ÁUSTRIA, EDELWEISS E A NOVIÇA REBELDE

ÁUSTRIA, EDELWEISS E A NOVIÇA REBELDE

Adaptação cinematográfica da autobiografia de Maria von Trapp, “A Noviça Rebelde” (1965) é um filme repleto de belas paisagens, uma icônica trilha sonora e de um enredo cativante e romanticamente clichê. Ambientado em um dos cenários cinematográficos favoritos da indústria — a Segunda Guerra Mundial —, a obra retrata a vida de uma família de cantores e, muito além de strudels de maçã e de garotas em brancos vestidos de cetim, aborda o abandono da pátria e a resistência cultural dentro de regimes totalitários. 

Interpretada e eternizada nas telonas por Julie Andrews, é Maria quem estampa o pôster do longa-metragem. Postulante no convento da Abadia de Nonnberg, em Salzburgo, ela era tida como imprevisível e uma perturbação ao local. Na mesma época, Georg von Trapp, capitão da Marinha do Império Austro-Húngaro, estava em busca de uma governanta que ficasse responsável pela educação de seus sete filhos. Ela é então, enviada à casa e pouco tempo depois casa-se com Georg.

ENTRE OS ALPES E O REICH

“Existem inimigos ferrenhos da Alemanha Nazista que recusam-se a pisar em solo alemão, mas que não consideram ser ruim visitar Innsbruck ou Salzburgo.”

Schwarz, Robert (1982) 

A anexação ao território alemão, ou Anschluss, ocorre em março de 1938 e a recepção do Führer em Viena é organizada pela filial austríaca do Partido Nazista que, em conjunto com a população, recebe o futuro de fartura por ele prometido, de braços abertos. Após a Primeira Guerra Mundial, o país se encontrava na característica pobreza do entre guerras e, aos poucos, se reerguia economicamente aproximando-se de seus vizinhos, sendo o principal deles a Alemanha. 

A pouca resistência à integração também se deu ao fato de que parte da população austríaca não era desconhecida aos ideais nazistas regados ao anti-semitismo, à xenofobia e um certo fascínio por olhos claros. O movimento possuía raízes no sul do país e, após a sua transformação em uma província do Terceiro Reich, ali a perseguição a judeus chegou a ser pior do que na Alemanha, contando com entusiasmados participantes dentre a nação austríaca (SCHWARZ, 1982). 

Essa rápida adesão aos princípios nazistas representava o sucesso do que fora planejado por Joseph Goebbels, o Ministro da Propaganda de Hitler. Para ele, os “problemas da arte” retratados nas obras do cinema hitlerista deveriam penetrar as vidas comuns tanto de seus compatriotas alemães quanto das populações locais, naturalizando os argumentos da causa (NAZARIO, 1995).

Por meio do estímulo ao consumo de conteúdos de artistas alemães – as sinfonias de Beethoven, as peças de Goethe e filmes como “O Judeu Eterno”- e de um apagamento das contribuições judaicas para a cultura e das várias queimas de livros organizadas pelo país, o Ministério obteve êxito em fomentar nos cidadãos alemães a sensação de pertencimento à causa (USHMM, 2023). Na Áustria — chamada de Ostmark durante o regime —, a tática foi tão eficaz que, cerca de 70% dos cargos de gestão ou administrativo nos campos de concentração, eram ocupados por austríacos (SCHWARZ, 1982). 

A RESISTÊNCIA DO “OUTRO” 

Contudo, a rápida adesão popular ao movimento não significa que não houve resistência ao discursos nazista. As mobilizações contrárias ao regime deram-se nos mais variados fronts: de trabalhadores industriais que sabotavam maquinários das linhas de produção a grupos de jovens que não se identificavam com a Juventude Hitlerista e que se viam exaustos da falta de liberdade na vida sob o reich (MCDONOUGH, 2001).

Os von Trapp, no entanto, se manifestam como membros de um terceiro grupo, com um número de integrantes menor ainda dos que os mencionados anteriormente: uma família rica, cristã e que poderia estampar os posters das propagandas arianas, mas que não se via no cinema de Hitler e muito menos se via disposta a empenhar o papel de nazista em horário comercial. 

