MULHERES COLOMBIANAS E A HISTÓRICA RETROALIMENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA

MULHERES COLOMBIANAS E A HISTÓRICA RETROALIMENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA

Mulheres guerrilheiras das Forças Armadas Revolucionária da Colômbia (Reprodução: Diário Liberdade).

Desde o período da colonização, a Colômbia tem sido constituída a partir, especificamente, de dinâmicas de violência, tendo inclusive um momento em sua história que ficou conhecido como La Violencia. Dessa forma, essa Colômbia altamente militarizada e masculinista, onde a violência de forma alguma é um monopólio estatal, constituiu um cenário de 619 feminicídios em 2022, de acordo com o Observatório Colombiano de Feminicídios. Tal alarmante número, dentro dessa estrutura social que se retroalimenta, é um dos motivos de ativistas exigirem que seja declarado Estado de Emergência Nacional e que o Estado efetivamente se responsabilize pela crescente violência de gênero.

Constituição da Colômbia a partir da violência

Assim como os demais países da América Latina, a Colômbia também passou, no século XVI, pela colonização europeia – mais especificamente no caso colombiano, colonização espanhola – e toda a subjugação dos povos autóctones que acompanha esse processo. Porém, já nesse momento, havia regiões onde o Estado não conseguia de fato exercer o monopólio do uso legítimo da força, regiões que se tornaram altamente marginalizadas (ALVES, 2005). 

Nesse paradigma, em 1819 a Grande Colômbia conquista sua independência por meio de um conflito armado, contudo, com certa obviedade, o país segue sob o jugo da dominação das elites, divididas entre conservadores e liberais. Essa própria disputa ideológica acerca da construção da Colômbia culminou em oito guerras civis até o final do século XIX (MINILLO et al., 2017). Isso simboliza o que Alves (2005) aponta como um ambiente favorável às guerras, recebendo os primeiros anos do século XX com um sentimento de luto pelos mortos e um ódio profundo entre liberais e conservadores.

La Violencia

Em uma tentativa de conter as mobilizações agrário-camponesas, o então Presidente Alfonso López Pumarejo promoveu a “Revolução em Marcha”. Envolvendo reformas políticas, econômicas e sociais, acabou por intensificar a violência no campo, culminando no período que foi denominado La Violencia, auge da disputa entre os liberais e conservadores (MINILLO et al., 2017). Esse episódio, que aconteceu entre 1948 e 1964, deixou aproximadamente 300.000 vítimas e foi particularmente cruel com mulheres, como apontam Meertens e Segura-Escobar:

“Mulheres, em especial aquelas que estavam grávidas, eram cruelmente mutiladas, seus fetos extirpados antes da exterminação. Simbolismo mostra-se profundo nessas práticas: mulheres, vistas exclusivamente como mães, eram alvos principais pois representavam a real ou potencial procriação desses “outros” profundamente odiados (MEERTENS, 1992; 1995). Daí em diante, uma nova geração de hijos de la Violencia, abarcando aqueles que sofreram com as dramáticas mortes de suas famílias durante a infância, expressou a necessidade de vingança e até fizeram da violência um estilo de vida” (1996, p. 166, tradução nossa).

Assim, o Estado é constituído tendo a violência e a coerção como componentes fixos no processo de desenvolvimento político (PÉCAUT, 2001), chamando atenção ainda, no caso da Colômbia contemporânea, a multiplicidade de atores da violência, os quais estão sempre presentes nas esferas públicas e privadas. Configura-se, então, uma cultura de violência (WALDMANN, 2007) que situa as mulheres em um estado de violência continuada (originalmente continuum of violence). Esse estado, como aponta Cynthia Cockburn (2004), explicita como mulheres em toda sociedade militarizada, zona de guerra e campo de refugiados, sofrem de uma violência que resiste a toda e qualquer divisão entre domínios públicos e privados.

Bogotá em chamas, 1948
Trem em chamas em Bogotá, assolada pela Guerra Civil em 1948, início do período da La Violencia (Reprodução: Manuel H. Archivo El Tiempo, via Señal Colombia).

Assim, Cockburn (2004), aponta como a violência está  presente antes, durante, depois e, inclusive, na ausência da guerra. Um ótimo exemplo dessa dinâmica é pensar na participação e relação das mulheres colombianas com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC).

