O QUE AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS TÊM A APRENDER COM O HIDROFEMINISMO?

O QUE AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS TÊM A APRENDER COM O HIDROFEMINISMO?

“Il Giardino” (2019) Marguerita Paoletti (Fonte: Arte Laguna World).

Diversas crenças e culturas traçam ligações entre o feminino e as águas. O hidrofeminismo bebe dessa fonte de conexões entre o feminino e o corpo aquático, incentivando pensarmos em uma teoria que, ao fazer essa intersecção entre gênero e meio ambiente, centraliza o papel das águas. Contudo, nas Relações Internacionais as águas sempre se configuraram como um meio de disputa e expansão, como um recurso sob posse do Estado, para ser utilizado em prol da manutenção de um sistema patriarcal capitalista e neocolonialista. O hidrofeminismo pode, então, nos oferecer uma nova forma de encarar essa relação entre Estados e corpos aquáticos.

O que é o hidrofeminismo?

O hidrofeminismo pode ser compreendido como uma ramificação do ecofeminismo, cunhado por Astrida Neimanis (2012), a partir de uma ideia pós-humanista, explorando a relação entre corpos femininos e corpos aquáticos. Embora possa soar um tanto abstrato, ou mesmo utópico, a teoria trabalha em cima de uma intersecção entre gênero e meio ambiente, especialmente a partir de uma “racionalidade aquosa”, ou seja, tendo as águas como ponto de partida. Como Denning (2022) apresenta, o hidrofeminismo aglomera uma série de trajetórias políticas, teóricas e criativas, no movimento de traçar uma conexão profunda e respeitosa entre humanos e não-humanos, por meio de toda e qualquer aglomeração de água que ocupa um espaço geográfico, ou seja, por meio de corpos aquáticos (Maggipinto et al., 2023).

Ainda parece papo de doido, não é mesmo? Para entender um pouco mais é importante pensar que, a água está no centro da vida humana, sendo fundamental para manutenção da vida. Em linhas gerais, Neimanis tem buscado analisar, como sintetiza Denning (2022), como os sujeitos se relacionam com as águas a partir de uma lente de gênero, levando em conta as particularidades culturais, éticas, políticas e práticas daquela vivência. Portanto, Neimanis defende: 

a ideia de que a água deve ser pensada também como um arquivo planetário – que possui os fantasmas dos seres que já foram e as sementes dos seres que serão. Afinal, a vida sai da água e continua por meio da ingestão de água, além de se relacionar com flora, fauna e com dispositivos técnicos (água move turbinas de hidrelétricas e moinhos, por exemplo).

Neimanis, 2017 apud Cardoso Filho; Matos, 2023, p. 5.

Epeli Hau’ofa, antropólogo fijiano, nessa mesma linha de raciocínio da centralidade das águas, aponta que: “o mar é o nosso caminho para nós mesmos e para todas as outras pessoas, o mar é uma saga infinita, o mar é a nossa mais poderosa metáfora, o oceano está em nós” (2022, p. 409, tradução nossa). Assim, pensar em um hidrofeminismo é pensar em uma perspectiva que tira o ser humano do centro e coloca a natureza nesse espaço, em especial as águas, propondo o corpo da mulher como um exemplo de fluidez e sensibilidade por meio do qual experienciamos o mundo (Maggipinto et al., 2023). 

Dessa forma, o hidrofeminismo considera que para alcançarmos justiça social é essencial pensarmos também em linhas de uma justiça ambiental. Diversas áreas do conhecimento têm feito uso da teoria hidrofeminista, como o design – por exemplo por meio da iniciativa Bauhaus of the Seas (Maggipinto et al., 2023), a literatura, com distopias que chamam a atenção para a centralidade da água, e mesmo a indústria de jogos, como é o caso do jogo Abzû, em uma aventura completamente submarina. Contudo, nas relações internacionais o conceito ainda não fez grandes aparições, e antes de construirmos uma base sólida para entender como o hidrofeminismo pode impactar na forma que entendemos as RI, é importante entender como as águas e esses corpos aquáticos já são entendidos hoje.

