BLOCKCHAIN E FMI: ENTENDA OS IMPACTOS NA ECONOMIA INTERNACIONAL

BLOCKCHAIN E FMI: ENTENDA OS IMPACTOS NA ECONOMIA INTERNACIONAL

Tem sido cada vez mais difícil encontrar alguém que não tenha ouvido falar de blockchain, smart contracts ou tokens, e, geralmente, essas palavras evocam outras, como “pirâmide”, “golpe” ou, em casos mais raros, “sistema financeiro”. De forma geral, todos estes termos se relacionam ao sistema financeiro internacional.

Este mês, vamos tentar mostrar como essas tecnologias, mesmo que ainda cercadas de mistérios e tecnicidades, podem servir para mudar profundamente uma das instituições mais antigas do nosso sistema financeiro: os famosos empréstimos do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Por favor, deixe em mente que esse texto trata daquilo que é possível, e não do que já existe. Em tempos de mudanças tão aceleradas, como foram os últimos dois anos, talvez seja benéfico manter esses assuntos no horizonte. Vamos começar o texto explicando rapidamente o que são os empréstimos do FMI, para depois explicar um pouco destas novas tecnologias, um pouco de mercado financeiro, para então tratar de juntá-los.

OS EMPRÉSTIMOS DO FMI

De acordo com o FMI:

O FMI ajuda países atingidos por crises ao provê-los de suporte financeiro para “dar um fôlego” enquanto eles implementam políticas de ajuste para restaurar a estabilidade econômica e o crescimento (tradução nossa).

Como nem tudo são flores, tais empréstimos são realizados em moeda estrangeira, que podem deixar o país mais exposto às decisões de um banco central alheio, e mudanças nas taxas de juros externas poderiam afetar o processo de recuperação interna.

O lado mais conhecido desses empréstimos são suas obrigações associadas, que de acordo com alguns autores, exigem que o país tome algumas medidas como redução de gastos públicos, mudanças profundas em seguridade social, entre outras – as conhecidas políticas de austeridade.

Sem considerar o mérito de tais medidas, o fato é que essas políticas são, na maior parte das vezes, extremamente impopulares, e a razão é óbvia: pessoas e companhias que dependem de gastos públicos raramente ficarão satisfeitas com uma política de corte de gastos. Não é incomum que países que recorreram a empréstimos do FMI vejam queda na renda, principalmente logo após a adoção das políticas de contenção.

A ótica do Fundo, por sua vez, é similar a de qualquer instituição financeira: recursos próprios (advindos de aportes de países membros) são dados como empréstimo a um devedor que já apresenta dificuldades de pagamento. Quanto maior essa dificuldade, maior o risco de não pagamento, e, ao menos teoricamente, maiores as taxas de juros.

Em resumo, a instituição do socorro pelo FMI cria vários pontos de tensão: os financiadores da instituição ficam com o risco de calote e o país que está sendo resgatado tem que suportar o pagamento de obrigações em moeda estrangeira por um longo período, além do descontentamento popular com as políticas de austeridade, tudo baseado na promessa de uma futura recuperação econômica.

ENFIM, BLOCKCHAIN E SMART CONTRACT

Os smart contracts são essenciais para essa análise, mas é impossível entendê-los sem compreender a blockchain e os tokens. Por isso, vamos de uma vez ao que são essas tecnologias, que compõem a espinha dorsal do “universo cripto”.

Blockchain é simplesmente um registro eletrônico de transações, uma espécie de histórico confiável de envios e recebimentos. A natureza dessas transações pode ser qualquer uma: dinheiro, propriedade, direitos de recebimento, etc., e a sua representação dentro desse registro é chamada de token.

A vantagem de uma blockchain frente a outras formas de registro? Sua destreza e segurança frente a métodos mais antigos. A confiabilidade vem do fato de que todos os participantes (ou um membro central, em alguns casos) devem validar todas as transações anteriores quando fazem uma nova transação. Em termos técnicos, ao fazer uma transação, o participante deve inserir um “bloco” de informações (block) na cadeia de blocos anteriores (chain). Esse bloco de informações só será válido se todos os anteriores forem validados pelos demais.

