ESTADO ISLÂMICO: UMA REVOLUÇÃO DE MARKETING
Fonte: geohistorica2008, reprodução via Flickr.
Terrorismo é, provavelmente, uma das primeiras palavras pensadas quando se fala de Oriente Médio. Contudo, ainda que tratemos de um grupo fundamentalista religioso específico, presente na Síria e no Iraque, é preciso considerar que o terrorismo não é particular ou inerente da região ou do Islã. Na realidade, até há pouco tempo, os grandes grupos estavam na Europa e nas Américas, envolvidos em questões muito distantes da religião.
O mais importante, antes de tudo, é entender: o que é terrorismo?
A palavra é usada em tantas situações diferentes que seu sentido é quase esvaziado. No meio acadêmico, um consenso total sobre a definição ainda é difícil. Porém, os pontos mais importantes e aceitos levam ao seguinte:
“Terrorismo é um método de ação violenta repetida, inspirador de ansiedade, empregado por atores individuais, grupais ou estatais, por razões políticas; no qual os alvos diretos da violência não são os principais alvos.” (SCHMID; JONGMAN, 1988, p.28).
Nesse caso, vítimas imediatas servem apenas como mensagem, o alvo principal é quem assiste a violência. O terrorismo é uma política deliberada para explorar o medo e gerar um estado psicológico de insegurança, sempre com um recado político nas ações. Com isso em mente, podemos usar o termo de forma mais consciente e continuar com o foco deste texto: as estratégias de comunicação e propaganda do grupo sunita[1] que ganhou atenção do mundo todo, o Estado Islâmico (EI).
COMUNICAÇÃO PLANEJADA
Até fevereiro de 2014, o Estado Islâmico existia como “Al-Qaeda no Iraque”, e a decisão de separar-se para criar uma organização autônoma levou a declarar de seu próprio Califado[2]. Desde então, o EI se faz extremamente presente em um espaço nunca utilizado de maneira tão fervorosa e sofisticada por outro grupo – as redes sociais.
Uma vez que o terrorismo é uma forma de violência política que deseja comunicar algo, fazer propaganda e atrair atenção são cruciais. A tecnologia permite cada vez mais um contato direto e íntimo de pessoas comuns com membros do grupo – o EI usa de fóruns, chat rooms, e-mails, plataformas de mensagem para compartilhar seus materiais e conectar-se diretamente com várias audiências. O resultado é um forte senso de comunidade virtual, que convence e atrai apoiadores e aumenta o sucesso no recrutamento (ALY et al, 2016; FARWELL, 2014).
“O EI é uma organização terrorista, mas não é somente uma organização terrorista (…) É uma máquina de propaganda eficiente e hábil na disseminação de sua mensagem e na chamada de novos recrutas através das mídias sociais.” (WEISS; HASSAN, p. 14, 2015)
O Estado Islâmico modernizou completamente as estratégias de comunicação de grupos terroristas pela propagação intensa de suas mensagens por outras plataformas, ao perceber que as redes sociais não tinham o filtro das organizações midiáticas de televisão. Diante disso, o Twitter foi um dos grandes meios de difusão, pelo compartilhamento de fotos e vídeos brutais sem restrição e controle de Estado. O grupo tinha aplicativos para disparar tweets e hashtags sem serem detectados por algoritmos de spam, e ativistas online e contas robôs para disseminar mensagens. Ao mesmo tempo, já aproveitavam do Youtube, Facebook, e redes sociais alternativas como a Diaspora. Após o Twitter conseguir bloquear as contas, o EI migrou para os fóruns criptografados do Telegram (ALY et al, 2016; CELSO, 2020).
Além de publicações em árabe, conteúdos mais importantes são comumente divulgados em inglês, francês e alemão, depois traduzidos para vários idiomas, como russo, turco, africâner etc. Os apoiadores, voluntariamente, realizam essas traduções, o que expande o alcance. Ainda mais, outro diferencial está na disposição em se comunicar pelo inglês, o que orienta a propaganda para estrangeiros. Ao conseguir, de maneira inédita, recrutar pessoas de países ocidentais, aos quais o EI tem guerra declarada, houve um ganho de habilidades em tecnologia e idiomas (ALY et al, 2016; CELSO, 2020).
