CUIDADO COM O ORIENTALISMO AO FALAR DE AFEGANISTÃO

CUIDADO COM O ORIENTALISMO AO FALAR DE AFEGANISTÃO

Fonte: TIME

Em agosto de 2021, após vinte anos de ocupação, os Estados Unidos anunciam que iriam deixar o Afeganistão. Sem a presença da potência no país, o Talibã – organização que havia estado no poder entre a década de 1970 e a invasão estadunidense em 2001 – ocupa  o país em uma velocidade extraordinária, tomando a capital Cabul  dias antes do previsto pela inteligência estrangeira. A instauração do regime do Emirado Árabe Islâmico causa um alvoroço na sociedade internacional à medida que Joe Biden é criticado por conta da retirada mal planejada e pessoas morrem ao tentar escapar de Cabul. O evento, sem dúvida, é apenas o ponto inicial para o delicado jogo de poderes que muda de peças no mundo árabe e deve ser estudado a fundo para evitar erros futuros.

Não é disto que tratamos aqui.

À medida  que o Afeganistão volta a aparecer na primeira página dos grandes sites de notícias, jornais e revistas, as imagens de terroristas, mulheres de burca e imensos desertos se confundem no imaginário popular, de forma indistinta e associada à visão generalista e complacente que se tem de “Oriente” – ou de “Oriente Médio”. Isto não é um acidente. Linguagem e conhecimento, já dizia Foucault, dão acesso ao poder. Logo, quem controla a imagem global do Afeganistão detém, também, o controle político sobre a situação. Entre a mídia influenciada pelo Talibã e aquela influenciada pelas grandes potências, sobra pouco espaço para que a própria população afegã seja escutada. Cuidado para que a linguagem que usa não transforme o povo em peões do poder.

TALIBÃ, AFEGANISTÃO, AFEGÃOS

O Talibã é um grupo fundamentalista islâmico predominantemente pashtun – etnia que corresponde a cerca de metade da população afegã, também presente no norte do Paquistão – fundado por mujahideen[1]  para resistir à ocupação soviética. Caracteriza-se pelo nacionalismo pashtun e, inicialmente, pelo apoio tanto da CIA como co ISI paquistanês. Recentemente de volta ao poder, a organização anunciou um governo interino para o regime que será conhecido como Emirado Islâmico do Afeganistão, cuja legitimidade e juridicidade terá base religiosa. O conselho de liderança do Talibã, o Rahbari Shura, será responsável pela tomada de decisão dos negócios militares e políticos e, apesar do discurso inicial, demonstra poucas intenções de ampliar (ou manter) direitos das mulheres e a livre expressão.

O Afeganistão, país sem litoral localizado na passagem entre China e Irã – um importante ponto da Rota da Seda – é conhecido como “cemitério dos impérios” por ser extremamente difícil de invadir. Ainda assim, como a maior parte dos países colonizados, teve suas fronteiras demarcadas por potências externas que aglutinaram uma miríade de povos e culturas distintos em um mesmo Estado-nação. Sim, a etnia Pashtun é a maioria no país, mas a crescente associação entre os Pashtun e o Talibã acaba por apagar tanto a distinção entre os dois (não, nem todo pashtun é Talibã) como a riqueza multiétnica de um país composto por tajiques, uzbeques, turcomenos e hazaras.

Mais do que isso, se as noções de Afeganistão, Pashtun e Talibã se confundem, escreve Larbi Sadiki em Orientalising Afghanistan, a imagem afegã tanto é diretamente associada ao extremismo como a fragmentação do Estado é divorciada de suas causas, nomeadamente a rápida sucessão de ocupações que incluíram uma década de União Soviética e duas de Estados Unidos. Similarmente, no texto-chave Orientalismo, o crítico literário Edward Said (1978) utiliza a linguagem para analisar como eram criadas as imagens que se tinha a respeito do sudoeste da Ásia – conhecido como Oriente Médio. O que ele aborda, portanto, é como os europeus e estadunidenses, os auto-determinados Ocidentais, criaram a imagem de um outro exótico, selvagem e pouco familiar, sobre a qual puderam definir o Ocidente como seu contraste civilizado. Abordaremos como estes dois tópicos se conectam a seguir.

O QUE É ORIENTALISMO?

Orientalismo é, em suma, tanto uma disciplina acadêmica como um imaginário artístico e uma forma de controle político. Said (1978), assim como Foucault, se foca no discurso e na produção de conhecimento como forma de controle. O Orientalismo esteve presente desde discursos, filmes, pinturas e as mais diversas representações racistas e infantilizadas do que seria a “cultura oriental” – uma mistura incompreensível do árabe, do persa, do indiano e das culturas ao redor, sem distinção. Assim,  trata-se de uma interpretação eurocêntrica do “Oriente”, não de uma representação de fato, cujo objetivo passava por legitimar o controle externo por parte das potências “civilizadas”.