Uma outra resistência ao regime –  mais silenciosa – já foi retratada várias vezes por diversos livros e roteiros escritos durante o pós-guerra e na contemporaneidade. Em “A Menina que Roubava Livros”, de Markus Zusak, a família de Liesel se põe em risco ao esconder em casa Max, um homem judeu. Oskar Schindler, industrial alemão filiado ao Partido Nazista que teve sua história contada no memorável “A Lista de Schindler”, empregou mais de 1.000 judeus em suas fábricas como forma de evitar que fossem enviados aos campos de concentração.

De romances fictícios a relatos reais, teimar contra os ditados de Hitler era mais comum do que muitos pensam e para os von Trapp da obra, a contestação se materializa por meio de uma canção: Edelweiss.

EDELWEISS: MUITO ALÉM DE UMA FLOR

Fonte: imagem de Friedrich Böhringer (Wikicommons)

Leontopodium alpinum ou Edelweiss é uma pequena flor branca que cresce nos alpes da América do Sul e da Europa. Usada em cerimônias que variam de casamentos a momentos fúnebres, a planta carrega o simbolismo de novos começos e desejos por paz, mas também de condolências. Enquanto melodia, a flor aparece duas vezes  durante o longa, por intermédio do capitão von Trapp: o primeiro momento é quando ele canta para seus filhos, após passar anos sem ouvir o som de sua própria música. O segundo, ao final do filme, ocorre durante a apresentação da família de cantores em um festival local, que conta com oficiais nazistas na plateia, de prontidão para escoltá-los a Viena, onde Georg von Trapp assumiria um posto na marinha austríaca, agora anexada às forças alemãs.

Ele integrava a parcela de espectadores que não foram afetados pelos enredos de Goebbels e colocaram em risco suas vidas e famílias. Ao ser oferecido um cargo no alto escalão do Reich, ele recusa, e diz que jurou sua lealdade a apenas um imperador. Nas vésperas da Anschluss, quando retorna de Viena para casa e encontra hasteada na sacada, uma bandeira vermelha estampada com uma suástica, ele a arranca e fala, “aqui ainda é a Áustria”.

Imagem promocional da Família de Cantores von Trapp em Boston em 1941

Emocionado e rodeado por sua família, é seu estado quando ele inicia a canção no festival. Os olhos cheios de água e uma voz embargada marcam seu rosto quando a plateia se junta a ele durante o bis da canção, enquanto ele encara seus compatriotas e se despede do país ao pedir bênçãos à flor Edelweiss, uma última vez. 

“Floco de neve, que você desabroche e cresça
Que desabroche e cresça para sempre
Edelweiss, Edelweiss
Abençoe minha terra para sempre

A Noviça Rebelde (1965)

Com emoção do início ao fim, “A Noviça Rebelde” aborda muito mais do que a primeira impressão que as pessoas podem ter sobre um musical. Sim, ele tem cantorias longas e encenações dramáticas de suspirar — a valsa em um gazebo com um amor proibido durante uma noite chuvosa, é um exemplo claro disso — mas visto de perto, com uma lente internacionalista, ele se torna um estudo de caso sobre a resistência da cultura nacional, perante um governo amante de coisas homogêneas. 

Os von Trapp e muitos outros foram retratos vivos de como é mais fácil tirar o indivíduo do meio, do que fazer o inverso. Abandonar seu lar em tempo de guerra, migrar para outro país e recomeçar do zero, não são demonstrações de fraqueza, mas, sim, de coragem. É preciso ter uma bravura fora do comum para cruzar fronteiras com o coração em mãos, sem saber o que vai ser feito do lugar que tanto ama e da nação que com orgulho, um dia chamou de sua. 

Em tradução literal do título, “O Som da Música” possui fatores tão similares e marcantes de governos totalitários, que poderia ser tido enquanto um relato do Brasil da década de 1960 ou dos anos Pinochet na Argentina. Uma biografia sobre uma família austríaca, que poderia facilmente ser brasileira, iraniana ou egípcia. Um enredo universal sobre coisas favoritas e abandono; nacionalismo e violência; coragem e desespero, repleta de dós, inúmeras rés e por enquanto, nenhuma barra final.