O projeto Bauhaus of the Seas busca moldar a nova geração de designers, arquitetos, engenheiros, artistas e cientistas em torno da ideia de um design sustentável e de um novo paradigma ecológico, a começar pelo mar (Fonte: Bauhaus of the Seas).
O projeto Bauaus of the Seas busca moldar a nova geração de designers, arquitetos, engenheiros, artistas e cientistas em torno da ideia de um design sustentável e de um novo paradigma ecológico, a começar pelo mar (Fonte: Bauhaus of the Seas).

Como entendemos as águas nas Relações Internacionais?

Desde o início das relações internacionais ocidentais, as águas se configuraram como um espaço de disputa e expansão. Não é preciso ir muito longe ou pensar especificamente em batalhas navais para apresentar exemplos de ocupação marítima: Guerra do Peloponeso (séc V a.C.),  Batalha de Trafalgar (1805), no auge das Guerras Napoleônicas, Batalha de Midway (1942) e a Batalha do Atlântico (1943), ambas durante a II Guerra Mundial (Overy, 2015).

Porta-aviões USS Yorktown (CV-5) é atingido pela segunda vez por torpedos japoneses, na Batalha de Midway, em 04 de junho de 1942. O Yortown foi afundado três dias depois (Fonte: United States Navy/Wikicommons).
Porta-aviões USS Yorktown (CV-5) é atingido pela segunda vez por torpedos japoneses, na Batalha de Midway, em 04 de junho de 1942. O Yortown foi afundado três dias depois (Fonte: United States Navy/Wikicommons).

Inclusive, as águas desempenham um papel importante, especialmente na história da Inglaterra, que se torna uma grande potência a partir do monopólio do comércio marítimo e no desenvolvimento de uma marinha excepcional, chegando a ser conhecida como Rainha dos Mares. Assim, ao longo dos séculos, os oceanos se tornaram centrais no desenvolvimento de atividades econômicas e logo passaram a ser uma ferramenta essencial no processo de colonização dos povos das Américas, da África e do Oriente (Cardoso Filho e Matos, 2023).

Dessa forma, a partir das Grandes Navegações, os oceanos se tornam um canal para tráfico de escravos, acompanhando de um forte extrativismo colonial, em uma lógica não somente antropocêntrica, mas que pega toda a ganância do antropocentrismo e se transforma em um estadocêntrica, colocando o Estado como algo superior aos oceanos em uma hierarquia. Então, os Estados detêm posse dessas águas e podem usá-las para explorar suas colônias e realizar genocídios – como é bem sabido acerca do nosso passado colonial –, criando uma relação com os oceanos que se ampara no colonialismo, tratando-os como mero recursos, em cima de uma mentalidade forjada pelo Ocidente, a partir de parâmetros capitalistas e também patriarcais (Bossi, 2020). 

Contudo, essa relação exploratória em prol do capital não se limita aos oceanos e não é preciso fazer grandes esforços para trazer à luz exemplos dessa afirmação: em 2019 ocorreu o rompimento da barragem de Brumadinho (MG), propriedade da mineradora Vale S.A, causando mortes e impactando de forma violentíssima a vida das comunidades da bacia do rio Paraopeba. Aos sobreviventes, para além de danos materiais e psicológicos, a tragédia, ao colocar o lucro acima da vida, contaminou as águas, o solo e o ar da região. Assim, a contaminação do rio Paraopeba afetou as comunidades tradicionais e comprometeu o sistema de abastecimento de água da região metropolitana da capital mineira, Belo Horizonte. Muitas famílias perderam o acesso à água potável  e não puderam usar a água do rio para irrigar suas hortas (Oliveira, 2023).

Marina Paula Oliveira, em seu livro “O Preço de um Crime Socioambiental” ainda menciona que “os peixes e animais que tiveram contato com o rio morreram e o povo Pataxó enterrou peixe por peixe” (2023, p. 38). Em suma, essas políticas extrativistas neoliberais mudam drasticamente os regimes hídricos e tendem a alterar irreversivelmente os meios de subsistência das comunidades locais, que tendem a ser mais afetadas (Mercier, 2022), apesar de serem as únicas a desenvolverem uma relação respeitosa com esses corpos aquáticos. Portanto, é a partir dessa perspectiva extrativista, neocolonialista e predatória que as Relações Internacionais se relacionam com os corpos aquáticos.