O método de comunicação do EI tem sido inovador, especialmente, devido ao conteúdo. Sua campanha de mídia mistura violência brutal com um idealismo utópico e apelo às emoções dos espectadores. Os políticos e a mídia mainstream do Ocidente focam apenas nos espetáculos que o EI constrói, nos vídeos de assassinatos e execuções, porém, esta é apenas uma parte da propaganda. Há um objetivo muito maior do que retratar lutadores sanguinários e intimidar os inimigos, pois o grupo também cria uma narrativa para se legitimar como Estado, como uma entidade política e uma instituição religiosa (ALY et al, 2016; ANDERSON; SANDBERG, 2018; SWEENEY; KUBIT, 2019).
Diante disso, o tipo de propaganda que o EI conduz assemelha-se muito a uma campanha de marketing, ou seja, à construção de uma marca que conquiste com palavras, símbolos e imagens de apelo emocional e que inunde a vida das pessoas com vários produtos: vídeos, filmes, jornais, fotos, boletins de rádio, pôsteres, revistas, livros, comunicados de notícias, relatórios anuais, músicas e poesia (CELSO, 2020; KRUGLOVA, 2021; WINTER, 2020). Autores como Winter (2020), Sweeney e Kubit (2019), analisaram a produção de conteúdo da organização e apontaram três grandes objetivos da comunicação estratégica que usa de violência e de explicações religiosas: legitimidade, propagação e intimidação.
Legitimidade
O EI aponta uma série de problemas para os quais se coloca como a única solução, e a existência do grupo e do Califado demandam auto sacrifício, luta e guerra. Problemas tais como a perseguição aos muçulmanos e a invasão intelectual por parte do ‘inimigo Cruzado’ (o Ocidente). Como o Estado é aquele que tem o monopólio legítimo do uso da força (WEBER, 1997), o EI tenta se mostrar uma entidade política capaz de ter com sucesso em atos de violência, e que deve usar deles para garantir a vitória (SWEENEY; KUBIT, 2019).
Essa vitória seria ordenada religiosamente, em nome de Alá, pois o Califado representa e remonta aos tempos do Profeta Maomé – segundo a construção discursiva retórica, feita para mobilizar através da fé. Justificando a guerra pelo uso das sagradas escrituras, o EI retrata-se como um Estado poderoso e legítimo, que ainda possui uma visão moral. E, para mais, um representante dos interesses negligenciados de muçulmanos sunitas, por prover o que os governos sírio e iraquiano falharam em dar: emprego, saúde, educação, comida. Dessa forma, histórias, relatórios, e fotos apresentam uma vida feliz no Califado, o que mostra necessidade de o EI existir. (KRUGLOVA, 2021; SWEENEY; KUBIT, 2019; WINTER, 2020).
Propagação
Os esforços de propagação da ideologia não visam apenas atrair novos recrutas, mas moldar as percepções e direcionar comportamentos, ao apresentar sua versão sobre quem são os soldados e sua própria interpretação religiosa. Existem duas revistas online, Rumiyah e Dabiq, com grande sucesso nesse objetivo, agindo como jogadas de marketing que criam experiência e estilo de vida únicos para consumidores da marca (KRUGLOVA, 2021; WINTER, 2020).
Uma boa rota para a persuasão, dentro do marketing e da propaganda, é produzir o transporte narrativo – quando alguém imerge na experiência contada e é absorvido por ela, o que suspende seu julgamento racional e cria conexão com a marca. As revistas possuem vários artigos que contam histórias, sejam narrativas fictícias ou relatos reais de membros da organização, capazes de exercer esse efeito nos leitores. Eles podem identificar-se com os personagens, sempre muçulmanos devotos vivendo infelizes no Ocidente (KRUGLOVA, 2021).
Os protagonistas sentem que não pertencem ali, em um lugar cheio de pecados, onde as pessoas são imorais e imundas em suas almas – um bom muçulmano nunca conseguiria viver assim. Essa narrativa preenche uma necessidade emocional humana, dando a sensação de ser especial, diferente dos outros. Nas histórias, quando o Califado é estabelecido pelo Estado Islâmico, há uma transformação moral e um despertar, o protagonista percebe seu verdadeiro propósito e migra para uma vida muito melhor (KRUGLOVA, 2021).
“Nas revistas, há ‘relatos’ do Califado que mostram a ótima vida que as pessoas lá vivem, crianças sorridentes, celebrações conjuntas e uma governança geral efetiva do grupo. A história do muçulmano verdadeiro, que sofreu tanto na terra do pecado e da descrença, termina feliz na terra mágica da verdadeira fé e da pureza” (KRUGLOVA, 2021).
