O QUE ESTAMOS ESCREVENDO SOBRE GÊNERO NO BRASIL? UMA ANÁLISE DA IX ABRI

O QUE ESTAMOS ESCREVENDO SOBRE GÊNERO NO BRASIL? UMA ANÁLISE DA IX ABRI

“Estilhaço” (2021) Lorena Policarpo Mourão de Oliveira – fotografia digital com intervenções em acrílico, exposta na IX ABRI.

Em julho de 2023, ocorreu em Belo Horizonte, Minas Gerais, a IX edição do Encontro Nacional da ABRI – Associação Brasileira de Relações Internacionais. Esse evento tem o objetivo tanto de estimular a produção acadêmico-científica dentro das Relações Internacionais, quanto de incentivar o seu debate. Na edição de 2023, tivemos pela primeira vez a operacionalização da Área Temática de Feminismos, Gênero e Sexualidade, e entender sobre o que estamos pesquisando nesse âmbito – ou deixando de pesquisar – é muito importante para compreendermos quais perspectivas temos para avançar nos debates de gênero, quais são as inquietações que têm aparecido de forma mais latente, e mesmo como os estudos sobre gênero têm sido entendidos dentro das Relações Internacionais na academia brasileira.

O que é a ABRI?

A Associação Brasileira de Relações Internacionais surge em 2005, sendo considerada como um marco fundamental na consolidação e institucionalização da área de RI no Brasil. Até então, os pesquisadores de RI somente encontravam espaço para debater suas produções em fóruns como a ANPOCS – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais – e a ABCP – Associação Brasileira de Ciência Política –, carecendo, contudo, de um espaço próprio para um intercâmbio de ideias, organização de debates ou mesmo defesa de interesses comuns (ABRI, 2020).

Dessa forma, além de atuar, desde então, enquanto representação da comunidade acadêmica de Relações Internacionais brasileira, frente a instituições congêneres, nacionais e internacionais, aos órgãos de administração pública e instituições de ensino e pesquisa num geral, cabe também à ABRI a organização periódica de eventos que possibilitem a troca dentro da área. Um desses eventos é justamente o Encontro Nacional, que acontece a cada dois anos, desde sua primeira edição em 2007, que teve como tema: Transformações na Ordem Internacional na 1ª Década do Século XXI (ABRI, 2023d).

Tema da IX ABRI

Entre 2007 e 2023, muitas transformações aconteceram no mundo e, consequentemente, no campo das Relações Internacionais, e, de certa forma, o tema da nona edição está muito relacionado com essas mudanças e com perspectivas para a área. Entitulado O velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer, o encontro trouxe em 2023 a proposta de:

[…] um engajamento com as múltiplas crises anunciadas, do neoliberalismo, do capitalismo e do autoritarismo. Entretanto, também pretendemos nos engajar no debate com as estratégias pelas quais esses sistemas se reinventam, fazendo da crise um modo de governar e adiando seu colapso (ABRI, 2023a).

Logo, a edição contou com um foco maior em pensar movimentos sociais, novos modelos de desenvolvimento não-exploratório, apontando para abordagens contra-hegemônicas que apontassem para um futuro alternativo. Ademais, também buscou compreender o papel das RI na definição do senso comum, além de puxar uma reflexão acerca das transições “geopolíticas, sociais, ecológicas e políticas em curso” (ABRI, 2023a). Assim, temos uma aproximação e um olhar mais atento para o próprio Sul Global, em uma tentativa de deixar o campo mais plural e finalmente poder dar um passo mais ambicioso, para além de debates hegemônicos que dominam a área.