Relação entre FARC e as mulheres

Em 2021 cerca de 39,3% da população colombiana se encontrava em situação de pobreza monetária (ESTADO DE MINAS, 2022). Assim, em um cenário de aguda violência e poucas oportunidades, de acordo com Minillo et al. (2017) “as FARC se apresentaram como uma chance de “escape” de uma realidade de dependência e pobreza principalmente para as meninas e mulheres que viviam no meio rural sem prospecções futuras”. As autoras supramencionadas ainda apontam que a própria violência que assola a Colômbia impulsionou a participação de mulheres nas FARC, encarando como um ambiente mais igualitário.

Contudo, pensar nessa participação feminina nas FARC é interessante a partir de outro ponto de análise: Jean Bethke Elshtain caracteriza em seu livro “Women and War“, de 1995, a divisão de papéis de gênero nos conflitos, sendo as mulheres definidas como “belas almas”, mães da nação, e os homens como “guerreiros justos”, grandes salvadores. Contudo, mulheres podem desempenhar papéis ativos (WALSH, 2015 apud MINILLO et al., 2017), não somente como vítimas dessa cultura de violência, mas corroborando sua manutenção. Ademais, pode ser compreendido também a nuance de uma busca por igualdade de gênero por meio da guerrilha armada.

Ou seja, embora a participação de mulheres na FARC questione papéis de gênero e garanta, de certa forma, a segurança das mulheres, também abre espaço para algumas conclusões. Primeiro, retroalimenta a ideia de que é se armando que se alcança a paz. Guerrilheiras contam que nenhum guerrilheiro ousava violentá-las pois elas estavam armadas, e assim, poderiam oferecer violência em retribuição à violência que sofresse. E em segundo lugar, atribui autonomia ao corpo do “guerreiro justo”: a mulher é, então, respeitada enquanto indivíduo quando não mais é enxergada como “bela alma”, e sim como um corpo masculinizado (MINILLO et al., 2017). 

Como resultado da soma desses dois fatores temos uma crescente militarização da violência de gênero, em um molde que não questiona os modelos de masculinidade constituintes da cultura da violência na Colômbia.

A militarização da violência de gênero

A partir da lógica de militarização, se fortalece a ideia de que a violência, nesse caso, de gênero, só pode ser resolvida a partir de mais violência, sem de fato causar mudanças nessa estrutura já tão dependente dessa retroalimentação. Consequentemente, os limites se tornam mais difusos: o público e o privado, a guerra e a paz, o civil e o militar… Todos se mesclam reforçando a ideia de Cockburn sobre algo contínuo e ininterrupto.

O que deveria estar em primeiro plano não é a disputa pelo compartilhamento do monopólio masculino do uso e da posse da violência, mas sim como essa figura militarizada, masculinizada e violenta personifica o exercício de poder (MOURA, 2009). Isto é, como essa ideia de personificação, dentro de um Estado com instituições fracas e um nível de confiança mínimo, faz com que as mulheres sintam que têm o risco de serem vítimas de violência desde o nascimento, como se carregassem uma sombra que eventualmente irá cobrí-las, embora ainda não se saiba exatamente como (KREFT, 2020). Assemelhar-se, então, ao sujeito opressor – o homem – passa a ser visto como a única alternativa para escapar desse ciclo de violência.

Ativistas e o Estado de Emergência Nacional

O movimento feminista na Colômbia  tem tomado força nos últimos anos, atuando de forma mais ativa, por exemplo, com os protestos em 2016 entitulados como #YoSouYuliana, após o assassinato Yuliana Samboní, de 7 anos, Rafael Uribe Noriega, parte da oligarquia política colombiana (RYAN, 2016). Outro exemplo é o fato das ativistas terem declarado luto nacional no início de 2021 pelos feminicídios (CONFLUÊNCIA DE MULHERES PARA AÇÃO PÚBLICA​​, 2021). Assim, o movimento vem se organizando e cobrando a responsabilização estatal, que falha em garantir segurança para mulheres e meninas desde a fundação da Grande Colômbia.

Nessa exigência de responsabilização, uma movimentação recente se faz muito interessante: a exigência de que o Presidente do país, Gustavo Petro, declare Estado de Emergência Nacional por conta da violência de gênero. Essa ação vem acompanhada de uma súplica para que sejam aplicadas estratégias contundentes para frear o crescimento de feminicídios e mitigar os diferentes tipos de violência. Ademais, clamam por um órgão que possibilite prevenção, atendimento, investigação e judicialização das violências contra as mulheres (DÍAZ, 2023).