Em muitos artigos, também são expostas trajetórias de soldados mortos em operações militares ou ataques suicidas, contadas de maneira a representá-los como heróis que lutaram bravamente e encontrariam a glória eterna no Paraíso de Alá. Eventualmente, o Estado Islâmico percebeu a necessidade até mesmo de contos para as mulheres, que iam ao Califado sozinhas não em busca de amor, mas de seu empoderamento (KRUGLOVA, 2021).
Intimidação
Na situação de guerra declara pelo EI aos inimigos que constituem a ameaça sionista[3], cruzada, apóstata[4] e xiita ao ‘verdadeiro Islã’, também é preciso de uma propaganda que os assuste e provoque. Este é o papel da campanha de mídia mais brutal, que incita diretamente a violência e a retrata visualmente, insulta e desumaniza adversários. Os vídeos de cenas de batalha, execuções e decapitações procuram normalizar a violência extrema e são o diferencial do EI com relação a outros grupos extremistas. Ademais, são uma evolução em produção de conteúdo, que mudaram de visões simples de apenas uma câmera para imagens com vários ângulos e com técnicas profissionais, refletindo o estilo de entretenimento de Hollywood. (CELSO, 2020; SWEENEY; KUBIT, 2019; WINTER, 2020).
O material provoca medo ao informar que aquelas são as consequências de recusar a se submeter a vontade do Estado Islâmico e de se colocar como inimigo de Alá. Afirma-se que para derrotar um Ocidente hostil, que tem como único propósito matar, destruir e humilhar muçulmanos, a solução é agir da mesma forma e ainda mais impiedosamente. Portanto, além de intimidar, esse marketing de autopromoção, por um lado, e desumanização, por outro, ao dividir o mundo entre “Nós” e “Eles” ainda fortalece a solidariedade interna entre os membros, reforça princípios e mobiliza mais apoio (CELSO, 2020; KRUGLOVA, 2021; SWEENEY; KUBIT, 2019)
Considerações finais
A propaganda violenta e brutal do Estado Islâmico é apenas uma parte de todo o seu conteúdo midiático e comunicativo. Existe uma produção extensa com outras características, para atender a objetivos mais amplos e pensados a longo prazo, além de estratégias muito bem construída para atingi-los. É importante ter em mente o outro lado da história, ele é crucial para entender o sucesso dessa organização terrorista. Um outro lado das imagens de sangue derramado, decapitações e execuções, no qual os soldados são mostrados comendo barras de chocolate e alimentando gatinhos. Apenas compreendendo a variedade de meios e fins do Estado Islâmico, será possível lidar com ele e pensar mecanismos eficientes de contraterrorismo (ALY et al, 2016; FARWELL, 2014; WINTER, 2017).
Notas
[1] Dentro do Islamismo, há uma divisão histórica entre sunitas e xiitas, que data de 14 séculos atrás, após a morte do profeta Maomé, em 632 D.C. Seus seguidores se fragmentaram entre os que acreditavam que outros membros da elite da comunidade islâmica poderiam escolher o sucessor (sunitas) e os defensores de que apenas algum parente consanguíneo de Maomé poderia tomar seu lugar (xiitas) (PRUITT, 2019).
[2] Um Califado é um governo islâmico, em que se escolhe um líder (o califa) para os muçulmanos ao redor do mundo. Este termo nomeou o sistema de governo que começou após a morte do profeta Maomé, e o último Califado da história foi o Império Otomano. A ideia do Estado Islâmico é retomar uma noção extremamente tradicional e puritana do Islamismo, na qual deve haver um governo do Islã, um verdadeiro Estado, que lidere todos os muçulmanos sunitas do globo. Começando pela conquista e domínio de territórios na Síria e no Iraque, o EI se apresenta como um governo com interesses expansionistas que atravessam todas as fronteiras (YEHIA, 2014).
[3] Sionismo: movimento político em defesa do direito dos judeus de terem um Estado nacional judaico, uma pátria, na região que a bíblia chama de “Terra de Israel”.
[4] Legalmente, em países de maioria muçulmana, apóstata é o muçulmano que se converte a outra religião ou que explicitamente recusa o Islã. Essa palavra tem sido muito usada com fins políticos hoje em dia, e o Estado Islâmico a emprega fervorosamente para se referir àqueles que se distanciaram do ‘verdadeiro Islã’, que negam ou não seguem princípios islâmicos conservadores ou que não sejam adeptos da mesma metodologia profética que o grupo. Isso inclui até mesmo países que cooperem com ‘as autoridades tirânicas da Europa’, e muçulmanos que vivam no Ocidente e votem ou participem de eleições.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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