Como podemos pensar o oceano e os corpos aquáticos?

Pensar os oceanos e os corpos aquáticos de outra forma se faz essencial uma vez que ignorar pautas como as mudanças climáticas se torna cada vez mais difícil. Os oceanos são centrais para pensarmos em mudança climática, a curto e a longo-prazo. Os oceanos contêm metade do oxigênio que respiramos e grande parte da proteína que consumimos (Bossi, 2020). Com o aquecimento global ocorre a expansão térmica e o derretimento de geleiras e calotas polares, que impactam diretamente no aumento do nível dos oceanos (Redda+, 2022).

Observações por satélites da NASA apontam que a elevação do nível do mar bateu recorde em 2023, prevendo ainda que outros 20 cm serão acrescentados ao nível médio global do mar até 2050 (Fonte: José Eustáquio Diniz Alves via Ecodebate).
Observações por satélites da NASA apontam que a elevação do nível do mar bateu recorde em 2023, prevendo ainda que outros 20 cm serão acrescentados ao nível médio global do mar até 2050 (Fonte: José Eustáquio Diniz Alves via Ecodebate).

Como consequência desse aumento é possível mencionar inundações costeiras, marés ciclônicas, aumento de furacões, além da própria expectativa de que algumas cidades litorâneas irão desaparecer e ficarem completamente submersas (Redda+, 2022). Um exemplo dessas cidades litorâneas que podem ser afetadas se trata de Salvador, capital do Estado da Bahia, onde pontos como a Praia do porto da Barra e o Mercado Modelo poderão ficar submersos dentro de 100 anos (Aloisio; Silva, 2024).

Portanto, a proposta é pensarmos em uma RI hidrocentrada, ciente de que para a preservação da vida humana será preciso olhar para isso. Dessa forma, abandonar narrativas dominantes e ocidentais que relegam os oceanos como meros recursos a serem utilizados e manipulados, e, em contraponto, direcionar o olhar para populações indígenas do mundo inteiro, aprendendo a enxergar os corpos aquáticos como um recurso da vida, a ser honrado e protegido (Bossi, 2020). Superar a lógica antropocêntrica, que em sua ganância acaba colocando o lucro como prioridade – o que talvez nos possibilite pensar que nem é tão antropocêntrico assim, mas isso é papo para outro momento.

Considerações finais

A proposta é, então, por meio de uma abordagem hidrofeminista, não somente pararmos de pensar em termos coloniais, mas enfrentarmos o trauma ambiental que vem se consagrando ao longo da história (Cardoso Filho e Matos, 2023). Por obviedade, é demasiadamente utópico propor que daqui pra frente não haverá extrativismo e que as relações com os corpos aquáticos então será transformada. Mas talvez seja um pouco menos utópico pensar em uma caminhada de conscientização, onde se evidencia que a saúde dos oceanos é a saúde da espécie humana. Parafraseando Hau’ofa novamente: talvez o oceano esteja em nós.

Essa forma de ver as águas, em especial os oceanos, não é exclusiva do hidrofeminismo, mas é possível a partir dele, questionar as ideias de materialidade que temos concebidas ao entender nossos corpos. A partir dessa base teórica, é possível construir e consumir ideias que, como coloca Bossi:

se opõem às formas com que a natureza e as mulheres são oprimidas pela sociedade patriarcal, mas também apresenta uma maneira de ver o mundo que respeita conexões holísticas anciãs que sustentam o crescimento e a construção do futuro por meio de processos orgânicos, da colaboração, da intuição e da narrativa poética.

2020, p. 32, tradução nossa.

