O SANTOS DE PELÉ PAROU UMA GUERRA?

O SANTOS DE PELÉ PAROU UMA GUERRA?

Pelé e a equipe santista com oficiais militares da Nigéria em 1969. (Foto: Reprodução/Santos FC).

Talvez você não conheça Edson Arantes do Nascimento, um brasileiro nascido em Três Corações, no interior de Minas Gerais. Mas com certeza você o conhece por sua alcunha que se tornou parte de sua identidade: Pelé. Pelé e Edson se tornaram um, se mesclaram, se tornaram indissociáveis na figura de um Rei. Sim, Pelé é considerado por boa parte do mundo como o maior jogador de todos os tempos e se alguém se referir ao Rei do Futebol, é muito provável que esteja falando de Pelé. Seus feitos em campo são indiscutivelmente grandiosos, alçando marcas expressivas, títulos inéditos e uma história que é considerada legendária. Uma parte importante dessa história foi calcada no Santos Futebol Clube, se estabelecendo como peça de um dos times mais famosos de todos os tempos. 

“O meu Santos é sensacional
Só o Santos parou a guerra
Com Rei Pelé Bi Mundial, o maior time da Terra

É meu amor, primeiro amor, eterno amor, Santos
É meu amor, primeiro amor, eterno amor, Santos”

Música “O Maior Time da Terra”, do Santos FC

A letra acima é transcrição da música constantemente cantada com orgulho pela torcida santista nas arquibancadas da Vila Belmiro, o estádio do clube. Ela retrata uma das mais famosas histórias contadas sobre o alvinegro de Pelé, explicitada na frase “Só o Santos parou a guerra”. Esse verso se refere a uma excursão do Santos ao continente africano no ano de 1969, especificamente a um amistoso realizado na Nigéria, na Cidade de Benin. De acordo com essa famosa história, a presença do esquadrão santista na região paralisou a guerra civil nigeriana iniciada em 1967, iniciada pela tentativa de emancipação da região da Biafra. No entanto, existem evidências que contestam a versão contada pelos santistas, a qual virou tema de livros, músicas, estampas de produtos oficiais, dentre outros.

A Coluna RI em Campo deste mês irá se mergulhar sobre as versões desse acontecimento e novamente entender o uso do futebol, de uma maneira ou de outra, em um contexto das Relações Internacionais.

A VERSÃO DO SANTOS

As excursões internacionais dos times brasileiros se tornaram muito comuns nas décadas de 60 e 70. As campanhas nas Copas do Mundo de 1958, 1962 e 1970, as quais garantiram o tricampeonato mundial, fortaleceram o Brasil no cenário futebolístico e foram um dos fatores que influenciaram a ascensão desse tipo de jogos internacionais. Além disso, o quesito financeiro também era considerável, afinal, a bilheteria era uma fonte de renda importantíssima dentro de um contexto sem a presença de valores exorbitantes pagos por contratos de patrocínios e cotas televisivas. Sendo assim, vários empresários da época bancaram e organizaram jogos internacionais visando arrecadação monetária, a qual era dividida com os clubes.

No contexto específico do Santos, a fama da equipe bicampeã da Libertadores e do Mundial de Clubes, a presença de Pelé e uma indiscutível ligação da equipe com a identidade negra através dos seus principais craques levou o clube para excursões na África no período delimitado. Isso aconteceu porque o contexto mundial de descolonização do continente africano, a ascensão do movimento negro e identificação da equipe com essas pautas tornaram a viagem economicamente atrativa para o Santos, com promessas de grandes públicos. Foi nesse contexto que o Alvinegro realizou 4 viagens para a África no período, sendo na de 1969 que o clube se encontrou na Cidade de Benin. 