Referências bibliográficas

Edelweiss (From “The Sound of Music”) (Full Song & Lyrics) – Richard Rodgers, Oscar Hammerstein II – Download or Listen Free – JioSaavn. Disponível em: https://www.jiosaavn.com/lyrics/edelweiss-from-the-sound-of-music-lyrics/LwEbAjpnfHc .Acesso em: 2 maio 2023. 

edelweiss | plant | Britannica. www.britannica.com. Disponível em: https://www.britannica.com/plant/edelweiss-plant.

GAUMOND, Andrew. Edelweiss Flower Meaning, Symbolism, and Uses. Petal Republic. Disponível em: https://www.petalrepublic.com/edelweiss-flower/#9-edelweiss-flower-meaning-amp-symbol ism. Acesso em: 2 maio 2023. 

Maria von Trapp – Sound of Music, Book & Children. Biography. Disponível em: https://www.biography.com/musicians/maria-von-trapp. Acesso em: 27 abr. 2023.

MCDONOUGH, Frank. Opposition and resistance in Nazi Germany. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. Disponível em: https://files.libcom.org/files/opposition_and_resistance_in_nazi_germany.pdf. Acesso em: 12 jun. 2023.

NAZARIO, Luiz. A indústria cultural do nazismo. Extensão: cadernos da pró-reitoria de extensão da PUC Minas, Belo Horizonte, v.5, n.3, p. 51-58, dez. 1995.

Original Broadway Cast of The Sound of Music (Ft. Mary Martin & Theodore Bikel) – Edelweiss. genius.com. Disponível em: https://genius.com/Original-broadway-cast-of-the-sound-of-music-edelweiss-lyrics. Acesso em: 18 jun. 2023.

Post-war Economies (Austria-Hungary) | International Encyclopedia of the First World War (WW1). Encyclopedia. 1914-1918-online.net. Disponível em: 

https://encyclopedia.1914-1918-online.net/article/post-war_economies_austria-hungary#:~:text=The%20First%20World%20War%20left. Acesso em: 1 mai. 2023.

QUINCE, Annabelle. Austria struggles to come to grips with Nazi past. ABC Radio National. Disponível em: https://www.abc.net.au/radionational/programs/rearvision/austria-struggles-to-come-to-grips -with-nazi-past/6910962. Acesso em: 27 abr. 2023.

RODRIGUES, Por Leandro. Especial “The Sound of Music” : Dos Alpes Austríacos ao Som da Música que Marcou Gerações. backstage-musical. Disponível em: https://www.backstagemusical.com.br/single-post/2015/03/10/epecial-the-sound-of-music-d os-alpes-austr%C3%ADacos-ao-som-da-m%C3%BAsica-que-marcou-gera%C3%A7%C3% B5es. Acesso em: 27 abr. 2023. 

SCHWARZ, Robert. Nazism in Austria. Syracuse Scholar, v. 3, n. 1, 1982. Disponível em: https://surface.syr.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1091&context=suscholar. Acesso em: 27 abr. 2023.

UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM. Oskar Schindler. Ushmm.org. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/oskar-schindler. Acesso em: 2 maio 2023. 

UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM, WASHINGTON, DC. Culture in the Third Reich: Disseminating the Nazi Worldview. Ushmm.org. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/culture-in-the-third-reich-disseminating-the-nazi-worldview. Acesso em: 27 abr. 2023. 

Referência das imagens:

The Sound Of Music. 1965. 1 pôster. 584 x 876 pixels. Disponível em: https://family.20thcenturystudios.com/movies/the-sound-of-music. Acesso em: 12/06/2023 

WIKICOMMONS. Friedrich Böhringer. 1 fotografia. 640 x 425 pixels. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Alpen_Edelwei%C3%9F,_Leontopodium_alpinum_2.JPG. Acesso em: 12/06/2023

WIKICOMMONS. Larry Gordon. 1 fotografia. 602 x 480 pixels. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Trapp_Family_Singers_1941.JPG. Acesso em: 12/06/2023

Giovana Silva Santiago

Estudante de RI amante de frutas, livros, músicas e musicais e que se encontra em um sério relacionamento internacional com o BTS.

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