A RESISTÊNCIA FEMININA NO IRÃ

A RESISTÊNCIA FEMININA NO IRÃ

Imagem de protestos em razão da morte de Mahsa Amini

Nos últimos meses, a notícia de diversos protestos de mulheres no Irã contra a atuação da chamada “polícia da moralidade” tem chamado a atenção da comunidade internacional, que vira, novamente, seus olhos para aquele país.  A causa é o clamor ecoado das mulheres que vivem, desde a revolução de 1979, sob um forte julgamento de moralidade.

Essas vozes ganharam mais força com a morte de Mahsa Amini, de 22 anos, presa em 13 de setembro, acusada de ter deixado alguns fios de cabelo visíveis sob o véu que usava na cabeça. A jovem entrou em coma logo após desmaiar em um centro de detenção e morreu três dias depois no hospital. Esse foi o estopim para uma série de protestos por todo o país, protagonizados por mulheres que há muito têm sido obrigadas a cumprir o código de vestimentas islâmico.

Este artigo visa entender o contexto histórico e político do país que é cenário desses protestos. Será feito um olhar tanto para o passado, ao entender os acontecimentos que transformaram a realidade feminina no Irã, quanto para as perspectivas para o futuro,  a partir da força dessas mulheres, cujas vozes abafadas por um tempo, ganham volume, não só na nação, mas em toda comunidade internacional.

A REVOLUÇÃO ISLÂMICA DE 1979

Um visitante que chegasse ao Irã antes de 1979 encontraria um país bem diferente do atual. Não seria difícil se deparar com mulheres ocupando posição de poder, como Ministras e Juízas. Embora houvesse limitação política, era um tempo de liberdade social, sendo fácil encontrar na rua uma mulher usando o hijab [1], ao lado de outra trajando minissaia.

Nas palavras de Rana Rahimpour, apresentadora iraniano-britânica do Serviço Persa da BBC (BBC NEWS, 2022):

“O Irã ainda era uma sociedade religiosa muito conservadora. Mas, naquela época, havia vontade política para romper esses moldes tradicionais e conservadores, permitindo que as mulheres florescessem e ocupassem mais espaços na sociedade.”

Em 1941, Mohamed Reza, um líder progressista que admirava a cultura ocidental,  havia começado uma modernização do país, em um processo que ficou conhecido como a Revolução Branca. O acesso à educação foi ampliado e  foi aprovada a lei de proteção à família em diferentes áreas, incluindo o casamento e o divórcio. Essa lei aumentou a idade mínima para o casamento das meninas, de 13 para 18 anos, e estabeleceu, ainda, que os homens só poderiam ter uma esposa. Em 1963, as mulheres conquistaram seu direito ao voto.

Em 1978, começaram manifestações de oposição ao governo, principalmente pelos muçulmanos xiitas, mais tradicionalistas. O governo não conseguiu controlar a revolta da oposição e em janeiro de 1979, o Xá Reza Pahlevi foi derrubado e o primeiro-ministro Shapur Baktiar assumiu o poder. Contudo, após as forças armadas aderirem aos protestos, a continuidade desse governo ficou impossível.

No dia 1º de fevereiro de 1979, Khomeini assumiu o poder, declarando oficialmente o Irã como República Islâmica [2], tendo como princípio a crença na jihad, a guerra santa na busca da conversão do mundo ao Islã. O Clérigo islâmico xiita, que assumia o poder, passou a proibir qualquer influência ocidental. 

Saiba mais sobre a revolução islâmica no Irã, acessando o artigo da Isadora Ribeiro Marinho  Guerra Irã – Iraque. Origens do conflito.

 A  POLÍTICA ATUAL DO PAÍS

Apesar de uma política moderada no país em 2016, durante o mandato do Presidente Hassan Rouhani, as eleições de 2020 trouxeram novamente ao poder parlamentares conservadores.   Foi uma vitória expressiva, após a rejeição de candidaturas moderadas e reformistas por parte do Conselho de Guardiões, órgão garantidor do cumprimento, pelas leis aprovadas no Parlamento, da Constituição e da Sharia [3]. (PORTAS ABERTAS, 2022)

As eleições presidenciais de 2021, deu continuidade ao poder conservador, elegendo Ebrahim Raisi, antigo líder do judiciário. Naquele momento a oposição boicotou as eleições após uma nova rejeição em massa de quase 99%  dos seus candidatos pelo Conselho. E, assim, o aiatolá Ali Khamenei segue como líder supremo no controle das condições políticas do país. (PORTAS ABERTAS, 2022)

Dessa forma, o Parlamento está sob o controle dessa liderança religiosa que, através do Conselho dos Guardiões, tem proibido a edição e aprovação de leis contrárias aos caráter islâmico do sistema político. Fica garantido, desta forma, a especificação do islamismo xiita como religião oficial.

Aiatolá Ali Khamenei

AS MULHERES NA REPÚBLICA ISLÂMICA DO IRÃ

Após a revolução islâmica, os direitos antes adquiridos pelas mulheres começaram a ser revogados no país. E, cumprindo a interpretação da Sharia, as mulheres passaram a ser obrigadas a cobrir os cabelos com um hijab, além de usar roupas largas que escondem os seus corpos. No entanto, as mulheres não aceitavam essa imposição de forma pacífica, e manifestações individuais e coletivas marcavam aqueles primeiros anos após a Revolução. 

Contudo, em 1983, foi decidido pelo Parlamento uma punição pelo uso incorreto do véu, consistente inicialmente em 74 chibatadas, acrescentando-se, futuramente, a pena de prisão. Como garantia do cumprimento desta determinação, as unidades policiais especiais Gasht-e e Ershad, passaram a fazer parte da realidade das mulheres no Irã. Chamadas de “polícia da moralidade”, são encarregadas de garantir o respeito à moral islâmica, punindo pessoas que possam estar vestidas de forma indevida, em relação à lei vigente.