Gênero e ABRI

Pensando em todas as mudanças que vêm ocorrendo no campo das RI no Brasil, faz-se essencial evidenciar que foi no IX Encontro Nacional da ABRI que observamos um progresso significativo para os estudos de gênero dentro das Relações Internacionais: tivemos a primeira edição com a vigência da Área Temática (AT) de Feminismos, Gênero e Sexualidade. Os esforços para a criação da AT começaram em 2016, por meio da criação do grupo MulheRIs – Promovendo Igualdade de Gênero nas Relações Internacionais, que, inclusive, desde então coordena eventos para promoção do debate e pesquisa de gênero na academia brasileira de RI (ABRI, 2023c).

Contudo, foi somente em 28 de julho de 2021 que a AT foi criada, sendo também um marco na história da ABRI e para o campo de RI, que insistiu – e, sinceramente, ainda insiste – em dizer que falar sobre gênero, suas dinâmicas de poder, e o papel da mulher no Sistema Internacional não era falar sobre Relações Internacionais. Essa ideia de que estudos de gênero não cabem dentro das RI aparece de várias formas, por exemplo, por meio de discursos “apaziguadores” e “elucidativos” como o do Keohanne em Beyond Dichotomy: Conversations between International Relations and Feminist Theory (1998), onde ele explica, em resposta a teórica Judith Ann Tickner, como as autoras feministas deveriam fazer para serem enfim levadas a sério dentro do campo, apontando definições metodológicas e epistemológicas a ser seguidas.

Assim, como a própria Tickner traz no seu texto What Is Your Research Program? Some Feminist Answers to International Relations Methodological Questions (2005), o gênero permite uma lente de análise para as relações internacionais que tocam experiências que fogem ao conhecimento privilegiado da experiência masculina. Nossa epistemologia, nosso método, não pode ser o mesmo. As questões que levantamos e os problemas que observamos (e sentimos na pele) foge ao positivismo sugerido por Keohane, e para avançarmos nesse debate precisamos de uma área temática toda nosso, assim como Virginia Woolf apontou, ainda em 1929, que para que as mulheres pudessem escrever, elas precisariam de um teto todo seu (Woolf, 2022).

O que está sendo produzido na AT de Feminismos, Gênero e Sexualidade?

Embora tenha sido o primeiro ano da AT de Feminismos, Gênero e Sexualidade, é interessante pontuar que ela contou com um número de anais apresentados dentro dos parâmetros das demais áreas temáticas, exceto das áreas de Economia Política Internacional e Segurança Internacional, Estudos Estratégicos e Política de Defesa, que contam com um volume mais considerável, conforme se evidencia na tabela 1. Nesse particular, é interessante pontuar, ainda, que embora tracemos a análise somente com base nos trabalhos submetidos para a AT de Feminismos, Gênero e Sexualidade, é possível que tenham produções que tratam sobre gênero em outras ATs.

Tabela 1: Número de submissões por área temática

Tabela de Submissões por Área temática na IX ABRI

Elaborada pela autora.

Assim, pensando que não seria possível seccionar as produções a partir dos eixos tradicionais das Relações Internacionais, a segmentação foi realizada a partir do seguinte processo: cada projeto teve entre 1 e 5 palavras-chaves relacionadas a partir do escopo proposto. Nesse sentido, foram consideradas as palavras-chaves que mais se repetiram como um indicador de tema em voga tendo gênero como lente epistemológica. A palavra-chave que mais se repetiu foi “Brasil”, tendo aparecido em 17 dos projetos expostos no portal da AT sob análise da nona edição (ABRI, 2023b). Na tabela 2, estão dispostas as palavras-chaves que apareceram em mais de 5 trabalhos (ou seja, cerca de 10% do total submetido), ordenadas por quantidade de aparecimento.

Tabela 2: Palavras-chaves e quantidade de aparecimento em relação ao total de trabalhos submetidos para a AT de Feminismos, Gênero e Sexualidade.

Número de aparecimentos por palavra-chave na IX ABRI

Elaborada pela autora.

Outro ponto interessante a ser mencionado é o volume dos trabalhos que trata sobre Segurança e Estudos de Paz, abarcando 13 projetos do total. Dentro dessa pauta, é ainda considerável a quantidade de trabalhos que tratam sobre segurança, especificamente pensando em Feminicídio e Violência (7). As análises sobre instituições internacionais também contam com certo volume, principalmente tratando sobre a Organização das Nações Unidas, bem como Decolonialidade, que das 7 submissões, 2 ainda tratavam especificamente sobre Decolonialidade Queer. 

Considerações finais

A partir dos dados analisados, percebe-se que houve uma grande variedade de palavras-chaves relacionadas com mudanças climáticas e meio ambiente, como transição energética e impacto ambiental, embora o grande foco permaneça relacionado a questões securitárias. Por outro lado, um ponto que requer muita atenção é o considerável baixo volume de produções sobre Raça, tendo sido associada como palavra-chave em somente 5 das 58 produções, considerando a emergência de colocarmos raça como tópico central nas análises a partir de gênero. Esse mesmo fato pode ser analisado acerca de trabalhos sobre Mulheres Indígenas, que tiveram uma proporção ainda menor, de 2/58. 

Contudo, espera-se que tenhamos mais produções sobre raça no encontro de 2025, dado que foi aprovada durante a Assembleia do IX Encontro Nacional da ABRI a criação da AT de Raça e Relações Internacionais. Essa conquista explicita o fato de que o campo de RI está passando por um momento de mudanças, se expandindo para além do mainstream e tocando tópicos essenciais para o estudo contemporâneo das Relações Internacionais. Enfim, podemos vislumbrar um futuro onde não irão nos dizer o que é ou deixa de ser relações internacionais, sem invisibilizar vivências e epistemologias.

Recomendações

A obra “Estilhaço”, usada como capa dessa publicação, retrata a dinâmica colonial de repressão, violência e silenciamento da mulher negra, fazendo alusão aos estereótipos negativos e a máscara de flandres, um instrumento de tortura. A artista, Lorena Oliveira, é mestranda em Relações Internacionais pela PUC Minas e pesquisa sobre decolonialidade, raça e desenvolvimento. Siga no instagram @lorimourao

Para finalizar, convido vocês a visitarem a página dos trabalhos submetidos para a AT de Feminismos, Gênero e Sexualidade:

Caso tenha interesse em continuar lendo sobre a ABRI, em junho tivemos outra análise super bacana no site:

Referências

ABRI. 9º Encontro Nacional da ABRI. 2023a. Disponível em: https://www.encontro2023.abri.org.br/apresentacao. Acesso em: 14 ago. 2023.

ABRI. Anais Eletrônicos. 2023b. Disponível em: https://www.encontro2023.abri.org.br/anais/trabalhos/textos01?simposio=26. Acesso em: 15 ago. 2023.

ABRI. Estatuto Social da ABRI. 2020. Disponível em: https://www.abri.org.br/download/download?ID_DOWNLOAD=1080. Acesso em: 13 ago. 2023.

ABRI. Eventos Anteriores. 2023c. Disponível em: https://www.abri.org.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=1145. Acesso em: 20 jul. 2023.

ABRI. Feminismos, Gênero e Sexualidade. 2023d. Disponível em: https://www.abri.org.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=1208. Acesso em: 21 ago. 2023.

KEOHANE, Robert O. Beyond dichotomy: Conversations between international relations and feminist theory. International Studies Quarterly, v. 42, n. 1, p. 193-197, 1998.

TICKNER, J. Ann. What is your research program? Some feminist answers to international relations methodological questions. International Studies Quarterly, v. 49, n. 1, p. 1-21, 2005.

WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. 1. ed. Rio de Janeiro: Antoofágica, 2022.

Ana Laura Baia de Morais

Mineira, graduanda em Relações Internacionais pela UFG e mãe de gato. Estudo sobre feminismo, tráfico humano e decolonialidade. Artista nas horas vagas, amante de criar playlists novas e um bom rolê de queijos e vinhos.

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