A CAXEMIRA E O CONFLITO DE MAIS DE 70 ANOS ENTRE ÍNDIA E PAQUISTÃO

A CAXEMIRA E O CONFLITO DE MAIS DE 70 ANOS ENTRE ÍNDIA E PAQUISTÃO

Imagem: Tore Urnes, 2008

Há mais de 70 anos, a região da Caxemira é alvo da disputa territorial entre Índia e Paquistão. Uma relação alimentada por ódio, acusações mútuas e confrontos em torno da ocupação deste montanhoso vale no Himalaia, que tem boa parte da sua localização na fronteira entre os dois países, ex-colônias britânicas, que conquistaram suas independências em 1947. 

Mas antes de abordar o conflito propriamente dito, que é o objetivo principal deste artigo, é preciso entender as profundas raízes desta histórica rivalidade. A divisão entre hindus e muçulmanos é certamente um dos pilares da tensão entre os dois países. A rejeição mútua vem muito antes da partição da Caxemira. Alves, Ponté e Aparecido (2019) relatam:

“A região é definida por seu pluralismo linguístico, étnico e religioso, o que a leva a dificuldades para estabelecer políticas públicas capazes de conciliar choques derivados de tais divergências culturais. O Império Mogol (1526-1857), contudo, sob o reinado de Akbar, conseguiu unir essa população plural através do desenvolvimento de um sincretismo religioso que unia valores hindus e islâmicos ao mesmo tempo. (…) Posteriormente, com a assunção do poder por Aurangzebe, um muçulmano sunita neto de Akbar, os hindus passaram a ser marginalizados (…)” (ALVES; PONTÉ; APARECIDO, 2019, p. 2-3). 

Período pós-independência 

A primeira guerra entre os vizinhos do Sul da Ásia em razão da disputa pela Caxemira eclodiu no mesmo ano da libertação do domínio inglês, em 1947. Sua repartição acirrou as rivalidades religiosas e provocou um dos maiores movimentos migratórios já registrados. Canever (2016, p. 109) definiu a situação da seguinte maneira: 

“Quando os ingleses aceitaram a independência do subcontinente indiano, a região foi dividida em duas, Paquistão para os “muçulmanos” e Índia para os “hindus”. (…) Mesmo com maioria muçulmana, a Caxemira acabou fazendo parte da Índia durante a partilha. Tentando anexá-la ao recém-formado país, o Paquistão invadiu parte do território da Caxemira (30%) e a Índia controla outra porção”. (CANEVER, 2016, p. 109). 

A saída britânica do território indiano e a delimitação dos estados soberanos da Índia e do Paquistão foram ratificadas antes da definição dos novos territórios, de acordo com (RIVERS, 2017, p. 71).

O resultado foi que cerca de 14 milhões de pessoas, muçulmanos e hindus, ficaram presos no lado errado de suas respectivas fronteiras. Quando começou a contagem regressiva para a independência, houve um êxodo mútuo e em massa de hindus do Paquistão para a Índia e de muçulmanos da Índia para o Paquistão. A consequência foi uma das maiores tentativas de genocídio e limpeza étnica já registrada na humanidade. 

A Caxemira, com seus 220 mil quilômetros quadrados, quase o estado do Piauí, foi dividida após a 2º Grande Guerra entre Índia, Paquistão e China. A Índia ficou com a maior área, onde se localiza a região de Jammu e da Caxemira, talvez o principal pivô das polêmicas envolvendo os dois países. Ao Paquistão, coube controlar uma extensão territorial inferior àquela cedida aos indianos. 

Histórico dos conflitos

A anexação de Jammu e Caxemira, de maioria muçulmana, à Índia, foi o estopim para a primeira guerra, em 1947.  Mas a medida não foi suficiente para a formalização ser seguida estritamente pelos dois países, que continuaram com interpretações divergentes sobre este processo de divisão e encaminharam tropas militares à região. Também fizeram (e ainda fazem) acusações mútuas de desrespeito às regras, mesmo depois da criação de uma linha divisória, segundo Ferreira (2021):

“A LoC surgiu com o intuito de dividir a região em três: uma parte administrada por cada país e uma terceira área, reivindicada pela China. A Caxemira sob domínio indiano representa dois terços do total e possuía cerca de 10 milhões de habitantes em 2016. O território administrado pelo Paquistão, por sua vez, é mais modesto em extensão territorial e em população, com aproximadamente 4,5 milhões de pessoas. Entretanto, os limites da Linha de Controle não foram claramente definidos, o que abriu margem para a continuidade dos conflitos ao longo do século XX”. (FERREIRA, 2021).