Sabendo o que é uma blockchain, precisamos entender o que são smart contracts, mas antes, devemos relembrar o conceito de contrato: um acordo de vontades, que define direitos e obrigações entre partes e que, quando se refere a um contrato comercial ou financeiro, trata da transferência de propriedades entre as partes.

Para garantir que o contrato será executado, os arcabouços legais sempre preveem alguma “força superior” com poder de o executar, o que atualmente poderia tomar a forma de um juiz, por exemplo. E esse é o principal ponto chave dos smart contracts: e se pudéssemos criar um contrato que é capaz de se auto-executar?

A resposta é que podemos, usando uma blockchain! O smart contract não passa de uma programação, inserida na blockchain, que diz que se “X” não ocorrer, os tokens da pessoa “A” serão automaticamente transferidos para “B”.

Como exemplo, imagine que eu vou comprar a sua casa e, para isso, nós criamos um smart contract. Quando as condições de pagamento e de reformas são respeitadas, o meu token de dinheiro passa para a sua propriedade, e o seu token da escritura passa para a minha, tudo dentro da cadeia de blocos de informação (a blockchain), e são validados e executados de forma automática, sem chance de que eu ou você interfiramos. É a realização das vontades sem precisar da interferência de um terceiro.

Agora que já entendemos um pouco sobre essas tecnologias revolucionárias, só precisamos de alguns conceitos de mercado financeiro antes de entender como elas podem impactar a economia internacional.

E O MERCADO FINANCEIRO?

Outras definições ainda são essenciais para entender como um contrato se relaciona com a economia internacional. Vamos então explorar o mundo de títulos, obrigações, mercado aberto e rating.

O direito de receber um valor, por contrato, é considerado um título. Em geral, esse título passa a existir junto a um empréstimo: eu te empresto hoje e você me paga amanhã, com juros. Eu posso vender esse direito no mercado aberto, ou seja, para qualquer outra pessoa que não estava originalmente envolvida. Quem tem o título, tem o direito de receber, e quem deve, tem a obrigação de pagar.

Quem tem o título lucra com os juros, que serão pagos futuramente. É claro que esses juros podem ser de várias magnitudes, mas, em geral, eles acompanham o risco, ou seja, são proporcionais à chance de o devedor não pagar aquilo que deve. Essa chance é resumida no chamado rating, um indicador que aponta as capacidades de pagamento. Como se pode imaginar, um país com dificuldades financeiras apresenta um rating pior do que um financeiramente sólido.

E sobre a venda de títulos, por que o detentor faria isso? Para adiantar seus ganhos. Se tem o direito de receber um juro de 5%, em parcelas, pode vender para um terceiro por 3%, à vista. Quem comprou o título pagaria 3%, hoje, mas receberia 5%, no futuro. Quem vendeu ficou com o dinheiro agora, e quem comprou fica com o dinheiro amanhã.

O conceito essencial é o seguinte: um endividado consegue uma melhora no seu rating ao garantir um empréstimo de socorro, contando que faça esforços para retornar à normalidade financeira. Quem emprestou vai receber no futuro, mas pode vender esse direito no mercado aberto para receber hoje, com algum desconto.

JUNTANDO AS PEÇAS

Agora podemos imaginar como seria um sistema moderno de socorro. Para isso, vamos inverter um pouco a lógica da assistência tradicional: ao invés de emprestar recursos, o FMI assume as obrigações que o país possui com os seus credores, que serão pagas pelo devedor original ao FMI, com uma taxa de juros um pouco maior do que antes. O que cada um ganha com isso? O Estado ganha tempo e o FMI ganha a sobretaxa dos contratos.

A questão se torna como fazer com que essa inversão seja vantajosa. Aqui, devemos considerar a blockchain: a dívida do país não é transferida como um contrato normal, e sim como um smart contract, sendo passível de fracionamento em tokens, cujos termos são claros – as obrigações devem ser pagas ao FMI no prazo e o país deve seguir todas as obrigações de estabilização recomendadas. Se esses termos forem quebrados, a dívida automaticamente volta a ser uma obrigação do Estado, sendo somada a uma compensação, além dos demais efeitos do “calote”.

