CHERNOBYL

CHERNOBYL

“O verdadeiro perigo é que, depois de ouvir mentiras suficientes, a gente não reconheça mais a verdade de jeito nenhum. O que podemos fazer então?” (Chernobyl, 2019) Essa é uma parte do monólogo de abertura da minissérie Chernobyl, criada e roteirizada por Craig Mazin, e dirigida por Johan Renck. O drama histórico de 2019, disponibilizado pela HBO e aclamado pela crítica, retrata o momento da explosão que causou o desastre na Usina Nuclear de Chernobyl em 1986, porém tem como foco seus eventos posteriores – desde a reação do governo soviético e as medidas tomadas pós-desastre, até o julgamento de três dos trabalhadores de maior patente na usina.

Em sua cena inicial, o espectador já se depara com uma cena forte dois anos após os eventos a serem explorados: o suicídio de Valery Legasov (Jared Harris), químico e membro da comissão formada para contenção do desastre, na qual exerceu um papel fundamental. Além de Legasov, a série tenta retratar diversos pontos de vista de personalidades reais: Anatoly Dyatlov (Paul Ritter), supervisor da usina que trabalhava e conduziu o teste que resultou na explosão; Boris Shcherbina (Stellan Skarsgard), vice-presidente do Conselho de Ministros da URSS; Vasily Ignatenko (Adam Negaitis), um dos bombeiros que agiram como resposta imediata à explosão, e sua esposa Lyudmilla (Jessie Buckley). Há também destaque para a personagem de Ulana Khomyuk (Emily Watson), uma física nuclear que, ao contrário dos demais protagonistas, é fictícia e representativa de toda a comunidade científica que atuou para amenizar os impactos do desastre.

CHERNOBYL: de “joia energética” a desastre

Usina de Chernobyl, com a cúpula protetora que cobre o prédio do Reator 4 (Natalia Liubchenkova/Euronews).

Na segunda metade do século XX, o movimento de exploração de materiais nucleares como fonte de energia havia aumentado consideravelmente, com o primeiro reator nuclear tendo começado a operar em 1954, na cidade de Obninsk (situada na atual Rússia) (Outline…, 2020). O investimento em energia nuclear à época seria uma ótima alternativa energética para a administração da União Soviética como um todo, uma vez que  “(…) 80% de seus recursos energéticos estão concentrados em regiões ao leste do país, enquanto 75% da sua população e consumidores de energia estão concentrados na porção européia da URSS” (Semenov, 1983, p. 47, tradução nossa [1]).

Assim, antes de se tornar local do maior desastre nuclear da história, a Usina de V. I. Lênin, popularmente conhecida como Usina de Chernobyl e localizada próxima à cidade de Pripyat (Ucrânia), foi concebida como um projeto que traria orgulho à União Soviética. Esta, em um contexto de Guerra Fria, para além de fornecer energia e emprego para centenas de milhares de pessoas, ainda demonstraria o poder soviético ao âmbito internacional. Em 1970 iniciou-se a construção da usina, que passaria a operar em 1978 com dois reatores – e mais dois, os reatores 3 e 4, foram finalizados em 1983, um ano antes do desastre, com outros dois em construção quando a explosão ocorreu (Chernobyl…, 2022).

Visão da Usina de Chernobyl algumas semanas após o desastre. (Foto: Laski Diffusion / Wojtek Laski / Getty).

Na madrugada do dia 26 de abril de 1986, a equipe noturna responsável pelo Reator 4 realizou um teste, simulando baixas energéticas. Contudo, ele saiu de controle e, aliada a falhas de design e erros técnicos dos operadores, a explosão ocorreu, deixando o núcleo radioativo do reator exposto à atmosfera e causando a morte de dois dos trabalhadores, bem como um incêndio. Este, como também ilustrado na série, incitou o corpo de bombeiros de Pripyat a ir até a usina para combatê-lo, bem como outros voluntários de emergência para realizar a limpeza do local, mal imaginando as quantidades massivas de componentes radioativos que entravam em seus organismos. Vinte e oito deste grupo primário faleceria nos meses seguintes, como resultado da exposição (Frequently…, c2023).

É interessante notar que, dois anos antes, a URSS havia elaborado a Nuclear Safety Bill (1984), estabelecendo padrões de segurança para suas instalações nucleares tais como Chernobyl – atrasada, em relação a outros “Estados nucleares” que haviam elaborado legislações específicas quarenta anos antes. Também deve-se  ressaltar que, por mais que a lei tivesse sido elaborada, ela nunca foi implementada na prática devido a “questões burocráticas” (Yaroshinskaya, 2006). Ainda, naquela fatídica noite, muitos protocolos de segurança foram ignorados pela equipe responsável, potencializando a tragédia (Frequently…, c2023).

Em meio à piora da situação do que restara do reator, a radiação de elementos como césio-137 e estrôncio-190 foram extensivamente expelidos no ambiente (na série, o personagem de Legasov chega a afirmar que era como se a radiação do equivalente a duas bombas de Hiroshima fosse expelida a cada hora). Nas trinta e seis horas decorrentes do acidente porém, antes da evacuação súbita de Pripyat, os mais de 49 mil moradores seguiram suas rotinas normais, bem como as dos demais arredores contaminados. Mais de 200 mil pessoas foram realocadas, quando o governo soviético finalmente deu a ordem (Frequently…, c2023). Mas já era tarde, milhares desenvolveram câncer em decorrência disso, com destaque às crianças e pré-adolescentes.

