ROTA DA SEDA DIGITAL: China será ameaça ou alternativa para a internet?

ROTA DA SEDA DIGITAL: China será ameaça ou alternativa para a internet?

Anunciada na segunda metade da década de 2010, a Rota da Seda Digital é a parte da Nova Rota da Seda em que a China planeja governar o ciberespaço, concretizando uma política externa voltada para o desenvolvimento e expansão das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). O planejamento digital chinês envolve diversas ações baseadas em soberania digital cuja interconectividade partirá de investimentos em redes sem fio, 5G, cabeamentos submarinos, satélites, cidades inteligentes, padrões técnicos, Big Data, Machine Learning, Internet das Coisas e outras infraestruturas de telecomunicação. O projeto é uma nova perspectiva de governança da internet ou ciberespaço, motivada pelos planos de desenvolvimento da China, bem como uma resposta à ordem vigente de governança da internet, devido aos escândalos de espionagem e esquema de vigilância dos EUA no começo da década de 2010.

O que é Internet? 

Durante a Guerra Fria, vários projetos desenvolvidos entre os Estados Unidos e alguns países europeus transformaram os computadores simples em tecnologias de informação e comunicação, interconectando usuários em diferentes localidades. Durante a década de 1970, a expansão das redes locais e corporativas gerou uma grande demanda por serviços de redes computacionais comerciais, de modo que a comunicação entre computadores transcendeu o setor militar.  Os microcomputadores, com capacidade autônoma no processamento de dados potencializado pela criação de processadores de texto e planilhas eletrônicas, superaram os minicomputadores que apenas davam acesso ao mainframe. Em 1974, Vint Cerf e Bob Kahn desenvolveram o Transfer Control Protocol/Internet Protocol (TCP/IP): a partir daí, diferentes redes computacionais poderiam se comunicar entre si. Neste sentido, a internet é definida como uma rede global entre computadores que adota protocolos padrão — especialmente o TCP/IP1 — para transmissão de dados em pacotes (CANABARRO, 2014).

A Internet é, portanto, uma rede de comunicação de alcance mundial para a circulação de dados e sinais em formato digital, e é apontada como a principal força motriz da revolução cultural, social, política e econômica que se projeta para o século XXI.

CANABARRO, 2014, p. 58

 A princípio, a governança da internet é oriunda da adoção de protocolos técnicos e indicadores necessários para o fluxo de dados — Protocolo de Internet(IP) e Sistema de Nomes de Domínio (DNS). O DNS é o sistema que garante a singularidade para a internet, oferecendo uma tradução da “linguagem computacional” para uma linguagem inteligível para o ser humano, que funciona como uma base de dados de números de IP e seus respectivos nomes de domínio armazenados nos servidores-raiz de DNS. Os treze servidores que formam a base da internet estão localizados em diferentes países, com dez deles nos Estados Unidos, um na Suécia, um na Holanda e um no Japão. Esses servidores são operados por uma combinação de entidades públicas e privadas, todas vinculadas à Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (ICANN)2, que, até 2016 respondia diretamente ao Departamento de Comércio dos Estados Unidos (CANABARRO, 2014; ICANN, 2016).

Desigualdade e hegemonia dos EUA

A história da expansão da internet constrói uma desigualdade significativa na rede, que expõe grande influência dos EUA sobre os demais atores do Sistema Internacional no que tange ao âmbito cibernético. A fim de ilustrar esta perspetiva, a desigualdade material será apresentada utilizando dados relacionados à quantidade de endereços de IP e registrars3, que são registradores de nomes de domínio atribuídos à ICANN.

Tabela 1: Distribuição de Registrars credenciados nos 15 maiores países 

Alemanha 24
Austrália 12
Canadá 23
China 139
Coreia do Sul 12
Espanha 16
Estados Unidos 1994
França 16
Holanda 10
India 60
Itália 10
Japão 19
Reino Unido 24
Suécia 5
Turquia 9
Fonte: NAZARETH, 2022

Gráfico 1: Distribuição de registrars credenciados por país

Fonte: NAZARETH, 2022

Tabela 2: Cinco países com mais números absolutos de IPv4 registrados 

Estados Unidos: 1.541.605.760
China: 330.321.408
Japão: 202.183.168
Reino Unido: 123.500.144
Alemanha: 118.132.104
Fonte: WORLD POPULATION REVIEW, 2022

A posição dos Estados Unidos no sistema internacional continua a ser marcada pela sua superioridade em termos de serviços, infraestrutura e abundância de servidores primários, resultando em um enorme fluxo de informação direcionado para o país. Contudo, durante o final da década de 1990 e o início dos anos 2000, as empresas americanas disseminaram amplamente o desenvolvimento tecnológico de equipamentos e códigos de programação. Visando a maximização dos lucros, essas empresas redirecionaram a produção de chips para a Ásia, transformando a região em um importante polo de produção de hardware e, consequentemente, na produção de software (PIGATTO et al, 2021).