Historicamente, o desenvolvimento do Orientalismo se encaixa nos séculos XVIII, XIX e XX, nos quais a fascinação pelo “Oriente” perpassa a manutenção do poder colonial no norte da África, sul e sudoeste asiático. A manutenção do poder, durante este período, ocorre tanto através da colonização de fato – isto é, ocupação física – quanto à colonização do pensamento. Este controle é tão profundo que, mesmo após o desmoronamento da era colonial que seguiu a Segunda Guerra Mundial, os laços éticos, políticos e intelectuais entre Europa e seus antigos domínios permanecem (SAID, 1978).

Autores mais recentes extrapolam a discussão para questionar a própria existência de um “Ocidente”, um “Oriente” e, neste aspecto, um “Oriente Médio”. Kwame Anthony Appiah, em seu ensaio de 2016 There is no such thing as western civilization (Não há tal coisa como a civilização ocidental, em tradução livre), argumenta que os quatro pilares historicamente considerados como as fundações desta civilização – herança greco-romana, cultura judaico-cristã, liberalismo e a cultura moderna do American Way o Life  – são contraditórias entre si ao mesmo tempo em que não são exclusivas da Europa. Afinal, o pensamento de Aristóteles e Platão só sobreviveu no século IX por conta de traduções disponíveis na biblioteca real de Bagdá e as cidades de Al-Andalus, atual Andaluzia, Espanha, se destacam pela multiculturalidade e convivência de muçulmanos, judeus e cristãos durante o período. De forma semelhante, quais são os laços culturais intrínsecos da obra de Kant e do último single de Beyoncé? O que nos leva a apontá-los como herdeiros de uma mesma dinastia sócio-político-cultural?

A ideia de Ocidente, Appiah aponta, tem origem na corrida imperialista – e assim também a própria ideia de Oriente Médio, que data do artigo The Persian Gulf and International Relations, escrito em 1901 por Alfred Mahan. É, sem nenhuma dúvida, um termo eurocêntrico que reflete a divisão eurocêntrica do mundo durante o colonialismo. Por isto este artigo prefere referir-se à região como sudoeste asiático, um termo geográfico mais neutro. Infelizmente, afinal, a utilização de “Oriente Médio” na linguagem coloquial e acadêmica é apenas uma das formas nas quais o Orientalismo permanece em nossa sociedade.

ORIENTALIZANDO O AFEGANISTÃO

Portanto, o fenômeno que Said aponta durante a década de 70 ainda é perfeitamente visível no discurso em torno da Guerra ao Terror do século XXI. Afirma George W. Bush; “ou vocês estão conosco ou estão com os terroristas”. Ao utilizar, novamente, a linguagem de ‘nós, os amantes da liberdade e da democracia’, e ‘eles, os terroristas fundamentalistas’, é causada uma confusão generalizada entre grupos extremistas e a população “oriental” em geral – não é à toa que casos de islamofobia aumentaram exponencialmente durante o século XXI e chegam a atingir, naturalmente, membros de religiões completamente diferentes, como os Sikh.

Além disso, por conta tanto da posição dos Estados Unidos de potência como da língua inglesa de língua franca da sociedade internacional, a maior parte da produção jornalística difundida no mundo é anglocêntrica. Isto significa que, mesmo em eventos situados no Sudoeste Asiático, o foco estará na América do Norte. Durante o governo apoiado pelos Estados Unidos, o Afeganistão era uma democracia. A derrota é dos Estados Unidos; é Washington que deve rever sua estratégia de política externa; a culpa é de Joe Biden. Não se preocupe, pois o contrário também acontece: quando o estado do Texas aprova uma lei antiaborto  de cunho necessariamente fundamentalista cristão, isto é apelidado de Talibã Texano.  

A linguagem, aqui, é uma arma. É uma forma de reproduzir as décadas de controle externo e silenciar o povo afegão, que é extremista, vítima, selvagem e indefeso ao mesmo tempo. Questões urgentes e amplamente aceitas, como os direitos das mulheres, são utilizadas para justificar a invasão de uma potência externa sob o viés de um “salvador branco” que não tem uma intenção genuína de resgate e se ocupa, por outro lado, em alcançar os interesses soberanos de um Estado alheio – e se retira quando isto não lhe é mais favorável. Não há dúvida que o Talibã representa uma ameaça imediata aos direitos políticos e civis da população afegã, em particular grupos marginalizados de mulheres, minorias étnicas, a população LGBTQIA+ e não-muçulmanos. O que se alerta aqui, no entanto, é que utilizar uma linguagem orientalista, ao se analisar o Afeganistão de 2021, apenas serve para reproduzir uma imagem racista e eurocêntrica que, em última instância, favorece apenas os jogadores do jogo de poder.

Cuidado, portanto, com a linguagem que retira qualquer agência do povo afegão e a dá ao seu opressor.


REFERÊNCIAS

SAID, Edward W. Orientalism. Harmondsworth: Penguin, 1978.


[1] Guerrilheiros pashtun, em sua maioria estudantes.

Larissa Soares

Mestranda em Relações Internacionais pela Universidade de Lisboa. Se interessa por diplomacia, organizações internacionais, estudos subalternos e queer, conflitos sociais e desenvolvimento.

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