Apesar de continuarem a participar do mercado de trabalho, alguns cargos específicos passaram a ser proibidos para a população feminina. Somado a isso, foram instituídas políticas discriminatórias visando desencorajar o trabalho fora do lar. A guerra do Irã contra o Iraque, nos anos de 1980-1988, garantiu a continuidade das mulheres nesse mercado, ainda que restrito, diante da quantidade de homens mortos em combate (Sedghi, 2007, p.20).

Em 1997, no mandato de Seyyed Mohammad Khatami, as mulheres conseguiram importantes direitos, como a permissão para viajar para o exterior para estudar, a idade mínima legal para o casamento e a lei sobre a custódia de filhos (Barlow; Shahram, 2008, p.25). Na política, a conquista se deu somente na possibilidade de ocupar cargos de vice-presidente, governadora, ministra e deputada, representando, apenas, 3,1% dos assentos no parlamento.

 A RESILIÊNCIA DO ATIVISMO FEMININO 

Campanhas como a “One Million Signatures for Change and Equality” têm marcado a luta feminina no Irã pela igualdade de direitos. A campanha consiste na busca de um milhão de assinaturas em apoio a mudanças nas leis do país que vão contra a igualdade de direitos entre a população.  E essa luta vem acontecendo não só por feministas seculares, mas também por feministas islâmicas, que afirmam a interpretação errônea dos textos sagrados por parte dos homens (Barlow;Shahram, 2008, p.4).

Manifestantes em Melbourne, na Austrália,  em outubro deste ano.

O ativismo coletivo feminino no Irã vem alcançando conquistas notáveis ao longo dos anos em áreas como educação, ciências, literatura, artes e até na economia e política. Apesar de não conseguirem direitos iguais aos homens, os avanços vêm sendo gradual e constante, somados à opinião pública internacional diante dos mecanismos de defesa dos direitos humanos.

Nas palavras de Nayereh Tohidi (2016):

 “As experiências das mulheres iranianas, a sua resiliência e coragem, e suas estratégias criativas, flexíveis e pragmáticas têm implicações práticas e teóricas significativas para os feminismos locais e globais.”

A luta feminina está ganhando força, não só no país, mas na comunidade internacional. Protestos têm sido registrados em vários países, rechaçando a violência da “polícia da moralidade” e apoiando a luta das mulheres iranianas pela liberdade e igualdade. A Copa do Mundo de Futebol, que aconteceu no Qatar, foi uma oportunidade para protestos internacionais em apoio à luta feminina no Irã. O mundial foi vitrine dessa revolução, com apoio tanto da torcida, mediante vaias e cartazes nos jogos da seleção do Irã, como também dos próprios jogadores, que permaneceram em silêncio durante o hino nacional na abertura dos dois primeiros jogos.

Ainda que o governo conservador e fundamentalista negue a existência de um movimento revolucionário feminino, as campanhas e propagandas negativas que têm se espalhado pelos jornais e redes sociais, demonstram claramente a força que esse movimento vem alcançando. A força e resiliência das mulheres cresce como um movimento social inspirador e talvez seja o início de mudanças profundas naquela sociedade e na comunidade internacional.

IMAGENS

1 – File:Solidarity with the people of Iran (52394178085).jpg – Wikimedia Commons

2 – File:Ali Khamenei in Ramadhan 02.jpg – Wikimedia Commons

3 – File:Solidarity with the people of Iran (52394257203).jpg – Wikimedia Commons

NOTAS

[1] – Hijab é um termo em Árabe que significa cobertura ou cortina, e é o nome dado ao véu que as mulheres islâmicas usam para cobrir seus cabelos. 

[2] – A Constituição da República Islâmica do Irã está disponível no site da Embaixada da República Islâmica do Irã no Brasil. Acesso em: <https://brazil.mfa.gov.ir/pt/generalcategoryservices/11668/constituição-da-república-islâmica-do-irã>

[3] – Sharia é o conjunto de leis islâmicas baseadas no alcorão, que dita as regras de comportamento muçulmano.

REFERÊNCIAS

BARLOW, Rebecca; AKBARZADEH, Shahram. Prospects for feminism in the Islamic Republic of Iran. Human rights quarterly, vol. 30, n. 1, fev. 2008. p. 21-40.

MARINHO, Isadora Ribeiro. Guerra Irã-Iraque: Origens do conflito. Dois Níveis, 2021.

MORETÃO, Amanda Stinghen. A posição da mulher no Irã antes e depois da revolução iraniana em comparação com a Turquia.  Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017.

PORTAS ABERTAS. Contexto do Irã. Disponível em: <https://portasabertas.org.br/lista-mundial-da-perseguicao/ira> . Acesso em 24 de novembro de 2011.

RODRIGUEZ, Margarita. Como era a vida das mulheres no Irã antes da revolução islâmica. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63038853>  Acesso em 20 de novembro de 2022. 

SEDGHI, Hamideh. Women and Politics in Iran: Veiling, Unveiling and Reveiling. 1. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2007

TOHIDI, Nayereh. Direito das mulheres e movimentos feministas no Irã. Disponível em: <https://sur.conectas.org/en/womens-rights-feminist-movements-iran/> Acesso em 20 de novembro de 2022.

Priscila Tardin

Luso-brasileira, apaixonada pela África. Profissional do Direito que está se especializando em Relações Internacionais para viver o melhor desses dois mundos. Entusiasta de novos desafios e experiências transculturais, com muita facilidade em comunicação e no aprendizado de novos idiomas.

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