Existiriam algumas consequências para um arranjo desta natureza: primeiro, o rating se tornaria muito mais seguro em pouco tempo, já que o que antes era uma dívida de um país em crise se tornou uma dívida de uma instituição sólida. A maior diferença, entretanto, seria a capacidade de o FMI vender o seu título para terceiros, bastando cobrar uma sobretaxa ligeiramente menor do que receberia do Estado.

Para um exemplo prático, pensemos na Argentina, que atualmente está em crise financeira profunda. Sua dívida pública seria transferida, via smart contract, para o FMI, que seria obrigado a realizar os pagamentos antes devidos pela Argentina. Em troca, esta se comprometeria a pagar ao Fundo os mesmos valores, acrescidos, hipoteticamente, de 10%. O prazo de pagamento seria maior, portanto, o Estado argentino ganharia um fôlego na forma de tempo. O FMI, mesmo pagando as obrigações originais, angaria a diferença de 10%, e poderia então vender esse direito como um título no mercado aberto, cobrando, por exemplo, 6%. Quem comprasse esse título receberia, assim, 4% de sobretaxa dos argentinos, e ainda poderia vender para outros participantes, cobrando uma sobretaxa menor.

Se, como política do FMI, esses títulos fossem vendidos no próprio mercado de capitais argentino, uma situação interessante surgiria: os investidores, que poderiam ser pessoas comuns, que comprassem pequenas frações do título (na blockchain, os tokens podem representar partes pequenas de um todo), agora estariam financeiramente interessadas no sucesso do plano econômico.

Caso as obrigações de política econômica e de pagamento não fossem cumpridas pelo Estado argentino, os títulos seriam automaticamente revertidos para este, acrescidos de uma multa ao Fundo, e os detentores da dívida pública veriam sua dívida com rating excelente se tornando uma com rating muito pior. As políticas de austeridade poderiam até ser melhor aceitas, especialmente por amplos setores da classe média.

Uma segunda consequência desse acerto seria mais relevante para o país em crise: como este já não receberia um grande montante de moeda estrangeira do FMI, especulações excessivas no mercado cambial não seriam uma preocupação. O Estado teria simplesmente alongado a sua dívida sem a necessidade de renegociar termos com cada um dos seus credores.

E O QUE SE GANHA COM ISSO?

As vantagens de um arranjo assim podem ser várias, mas a mais importante seria em relação a segurança e a aceitação de um acerto com o FMI. Tipicamente, tais acordos são impopulares nos países socorridos, devido ao pagamento de juros entendidos como altos demais e da obrigatoriedade de políticas de austeridade, que são acompanhadas de desemprego e reajustes de cadeias produtivas. Conseguir um acordo com o Fundo que seja bem aceito pelos cidadãos, especialmente em países democráticos, poderia ser um avanço na capacidade das instituições multilaterais de evitar crises mais severas.

Para o Fundo as vantagens também existem: graças à impopularidade dos programas de ajuste, as negociações são tipicamente complicadas, e, ao analisarmos a história e mesmo notícias recentes, não são incomuns eventos de moratórias e perdões de dívida. A capacidade de garantir o pagamento, bem como a maior probabilidade de sucesso dos programas de resgate, com certeza seriam bons motivos para a adoção de um programa como este.

CONCLUSÃO

É importante lembrar que esta ideia se trata apenas de uma possibilidade. Existem (muitos) outros fatores que complicam a relação entre países e instituições financeiras internacionais. Embora nada neste conceito seja novo (o mecanismo de venda de títulos é quase tão antigo quanto o dinheiro), o baixo custo, a velocidade de implementação e a redução de riscos fariam deste uma possibilidade que vale uma consideração.

Em relação às novas tecnologias, as organizações globais devem sempre se atualizar e buscar aquilo que pode melhorar o que já existe, sob o risco de se tornarem obsoletas frente a um mundo que se transforma. Nas finanças internacionais, os criptoativos talvez sejam das criações mais relevantes desde muito tempo e, com certeza, devem ser tratados como tal.

REFERÊNCIAS

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Vinicius Santos Marques

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