O jogo na região não estava originalmente marcado, mas o Santos retornou à Nigéria depois de se apresentar em Lagos, a capital. O local se encontrava próximo à região separatista Biafra, a qual se encontrava no cerne de uma guerra que assolava o país africano. Após uma série de questões consequentes da independência da própria Nigéria e de golpes militares, como conflitos étnicos, religiosos, massacres e motins, o governador militar Emeka Ojukwu, proclamou, no dia 30 de maio de 1967, a criação da República de Biafra, soberana e independente, o que deu início a uma guerra que só terminaria em 1970, com a rendição de Biafra. De acordo com as estimativas, o número de mortos se encontra entre 500 mil e dois milhões de pessoas.

Esse era o contexto de uma Nigéria que recebeu o Santos no dia 4 de fevereiro de 1969. A versão do time paulista é corroborada pelos relatos do jornalista brasileiro que acompanhou a turnê, Gilberto Castor Marques, do jornal A Tribuna, o qual estabeleceu que o Santos só jogou em Benin com garantias de segurança relativas à guerra civil. Isso fez com que, segundo Marques, fosse decretado feriado e cessar-fogo para a apresentação do Alvinegro da Baixada Santista em um palco marcado por um conflito separatista. Essa história fez com que uma mística em torno da figura de Pelé e do Santos se tornasse presente no imaginário do futebol, e principalmente, na mente dos torcedores do clube, como se o futebol do esquadrão tivesse levado, pelo menos por alguns dias, a paz ao povo nigeriano.

O time do Santos junto de autoridades federais da Nigéria. (Foto: Reprodução/Santos FC)

MAS FOI REALMENTE ASSIM?

Nos últimos anos, evidências apontaram que a história não foi bem assim, argumento embasado pela pesquisa de pós-doutorado do antropólogo José Paulo Florenzano. Mais do que isso, a linha de pesquisa recente aponta que o Santos, ao contrário do que reza a lenda, serviu como propaganda do governo militar da Nigéria contra a República Separatista de Biafra. Pode-se notar como ambas versões são interpretações completamente distintas dos fatos, afinal, enquanto o Santos defende ter parado o conflito, a outra perspectiva sustenta que o clube foi usado a favor de um dos lados da guerra civil. A porção da Biafra representava a maior parte das jazidas petrolíferas da Nigéria, se constituindo como estratégica para o governo militar e cobiçada por multinacionais, além de ter sido um refúgio para uma porção de nigerianos que fugiam dos massacres.

O conflito nigeriano envolveu diversos interesses e atores, inclusive participações indiretas das ex-potências colonizadoras. Com o passar do tempo, diversos protestos aconteceram pelo fim da guerra, pelas vozes de personalidades, tal como John Lennon, e pensadores, como Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, além de estudantes e da população em geral. O cerco imposto pelos militares nigerianos à região separatista levou fome e desnutrição, sem considerar as mortes advindas pelos conflitos armados propriamente ditos, gerando repulsa às consequências de um conflito atrelado a interesses econômicos poderosos.

Foi nessa Nigéria inserida em uma crise humanitária de proporções trágicas e envolta, inclusive,  em acusações graves de genocídio contra uma etnia – o povo Igbo —, que o Santos desembarcou. Como já tratado na Coluna “Futebol e as Relações Internacionais: há conexão?”, é muito difícil dissociar os eventos esportivos do contexto político em que estavam inseridos — nesse caso, político, militar e também moral. Portanto, ainda que haja um esforço por parte dos Santos de demonstrar que as exibições foram em prol de uma neutralidade inquestionável que interromperam a guerra, é preciso questionar, mesmo com incômodo, sobre a veracidade dessas afirmações.

As evidências apontam que a partida, marcada de última hora para um estádio que recentemente havia sido bombardeado pelas partes em guerra, possuiu enormes gastos em um momento completamente inapropriado, se considerada as dimensões do conflito e da fome instaurada por este. Os trinta mil dólares para a exibição foram patrocinados pela Nigeria Football Association (NFA), o que corrobora para o argumento de que a partida serviu como uma propaganda que tentava diminuir os já citados sentimentos de repulsa e indignação. Além disso, nessa perspectiva interpretativa, há uma clara intenção do governo militar nigeriano de transmitir uma imagem positiva, na qual a situação estava controlada e que mantinha a população fora das zonas de combate, inclusive a possibilitando assistir uma partida de futebol internacional. Nessa mensagem das autoridades federais para o mundo, a vitória contra Biafra era uma questão de tempo e contrapunha as manifestações que irrompiam pelo mundo.