A escritora Paula Chiziane (2020) aponta que “o mar é um espaço múltiplo (do sagrado, de riqueza e de dor) que permite um conjunto amplo de elaborações e usos expressivos, a depender do que se pretende enfatizar” (apud Cardoso Filho e Matos, 2023, p. 10). Assim, podemos escolher o que iremos enfatizar, ao construir uma teoria hidrofeminista dentro das RI que considera, como sugerem Cardoso Filho e Matos (2023) gênero, identidade, ancestralidades, migrações populacionais, ecossistemas e padrões de desenvolvimento econômico, político e social.

Recomendações

Caso queira conhecer um pouco mais sobre o Hidrofeminismo recomendo pesquisar um pouco mais sobre a Astrida Neimanis, em especial seu livro Bodies of Water: Posthuman Feminist Phenomenology. Se quiser continuar lendo sobre temas relacionados ao meio ambiente, lembre-se que em novembro de 2023 o 2N teve um Especial Meio Ambiente!

Para fechar, falarei um pouco mais do jogo ABZÛ – que significa algo como conhecer a água –, já citado no corpo do texto! O jogo desenvolvido pela Giant Squid aposta em uma aventura subaquática com cores e cenários lindos (tudo debaixo d’água!). Você realiza acrobacias, interage com cardumes de peixes e predadores, explora ecossistemas aquáticos e restaura a vida marinha. Para entender um pouco mais sobre esse jogo imersivo, dá uma olhadinha no trailer dele!  

Referências

ALOISIO, D.; SILVA, V. Salvador do futuro: aumento do nível do mar pode causar desaparecimento de pontos importantes da cidade. [S. l.], 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/ba/bahia/aniversariodesalvador/noticia/2024/03/21/salvador-do-futuro-aumento-do-nivel-do-mar-pode-causar-desaparecimento-de-pontos-importantes-da-cidade.ghtml. Acesso em: 23 mar. 2024. 

BOSSI, L. Blue ecofeminism: Rethinking our oceans and remembering the goddess. Language, Culture, v. 1, 2020.

CARDOSO FILHO, J.; MATOS, D. A. Imagens do Atlântico Sul e do Índico: experiências estéticas nas diásporas oceânicas. Ação Midiática – Estudos em Comunicação, Sociedade e Cultura., [s. l.], v. 26, n. 1, 2023. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/acaomidiatica/article/view/90474. Acesso em: 7 mar. 2024.

DENNING, L. R. Developing a hydrofeminist art practice: bodies, spaces, practices. 2022. phd – Bath Spa University, [s. l.], 2022. Disponível em: https://researchspace.bathspa.ac.uk/14559/. Acesso em: 7 mar. 2024.

HAU‘OFA, E. From “The Ocean in Us”. In: FROM “THE OCEAN IN US”. [S. l.]: University of Hawaii Press, 2022. p. 117–119. Disponível em: https://www.degruyter.com/document/doi/10.1515/9780824893514-038/pdf?licenseType=restricted. Acesso em: 22 mar. 2024.

MAGGIPINTO, B. et al. Aqueous logics: Towards a hydro feminism approach to sustainability. IASDR Conference Series, [s. l.], 2023. Disponível em: https://dl.designresearchsociety.org/iasdr/iasdr2023/fullpapers/151. 

MERCIER, C. El agua como cuerpo común: hidrofeminismos en tres distopías latinoamericanas recientes. [s. l.], 2022. Disponível em: https://digibug.ugr.es/handle/10481/80264. Acesso em: 7 mar. 2024.

OLIVEIRA, M. P. O preço de um crime socioambiental: os bastidores do processo de reparação do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, o maior desastre humanitário do Brasil. [S. l.]: Editora Dialética, 2023. 

OVERY, R. A história da guerra em 100 batalhas. 1. ed. São Paulo: Publifolha, 2015. 

REDDA+. As 10 Consequências do Aumento do Nível dos Oceanos. 9 jun. 2022. Disponível em: https://redda.com.br/consequencias-do-aumento-do-nivel-dos-oceanos/. Acesso em: 23 mar. 2024.

Ana Laura Baia de Morais

Mineira, graduanda em Relações Internacionais pela UFG e mãe de gato. Estudo sobre feminismo, tráfico humano e decolonialidade. Artista nas horas vagas, amante de criar playlists novas e um bom rolê de queijos e vinhos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *