O IMPÉRIO JAPONÊS E AS “MULHERES DE CONFORTO”

O IMPÉRIO JAPONÊS E AS “MULHERES DE CONFORTO”

Estátua que representa as vítimas sexuais do Exército Imperial Japonês na frente da Embaixada do Japão, em Seoul, na Coreia do Sul (Foto: News1/Reuters).

“Mulheres de conforto” foi a denominação dada às mulheres de diversos países asiáticos sob o jugo colonial japonês durante a Segunda Guerra Mundial, obrigadas a se prostituírem em bordéis a fim de propiciar mais conforto e descontração aos combatentes do Exército Imperial Japonês. Esse tópico, que foi largamente ignorado por décadas, deixou severas heranças sociais às vítimas, além de questões diplomáticas, especialmente entre o Japão e a Coreia do Sul. Dessa forma, como devemos julgar casos de violência sexual como crimes de guerra, e principalmente, como devemos lidar e dar um suporte efetivo às suas vítimas?

Quem foram as mulheres de conforto?

“Mulheres de conforto” foi o termo designado para descrever mulheres de países asiáticos como Filipinas, Tailândia, Taiwan, Indonésia, China e, principalmente, a Coreia, que foram obrigadas a se prostituírem em bordéis japoneses no contexto da II Guerra Mundial, mais especificamente na Guerra Pacífico-Asiática, em um esquema organizado e deliberado pelo Governo Japonês. George Hicks descreve no capítulo Mars and Venus, dentro do seu livro The Comfort Women (1997), um pouco sobre a relação entre a mulher, simbolizada pela deusa romana do amor Vênus, e a guerra, simbolizada pelo deus romano Marte, personificação da guerra sangrenta.

Dessa forma, a exploração de mulheres em tempos de guerra não foi uma exclusividade do Japão, sendo ao longo da história recorrentemente justificada como um modo de propiciar lazer e recompensa aos soldados, enquanto violentavam corpos femininos, deixando sequelas inapagáveis. Contudo, pensando especificamente nesse recorte proposto, temos, predominantemente, três bases de dominação: hierarquia de gênero, de classe social, bem como o poder colonial, aliado ainda ao nacionalismo (MIN, 2003). A violência empregada nessa subjugação se relaciona diretamente com o movimento de colonização por parte do Império Japonês; havia, por parte dos combatentes japoneses, uma ideia de superioridade e merecimento, especialmente para com as sul-coreanas. 

Ademais, deve-se levar em conta também um cenário estritamente classista e patriarcal, que define a figura feminina como inerentemente obediente e submissa. As mulheres raptadas costumavam pertencer a classes menos abastadas, muitas vezes residentes da área rural, às quais o Império prometia empregos e uma melhor condição de vida como cortina para o que viria a ser escravidão sexual, prática ainda utilizada no aliciamento de mulheres. Entender as dimensões desse crime de guerra é um tremendo desafio, ainda mais considerando que o Japão somente admitiu seu reconhecimento em 1993. Contudo, ativistas sul-coreanas estimam que a prática pode ter contabilizado cerca de 200.000 vítimas somente na Coreia do Sul, sem contar com os demais países (MIN, 2003). 

Contexto histórico

Muitos autores consideram que na II Guerra Mundial houveram duas guerras distintas: uma no Atlântico e outra no Pacífico, com protagonismo japonês (IRIYE, 2014). Porém, as tensões da região já existiam anteriormente ao início da Segunda Guerra, embora na literatura existam certas divergências sobre sua data de início. No entanto, foi na década de 30 que uma significativa expansão do movimento imperialista japonês se fez evidente (HOWARD, 1995), e é durante a Guerra Pacífico-Asiática, que esse sistema de mulheres de conforto é institucionalizado, tendo os ditos “postos de conforto” distribuídos pelo Japão, Chi Guiné, Hong Kong, Macau, e no que então era a Indochina Francesa.

Mapa com os registros das "estações de conforto" japonesas espalhadas pela Ásia no contexto histórico que responde de 1932 a 1945, ilustrando o sistema abordado (Fonte: Women's Active Museum of War and Peace)
Mapa mostrando as “estações de conforto” japonesas espalhadas pela Ásia no contexto histórico que responde de 1932 a 1945 (Fonte: Women’s Active Museum of War and Peace)

Após a rendição do Eixo em 1945, diferente da Alemanha, o Japão Imperial não chegou a ser julgado pelos seus crimes de guerra. Milhares de mulheres e meninas foram abandonadas em campos de batalha, por serem evidências, e o Governo Japonês destruiu grande parte dos documentos que sistematizavam a escravidão sexual militar. Assim, esses eventos foram largamente ignorados até 1991, quando três vítimas denunciaram o Governo Japonês ao Tribunal Distrital de Tóquio, levando o país a reconhecer sua responsabilidade moral em 1993. Em 1995 foi criada a Asian Women’s Fund, com o objetivo de angariar um fundo de apoio às vítimas, enquanto o governo continuou negando toda e qualquer responsabilidade legal, encarando o fundo supramencionado como uma espécie de caridade (SAKAMOTO, 2001).