Ademais, a perspectiva que trata o jogo que “paralisou a guerra” como inverossímil entende que o “cessar-fogo” nunca existiu, pois não era necessário. Nesse sentido, o Santos chegou a uma Nigéria que sim, enfrentava uma guerra civil, mas um conflito que já estava em seus últimos acontecimentos. A região da Biafra estava cercada e as autoridades federais controlavam uma situação que havia se arrastado e tornado extremamente penosa para os separatistas. Até a escolha do local, a Cidade de Benin, foi possivelmente estratégica, se utilizando da imagem do jogador conhecido como Rei, para demonstrar controle definitivo sobre uma região que uma vez se encontrou em pólvora.

Por isso, ao contrário de paralisar o conflito pelo ideal da paz, como postulado por uma narrativa messiânica e pacificadora em torno da imagem de Pelé e do time do Santos, a partida na Nigéria pode ter contribuído significativamente como propaganda de guerra do governo militar nigeriano contra o território separatista.

Militares nigerianos durante a Guerra Civil. (Foto: Reprodução/Prolifecoachpa).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sendo assim, percebe-se que existem versões que se anulam e são opostas quanto à paralisação de uma guerra pelo time do Santos. No entanto, independente de qual versão você achar mais convincente, nota-se em ambas a confluência do esporte com o contexto político e das Relações Internacionais. Essa intersecção se torna clara tanto na capacidade do futebol de parar um conflito civil quanto no uso de uma partida como propaganda de guerra. No fim, uma das lições que podem ser tiradas da lenda histórica do Santos Futebol Clube e de suas interpretações é como podemos fomentar nosso senso crítico e ampliar nossa visão de mundo para entender a relação de vários acontecimentos cotidianos com questões bem maiores do que aparentam.

REFERÊNCIAS

DOS SANTOS, Rael Fiszon Eugenio. As excursões de times de futebol do Brasil para a África entre as décadas de 1960 e 1970: Uma primeira abordagem. 30º Simpósio Nacional de História, Recife, 2019. Disponível em: https://www.snh2019.anpuh.org/resources/anais/8/1565317028_ARQUIVO_RaeldosSantosANPUH19.pdf. Acesso em: 1 maio 2022.

FLORENZANO, José Paulo. A guerra do Santos: 50 anos de uma viagem histórica – A guerra civil (parte III). Ludopédio, São Paulo, v. 115, n. 19, 2019. Disponível em: https://ludopedio.org.br/arquibancada/a-guerra-do-santos-50-anos-de-uma-viagem-historica-a-guerra-civil-parte-iii/. Acesso em: 29 abr. 2022.

PIERIN, Gabriel. O dia em que a guerra parou. In: CENTRO DE MEMÓRIA DO SANTOS FC. Santos Futebol Clube. [S. l.], 4 fev. 2021. Disponível em: https://www.santosfc.com.br/o-dia-em-que-a-guerra-parou/. Acesso em: 29 abr. 2022.

VALENTE, Rafael. Há 50 anos, Santos de Pelé parou guerra na África; mas pode não ter sido bem assim. ESPN, [s. l.], 29 abr. 2020. Disponível em: https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/5231263/ha-50-anos-santos-de-pele-parou-guerra-na-africa-mas-pode-nao-ter-sido-bem-assim. Acesso em: 30 abr. 2022.

Mateus Rodrigues Ramos

Natural de Catalão (GO) e graduando em Relações Internacionais pela UFG. Sou interessado por Conflitos Internacionais, temas históricos, diversidade cultural e estudo de idiomas. Apaixonado por futebol, games e cultura pop em geral, estou sempre disposto a questionar e aprender.

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