Em 1965, ocorreu a segunda guerra, também sem uma solução concreta e a Caxemira continuou dividida. A terceira guerra entre as duas nações viria a acontecer em 1971. Naquela ocasião, a Índia interveio no Paquistão Oriental (hoje Bangladesh). O fim do conflito resultou em prejuízos expressivos para o Paquistão, que perdeu o posto de país islâmico mais populoso e teve 93 mil presos pelas tropas da Índia (JÚNIOR, 2003, p. 186).

No ano seguinte, os dois governos assinaram o Acordo de Simla, que resultou na libertação dos prisioneiros paquistaneses e na negociação bilateral por meios pacíficos estabelecidos pelos países. Também concordaram, em um primeiro momento, em delimitar uma nova linha de controle (LoC) [2] na Caxemira para separar as áreas concedidas às duas nações (JÚNIOR, 2003, p. 187). 

Entretanto, não significou o fim da rivalidade, uma vez que os dois países mantiveram uma relação marcada por acusações e ameaças mútuas (além de conflitos menores). Também na década de 70, os dois países passaram a desenvolver seus programas nucleares. Em maio de 1998, depois de um tempo de “relativa calma”, ambos efetuaram testes (os indianos tomaram a iniciativa e tiveram resposta paquistanesa), sendo oficialmente reconhecidos e declarados como potências nucleares (USIP, 2017). 

Por outro lado, não se pode negar que os vizinhos tentaram um armistício diplomático. O período tenso marcado pelos testes nucleares antecedeu o cessar-fogo de 2003 (USIP, 2017). Mas o ambiente instável marcou a relação nos anos seguintes e o Paquistão e a Índia continuaram com acusações de violações do acordo. 

Em 2019, surgiu um novo combustível para a crise de mais de sete décadas, com a decisão do governo indiano de pôr fim à autonomia da região de Jammu e Caxemira, na prática o Artigo 370 da Constituição do país seria revogado (COUNCIL ON FOREIGN RELATIONS). Artigo este que havia sido incorporado em 1949.  Com a decisão, as duas regiões ganham um status especial de autonomia, mas este ato, nas palavras de Kugelman (2019), certamente se voltaria contra a Índia. 

Em fevereiro deste ano, Índia e Paquistão deram um novo passo para tentar consolidar uma convivência pacífica na região e anunciaram um novo acordo de cessar-fogo na linha de controle que divide os territórios dos dois países, como ocorreu em 2003, após mais uma rodada de confrontos na área nos meses anteriores. Sobre a iniciativa, foi divulgado um comunicado conjunto (PIB, 2021):

“Os diretores gerais de Operações Militares de Índia e Paquistão realizaram discussões sobre o mecanismo estabelecido de linha direta. Os dois lados decidiram rever a situação ao longo da linha de controle e de todos os setores em um ambiente livre, franco e cordial. No interesse de alcançar mutuamente uma paz benéfica e sustentável ao longo da fronteira, os dois DGsMO [3] concordaram em focar nos assuntos e preocupações que têm propensões de perturbar a paz e levar à violência. Ambos concordaram com a estrita observância de todos os acordos, entendimentos e o cessar-fogo ao longo da linha de controle e todos os outros setores a partir da meia-noite de 24 para 25 de fevereiro de 2021”. (PIB, 2021, tradução minha).

A questão da água por trás do conflito 

A Caxemira possui uma importância estratégica por ser uma terra de muitos rios e, consequentemente, pela quantidade de água disponível, sendo de vital importância principalmente para os países que estão na fronteira em prol do desenvolvimento socioeconômico da população. E isso representa outra variável por trás do conflito entre os dois países. 

Índia e Paquistão têm populações significativamente diferentes do ponto de vista social e econômico e a água torna-se essencial em termos de saúde pública. Uma das divergências diz respeito ao uso da água para geração de energia, principalmente por parte dos paquistaneses, que temiam que o vizinho desviasse parte dos cursos para abrigar usinas, o que, na alegação deles, poderia afetar o abastecimento (ALVES; PONTÉ; APARECIDO, 2019, p. 1).

Portanto, trata-se de um tema delicado, como classifica Anunciação (2013, p. 57):

“Apesar de alguns pontos entre os dois países terem motivado certo nível de sucesso em relação à diplomacia Indo-Paquistanesa, a água ainda é um ponto em discussão entre as partes, pois outras insatisfações, aquém das questões econômicas e sociais, transcorrem desta problemática. A luta pela posse dos recursos hídricos acaba por situar um hiato entre a motivação para o conflito e a disponibilidade para a cooperação entre as partes”. (ANUNCIAÇÃO, 2013, p. 57).