Heranças sociais e diplomáticas

As mulheres que conseguiram retornar às suas casas novamente foram vítimas do estigma social contra vítimas de violência sexual, sem assistência econômica e com imensa dificuldade no mercado de trabalho. Além disso, os impactos nas suas saúdes físicas, emocionais e psicológicas foram imensuráveis. Esse ano o movimento completa 31 anos promulgando indignação por essa dupla coerção: as mulheres não eram apenas violadas pelos soldados, mas também pelo Estado, que normalizou a prática como uma prática comum e institucionalizada, elencando quem possuía o direito de ter escolhas dentro do Império.

Em 2015, o Japão e a Coreia concordaram em buscar uma resolução definitiva. Assim, Tóquio emitiu um pedido de desculpas e realizou a promessa de uma nova contribuição ao fundo de amparo às vítimas, de aproximadamente US $8,84 milhões. Contudo, em 2021 o Tribunal Distrital Central de Seul, na Coreia do Sul, voltou a exigir indenizações, sendo o primeiro tribunal nacional a efetivamente responsabilizar o Japão por tais crimes de guerra, ameaçando ainda reacender uma rivalidade diplomática entre os dois países (SHIN, 2021).

Observa-se nesse movimento que as ativistas, bem como as autoridades sul-coreanas, têm uma troca de postura: não mais se buscam desculpas e compensação, e sim justiça efetiva, com um foco em enfatizar a responsabilidade japonesa pelas atrocidades cometidas durante a guerra. Para além, mais do que responsabilização, se trata de um processo de estabelecer uma nova memória política atrelada à resistência e emancipação, que conta para as gerações pós-guerra que o passado é completamente atrelado ao presente. Assim, de certa forma, essa busca por punição e reparação constante desafia uma “amnésia coletiva” que coloca os japoneses somente como vítimas da guerra, imagem construída por conta dos ataques das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki (SAKAMOTO, 2001).

Considerações finais

Embora o caso das “mulheres de conforto” tenham sido largamente ignorado por décadas, trazer à luz essa questão é essencial para que haja uma crítica atrelando gênero a crimes de guerra, para que a analogia realizada por George Hicks, utilizando os deuses Vênus e Marte, deixe de ser normalizada. Ademais, essa mudança na postura, não mais se satisfazendo com meras compensações ao fundo de amparo às vítimas – mesmo que, sim, seja um passo importante ainda mais considerando o abandono estatal do qual as mulheres mais uma vez foram vítimas. Essa luta por justiça e a clarificação de uma memória política é importante tanto para que relações diplomáticas possam ser estabelecidas de forma mais coerente, mas também para que os erros do passado não se repitam.

Referências

HICKS, George. The comfort women: Japan’s brutal regime of enforced prostitution in the Second World War. WW Norton & Company, 1997.

HOWARD, Keith. True stories of the Korean comfort women. 1995.

IRIYE, Akira. The origins of the Second World War in Asia and the Pacific. Routledge, 2014.

MIN, Pyong Gap. Korean “Comfort Women” the intersection of colonial power, gender, and class. Gender & Society, v. 17, n. 6, p. 938-957, 2003.

SAKAMOTO, Rumi. The Women’s International War Crimes Tribunal on Japan’s military sexual slavery: A legal and feminist approach to the” Comfort Women” issue. New Zealand Journal of Asian Studies, v. 3, n. 1, p. 49-58, 2001.

SHIN, Hyonhee. Em decisão inédita, tribunal sul-coreano determina que Japão indenize ‘mulheres de conforto’, abusadas no período colonial. O Globo. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/mundo/em-decisao-inedita-tribunal-sul-coreano-determina-que-japao-indenize-mulheres-de-conforto-abusadas-no-periodo-colonial-24830183.html. Acesso em: 20 jan. 2023.

Ana Laura Baia de Morais

Mineira, graduanda em Relações Internacionais pela UFG e mãe de gato. Estudo sobre feminismo, tráfico humano e decolonialidade. Artista nas horas vagas, amante de criar playlists novas e um bom rolê de queijos e vinhos.

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