Levando todos esses pontos em conta, a luta pela igualdade de gênero e o combate à violência de gênero deve estar intimamente entrelaçada a fim de quebrar esse ciclo de retroalimentação histórico. A sociedade colombiana com certeza não é a mesma desde a colonização, ou da luta pela independência, e muito menos do período de La Violencia, mas a cultura da violência contínua permanece. Ousar sonhar com mudanças estruturais dentro de uma estrutura imutável nada mais é do que uma dança onde os violadores se alternam, mas as principais vítimas continuam sendo mulheres.

Recomendações

Para finalizar, convido vocês ainda a dar uma olhadinha em duas iniciativas colombianas que combatem, fiscalizam e documentam a incidência de feminicídio no país:

Caso tenha interesse em continuar lendo sobre a situação colombiana, recomendo dar uma olhada no texto abaixo:

Referências

ALVES, Marcos Celso. Um Mandato para a Paz: O Caso da Negociação entre o Governo de Andrés Pastrana e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (1998-2002). 2005. Tese de Doutorado. Dissertação de mestrado em Relações Internacionais, Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro.

COCKBURN, Cynthia. The continuum of violence. Sites of violence: Gender and conflict zones, p. 24-44, 2004.

CONFLUÊNCIA DE MULHERES PARA AÇÃO PÚBLICA​​. Assassinatos políticos, feminicídios e espoliação: um panorama da situação na Colômbia. Capire. 2021. Disponível em: https://capiremov.org/analises/um-panorama-da-situacao-na-colombia/. Acesso em: 30 jun. 2023.

DÍAZ, Daniela. El movimiento social de mujeres pide a Petro declarar la emergencia nacional por la violencia machista. El País. 2023. Disponível em: https://elpais.com/america-colombia/2023-02-22/el-movimiento-social-de-mujeres-pide-a-petro-declarar-la-emergencia-nacional-por-la-violencia-machista.html. Acesso em: 12 jun. 2023.

ELSHTAIN, Jean Bethke. Women and war. University of Chicago Press, 1995.

ESTADO DE MINAS. Pobreza na Colômbia cai para 39,3% em um ano. 2022. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2022/04/26/interna_internacional,1362528/pobreza-na-colombia-cai-para-39-3-em-um-ano.shtml. Acesso em: 11 jul. 2023.

KREFT, Anne-Kathrin. Civil society perspectives on sexual violence in conflict: Patriarchy and war strategy in Colombia. International Affairs, v. 96, n. 2, p. 457-478, 2020.

MEERTENS, Donny; SEGURA‐ESCOBAR, Nora. Uprooted lives: Gender, violence and displacement in Colombia. Singapore Journal of Tropical Geography, v. 17, n. 2, p. 165-178, 1996.

MINILLO, Xaman et al. Mulheres guerreiras: questões de gênero na participação feminina nas FARC e sua influência nas negociações de paz na Colômbia. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD, v. 6, n. 11, p. 305-339, 2017.

MOURA, Tatiana. Masculinidades e feminilidades entre as (micro) guerras e as (macro) pazes: um estudo de caso sobre o Rio de Janeiro. Eurozine, v. 6, n. 06, p. 2009, 2007.OBSERVATÓRIO COLOMBIANO DE FEMINCÍDIOS. Reporte Dinámico Feminicidios Colombia. 2023. Disponível em: https://observatoriofeminicidioscolombia.org/index.php/reportes. Acesso em: 10 jul. 2023.

PÉCAUT, Daniel. Guerra contra la sociedad. Espasa, 2001.

RYAN, Micaela. #YoSoyYuliana: O feminicídio que comoveu a Colômbia. Brasil de Fato. 2016. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2016/12/09/yosoyyuliana-o-feminicidio-que-comoveu-a-colombia. Acesso em: 30 jun. 2023.

WALDMANN, Peter. Is there a Culture of Violence in Colombia?. Terrorism and Political Violence, v. 19, n. 4, p. 593-609, 2007.

WELSH, Alexandra Mary. Women of the Jungle: Guerrilleras on the front lines of the  FARC-EP. Glendon  Journal  Of  International  Studies, v.  8,  n.  1-2,  p.1-14, 2015

Ana Laura Baia de Morais

Mineira, graduanda em Relações Internacionais pela UFG e mãe de gato. Estudo sobre feminismo, tráfico humano e decolonialidade. Artista nas horas vagas, amante de criar playlists novas e um bom rolê de queijos e vinhos.

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