Internet na China e a Rota da Seda Digital

O rápido desenvolvimento econômico da China nos anos 2000 foi diretamente relacionado ao seu avanço tecnológico. De modo que as atividades chinesas em relação à governança do ciberespaço partiram de um robusto planejamento estatal do Partido Comunista Chinês, que em 2006 lançou o Plano Nacional de Médio e Longo Prazo para o Desenvolvimento de Ciência e Tecnologia.  No mesmo ano houve tensões com empresas de TICs dos EUA que atuavam no território chinês — tanto o mecanismo de busca local chinês, Google.cn, quanto o Google.com estavam disponíveis para os usuários, no entanto, as solicitações de controle de conteúdo por parte do governo chinês foram burladas por meio do acesso ao mecanismo de busca global, o que resultou em crescentes tensões que levaram à saída da empresa quatro anos depois (CANBARRO, 2014; BONFIM, 2023). 

A década de 2010 foi marcada pelo notável crescimento chinês no setor digital, no qual as empresas locais passaram a ser comparadas às gigantes de tecnologia dos EUA. Destaca-se a popularização do TikTok, que impulsionou a tendência global de vídeos curtos, tornando-se o primeiro aplicativo a superar barreiras regionais e romper o domínio das empresas ocidentais nas redes sociais. Nesta mesma década, o modelo de inserção digital da China culminou em uma posição de liderança em assuntos relacionados à cooperação e multilateralismo. Logo após as revelações de Snowden, que evidenciaram escândalos de espionagem por parte do governo dos Estados Unidos, o governo chinês se uniu à União Internacional de Telecomunicações (ITU)4 para realizar seu primeiro evento internacional de governança da internet, a Conferência Mundial da Internet (WIC)5

Desde seu início em 2014, a WIC promove a ideia de soberania digital em todos os países, e em 2015 o presidente Xi Jinping mencionou a criação de uma comunidade cibernética com destino compartilhado, estabelecendo uma ordem global de governança multissetorial. No mesmo ano, o 13º Plano Quinquenal (2016-2020), as TICs foram consideradas prioridade, visando uma expansão da indústria nacional e maior atividade na governança global da internet. Ainda em 2015, a iniciativa Internet Plus buscou integrar Big Data, Internet das Coisas, Internet Móvel, Computação em Nuvem e Machine learning às indústrias convencionais dando ênfase para uma maior eficiência com a digitalização para o desenvolvimento (BONFIM, 2023).

No ano de 2017, a WIC anunciou uma “Rota da Seda Digital” como parte da Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI)6 — ou Nova Rota da Seda —,que já estabeleceu parcerias em projetos de fibra óptica com o Paquistão e uma conexão de cabeamento submarino entre Ásia, África e Europa. Em 2018, a China promoveu uma parceria com a União Europeia criando uma Plataforma de Conectividade para cooperação em infraestruturas (PIGATTO et al, 2021). A mesma parceria entre China e UE impulsionou para que em novembro de 2021, inspirado pela GDPR, entrasse em vigor a Lei de Proteção de Informações Pessoais da República Popular da China (LPIPC) (CONGRESSO, 2021). 

Embora a China tenha construído sua própria conferência sobre governança da internet — chamada pelo governo chinês de governança do ciberespaço —, a política externa chinesa não nega a participação em outras organizações, eventos e instituições. A aproximação chinesa com a ITU é de extrema relevância para questões de protocolos técnicos, infraestrutura, proteção de dados e normas antitruste. O que destaco como um comportamento importante dessa relação é a proposta da China à ITU, em parceria com a Huawei e outras operadoras nacionais, de criar um Novo IP como uma alternativa ao protocolo TCP/IP, oriundo dos EUA desde a década de 1990. 

Mesmo que seja praticamente impossível equiparar a desigualdade material em relação aos EUA, um exercício de prospecção me faz imaginar que, principalmente no que tange à infraestrutura e protocolos técnicos, a China se expõe como uma alternativa viável de aproximação Sul-Sul face ao modelo estadunidense de governança da internet. Principalmente observando o atraso de países do Sul global quanto ao acesso à internet e outras TICs, em um contexto que 5,16 bilhões de pessoas representam 64,4%  da população mundial com acesso à internet (KEMP, 2023).

Figura 1: Porcentagem do número de usuários de internet pelo total da população.

Fonte: KEMP,  2023

O objetivo central da China não é a ruptura com a ordem global, mas traçar uma direção concreta para o desenvolvimento chinês. Evidenciado no documento International Strategy of Cooperation on Cyberspace, de 2017, que advoga por governança compartilhada, paz e soberania digital, priorizando a cooperação na economia digital, proteção dos direitos dos cidadãos, intercâmbio cultural cibernético e uma governança mais justa. Neste mesmo sentido, dentro da Rota da Seda Digital tem, também, o projeto Made in China 2025, que prevê o investimento em padrões técnicos, equipamentos e tecnologia visando o crescimento do setor industrial chinês. Este projeto, junto ao desenvolvimento e aperfeiçoamento do 5G e do Beidou7 tende a reduzir a dependência de produtos eletrônicos de outros países, concentrando em produção nacional e/ou cooperação com países envolvidos na Rota da Seda Digital (BONFIM, 2023).

