federação Internacional de Futebol (FIFA) de 1974 até 1998
- Ufanismo: Patriotismo em excesso; orgulho desmedido de seu próprio país: o ufanismo aparece em competições esportivas. (Dicio, 2022)
- A taça Jules Rimet, assim nomeada em homenagem ao esportista francês que concebeu a Copa do Mundo, foi a primeira taça utilizada para premiar campeões do torneio. Foi dada ao Brasil de forma definitiva em 1970, após o país ter sido o primeiro a conseguir ganhar a competição por três vezes
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ASSESSORIA CBF. Fundação da Federação Brasileira de Sports completa 107 anos. Confederação Brasileira de Futebol, 2021. Disponível em: <https://www.cbf.com.br/a-cbf/informes/index/fundacao-da-federacao-brasileira-de-sports-completa-107-anos>. Acesso em: 21 nov. 2022.
COSTA, Anne Beatriz; MALCHER, Maria. Futebol e Identidade Nacional Brasileira. Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. 2011.
NASCIMENTO, Ingrid Faria Gianordoli; MENDES, Bárbara Gonçalves; NAIFF, Denis Giovani Monteiro. “Salve a seleção”: ditadura militar a intervenções políticas no país do futebol. Psicologia e Saber Social, v.3, n.1, p.143-153, 2014.
PLACAR. Azarada? A história da camisa branca da seleção brasileira. Placar, 2021. Disponível em: <Azarada? A história da camisa branca da seleção brasileira | Placar – O futebol sem barreiras para você (abril.com.br)>. Acesso em: 04 dez. 2022.
RODRIGUES, Nelson. A Pátria de Chuteiras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.
RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais. São Paulo: Cia. das Letras, 1993. p.51- 52: Complexo de vira-latas.
SARMENTO, Carlos Eduardo Barbosa. A construção da Nação Canarinho: Uma história institucional da seleção brasileira de futebol, 1914-1970. Edição 1. Rio de Janeiro: FGV, 2013.
UFANISMO. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Dicio, 2019. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/ufanismo/>. Acesso em: 07 de dez. 2022.
IMAGENS
Imagem Destacada: Brasil Futebol CBF Copa do Mundo. Foto de Elison Moraes. Pixabay, 2015. Acesso em: 06 de dez. 2022.
Imagem do Maracanã: https://unsplash.com/photos/rNAYW4OF1k4. Foto de Valentin Rodríguez. Unsplash, 2017. Acesso em: 06 de dez. 2022