Conclusão

A Índia e o Paquistão, cada um administrando seus territórios, ainda lutam para ter o controle integral da Caxemira por apenas um dos lados. Apesar do último acordo para respeitar o cessar-fogo em fevereiro deste ano e a linha divisória da região que divide as regiões da Caxemira sob o domínio dos dois países, ainda há sinais claros de que as negociações em torno da estabilidade da situação precisam avançar. O esforço dependerá unicamente das partes, pois ainda há incertezas em relação ao futuro desta relação.  

A questão nuclear envolvendo os dois países é um ponto que merece atenção, diante do arsenal desenvolvido por ambos. A posse de armas de destruição em massa preocupa as autoridades internacionais, pois uma escalada dos conflitos, tanto diretos quanto indiretos, pode levar a ataques nucleares com consequências drásticas. Desta forma, a postura dos países vizinhos ainda é uma barreira para um possível avanço. 

Nenhum dos países quer abrir mão de seus direitos alegados, mas na diplomacia uma boa negociação consiste na cessão mútua para o êxito de qualquer acordo. 

SUMÁRIO

[1] – Apesar de levar o nome de um dos territórios administrados pela Índia, a região da Caxemira engloba toda a área que é objeto da disputa com o Paquistão.

[2] – LoC – Sigla em inglês para linha de controle (Line of Control), usada para definir a divisão entre os territórios de domínio dos dois países.

[3] – DGsMO – Sigla em inglês para “Diretores-Gerais de Operações Militares”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS  

ALVES, Queiroz Rafael, PONTÉ, João Victor, e APARECIDO, Júlia Mori. Observatório dos Conflitos Internacionais. Disponível em <https://www.marilia.unesp.br/Home/Extensao/observatoriodeconflitosinternacionais/jornal—v.-6-n.-5-outubro-de-2019.pdf>. Acesso em 24 de abril de 2021.

ANUNCIAÇÃO, Arthur Sá. O conflito em Caxemira : uma luta identitária e a perpetuação de um risco internacional.  Tese de Mestrado em Relações Internacionais, na especialidade de Estudos para a Paz e Segurança, apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra para obtenção do grau de Mestre  – Disponível em <https://eg.uc.pt/bitstream/10316/24771/1/Disserta%c3%a7%c3%a3o_Arthur_Anuncia%c3%a7%c3%a3o.pdf>. Acesso em 23 de abril de 2021

RIVER, Charles. A Partição da Índia Britânica: A História e o Legado da Divisão do Raj Britânico entre Índia e Paquistão . Charles River Editors. 2017. P.109. Edição do Kindle.   

CANEVER, Guilherme. Uma viagem pelos países que não existem (Viagens pelo mundo) (pp. 109-110). Pulp Edições, 2016. Edição do Kindle.

COUNCIL ON FOREIGN RELATIONS – Conflict between India and Pakistan. Disponível em <https://www.cfr.org/global-conflict-tracker/conflict/conflict-between-india-and-pakistan>. Acesso em 17 de abril de 2021

FERREIRA, Luiza. Programa de Educação Tutorial em Relações Internacionais – Disponível em <http://petrel.unb.br/destaques/125-o-lugar-do-povo-da-caxemira-na-disputa-entre-india-e-paquistao-o-que-muda-com-o-novo-cessar-fogo>. Acesso em 23 de abril de 2021

JÚNIOR, ABELARDO ARANTES. Revista Brasileira de Política Internacional – O Paquistão e as estratégias ocidentais para a Ásia Meridional 46 (1): p. 186-187 (2003) – Disponível em <https://www.scielo.br/pdf/rbpi/v46n1/a09v46n1.pdf>. Acesso em 11 de abril de 2021

KUGELMAN, Michael. India’s Sudden Kashmir Move Could Backfire Badly. Foreign Policy, 05 de agosto de 2019. Disponível em:  Disponível em <https://foreignpolicy.com/2019/08/05/indias-sudden-kashmir-move-could-backfire-badly/>. Acesso em 26 de abril de 2021

PIB. Government of India. Press Bureau Information.  Disponível em <https://www.pib.gov.in/PressReleseDetail.aspx?PRID=1700682>. Acesso em 22 de abril de 2021

UNITED STATES INSTITUTE OF PEACE – Ceasefire violations in Jammu and Kashmir: Line on fire Disponível em <https://www.usip.org/sites/default/files/PW131-Ceasefire-Violations-in-Jammu-and-Kashmir-A-Line-on-Fire.pdf>. Acesso em 23 de abril de 2021

IMAGENS

URNES, TORE – Disponível em < flickr.com/photos/urnes/2663808130 >. Acesso em 10/05/2021

Pablo de Deus Ulisses

Jornalista e estudante do 5° semestre de Relações Internacionais na Estácio de Sá.

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