Considerações finais

O ponto central desta coluna é analisar brevemente um evento importante que está acontecendo neste momento. O cenário provável é a concretização desses planos do governo chinês que vai se portar como uma alternativa viável para outros Estados do Sistema Internacional. Contudo, é importante ressaltar possíveis respostas dos EUA quanto ao comportamento chinês, o que pode ser mais bem compreendido em análises mais profundas sobre diversas outras variáveis que envolvem esta complexa relação sino-americana, pensando em intersecções de economia, política externa, segurança e outras. Do mesmo modo, exatamente pelas diversas variáveis que existem na formulação das tomadas de decisão, tanto sobre a governança da internet e TICs quanto sobre outros assuntos relevantes das relações internacionais, considero pouco provável uma ruptura com a ordem vigente de governança da internet e produção de tecnologias da informação, ciência e inovação.

Notas

[1] O modelo TCP são padrões tecnológicos que segmentam a mensagem original e criam pacotes de dados endereçados com origem e destino.

[2] Organização sem fins lucrativos responsável por alocar os endereços de IP, administrar o DNS, gerenciar os servidores-raiz e outras funções que envolvam a governança técnica da internet.

[3] Registradores de nomes de domínio credenciados pela ICANN.

[4] International Telecommunication Union

[5] World Internet Conference

[6] A estratégia de desenvolvimento da Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI) da China visa construir conectividade e cooperação em seis principais corredores econômicos, abrangendo a China e: Mongólia e Rússia; países da Eurásia; Ásia Central e Ocidental; Paquistão; outros países do subcontinente indiano; e Indochina. A Ásia precisa de US$ 26 trilhões em investimentos em infraestrutura até 2030 (Banco Asiático de Desenvolvimento, 2017), e a China certamente pode ajudar a fornecer parte disso. Seus investimentos, por meio da construção de infraestrutura, têm impactos positivos nos países envolvidos. O benefício mútuo é uma característica do BRI que também ajudará a desenvolver mercados para os produtos da China no longo prazo e aliviar o excesso de capacidade industrial no curto prazo. (OCDE, 2018)

[7] Sistema de localização por satélite similar ao GPS estadunidense e ao GLONASS russo.

Referências

BONFIM, Otávio H. S. do. TECNOLOGIA E AUTONOMIA: A ROTA DA SEDA DIGITAL COMO ESTRATÉGIA DO DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA. 2023. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, Universidade Federal do Parana, Curitiba. Disponível em: http://riut.utfpr.edu.br/jspui/bitstream/1/31212/1/rotasedadigitalchina.pdf. Acesso em: 14 jun. 2023.

CANABARRO, Diego Rafael. GOVERNANÇA GLOBAL DA INTERNET: Tecnologia, Poder e Desenvolvimento. 2014. Tese (Doutorado) vol. I – II – Programa de Pós-Graduação em Ciências Políticas Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

CGI. Documentos da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação. 2014. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2014.

CHINA’S Web Chief Explains Theme of 2nd WIC. China Daily. 9 dez. 2015. Disponível em: http://www.chinadaily.com.cn/world/2015wic/2015-12/09/content_22672114.htm. Acesso em: 03 mai. 2023.

COUNCIL ON FOREIGN RELATIONS. Acessing China’s Digital Silk Road Initiative. 2023. Disponível em: https://www.cfr.org/china-digital-silk-road/. Acesso em: 14 jun. 2023.

CONGRESSO Nacional do Povo da China. Lei de Proteção de Informações Pessoais da República Popular da China. 2021. Disponível em: http://www.npc.gov.cn/npc/c30834/202108/a8c4e3672c74491a80b53a172bb753fe.shtm. Acesso em: 03 mai. 2023.

GATTO, F. Raquel; MOREIRA, Antônio M.; GETSCHKO, Demi. Governança da Internet: conceitos, evolução e abrangência. 2009. in: Livro Textos do Minicurso. 27º Simpósio Brasileiro de Redes de Computadores e Sistemas Distribuídos. Cap 2. p. 61-97

HONG, Lin; ZHENHUAN, Ma.. Tongxiang embraces promising digital economy. 01 nov. 2018. Disponível em: https://www.chinadaily.com.cn/a/201811/01/WS5bdaa5a1a310eff303285f6e.html. Acesso em: 03 mai. 2023.

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Murilo Cesar Ançolim Nazareth

Internacionalista formado pela PUC Minas e pesquisador do Grupo de Pesquisa Instituições Internacionais e Segurança. Interessado em estudos sobre tecnologia e inovação nas Relações Internacionais, com ênfase em governança digital e vigilância de dados. Também entusiasta de debates decoloniais.

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