Disseram que eles ficariam fora por dois ou três dias e aconselharam que levassem o mínimo: identidades, documentos, comida e roupas. Nenhum nunca voltou a viver em Pripyat, declarada muito radioativamente perigosa para habitação humana por ao menos 24 mil anos (Willsher, 2016, tradução nossa [2]).

O Acobertamento do desastre de Chernobyl a nível internacional

Algo bem explorado e referenciado na minissérie são os esforços do governo soviético, a princípio, em tentar ocultar a ocorrência do desastre de todas as formas possíveis – algo que realmente aconteceu, e que fez com que a resposta de Estados próximos às partículas radioativas que o vento e a chuva carregaram aos seus territórios não fosse imediata. Novamente tendo como contexto a Guerra Fria, a União Soviética prezava pela percepção internacional de sua força e competência, e a ocorrência do desastre não somente colocava essa percepção em risco, como também poderia incitar uma reação dos demais Estados, como ocorreu após a descoberta. Até hoje, há um “vácuo midiático” quanto ao divulgado pelos jornais soviéticos ou pelo governo à época (Gessen, 2019), tudo devido ao esforço de supressão. Um exemplo é no próprio número de fatalidades atribuídas a Chernobyl: oficialmente foram 37 mortes, contudo “no vigésimo aniversário do acidente um relatório da ONU remeteu ao acidente, à época, centenas de milhares de mortes” (Pizzinga, 2020, p. 143-144).

Logo após o desastre de Chernobyl, a URSS conseguiu encobrir o que havia acontecido em Chernobyl por dois dias, até que trabalhadores de uma usina nuclear sueca (a 1.100 km de Chernobyl) detectaram material radioativo proveniente da usina soviética. Mesmo assim, de início houve negação por parte do governo, até um satélite estadunidense (o Landsat 5) conseguir imagens em infravermelho que indicavam que o reator e os tanques de resfriamento não estavam operando corretamente (Blakemore, 2019; Landsat…, 20–?). O então líder do bloco soviético, Mikhail Gorbachev, só fez um pronunciamento oficial em 14 de maio de 1986, dezenove dias após o desastre. Contudo, seu discurso mais focou em rebater o Ocidente, afirmando que a mídia estava contando mentiras sobre a União Soviética e que os efeitos de Chernobyl eram um exemplo do que poderia acontecer caso uma guerra com proporções nucleares fosse iniciada (Gorbachev…, 1986).

Imagens do satélite Landsat 5 sobre Chernobyl, em 1986 (Public Domain/USGS/NASA).

O acobertamento não parou nem mesmo com o fim da União Soviética. Em 2021, a partir de documentos da KGB que foram desclassificados pelo governo ucraniano, diversos “incidentes” na Usina de Chernobyl prévios ao desastre de 1986 vieram à luz. Desde 1982, quatro anos antes do desastre, até 1984, houveram múltiplas ocorrências de liberação de material radioativo que foram acobertadas pela KGB para “evitar pânico e rumores”, assim como  (Unsealed…, 2021).

“O que mais resta senão abandonar até a esperança da verdade e se contentar com histórias. Nessas histórias, não interessa quem são os heróis, tudo que queremos saber é quem é o culpado.”

Restante do monólogo de abertura de Chernobyl.

Porém, claramente ainda há resquícios dessa pretensão de desvio de responsabilidade, mesmo após mais de trinta anos do ocorrido: a prova é a reação da Rússia à minissérie. Para além do governo de Vladimir Putin banir a transmissão de Chernobyl em território russo, diversos veículos midiáticos criticaram severamente a produção, chegando a taxar Chernobyl (2019) como “propaganda pró-Estados Unidos” e  acusar o governo estadunidense de utilizar meios como a minissérie para tentar reescrever a história russa. Bem como, à época surgiram rumores de que Moscou faria a própria produção cinematográfica sobre o desastre, na qual os culpados pelo que ocorreu em Chernobyl seriam os Estados Unidos, através da CIA (Prysiazhniuk, 2019). Considerando a narrativa saudosista da União Soviética que o Kremlin de Putin adota, influenciando a opinião pública a olhá-la com nostalgia e repensar o modo de vida soviético de uma forma que beira a utopia (Chaisty; Whitefield, 2022; Rainsford; Robinson, 2019), não é uma surpresa que tal reação a uma série que expõe a culpa do governo soviético no desastre tenha ocorrido.

Considerações Finais

Stellan Skarsgard e Paul Ritter como Boris Shcherbina e Anatoly Dyatlov (Liam Daniel/HBO).

A minissérie Chernobyl, sem sombra de dúvida, tem como intenção ir além do fascínio que a cultura pop tem, de tempos em tempos, pelo desastre – o desconforto do espectador ao assisti-la é certamente esperado e planejado, em meio às cenas dos efeitos biológicos da radiação em seres humanos e animais (a última imagem de Vasily enquanto vivo, por exemplo). Bem como, para além da visão estimada do que a radiação em quantidades absurdas faz com o organismo de um indivíduo, há ainda um desconforto moral: a obra demonstra como as relações de poder à época culminavam em uma grande desconsideração pela vida, com líderes políticos ou mesmo os superiores da própria usina frequentemente não hesitando em sacrificar pessoas em prol de seus interesses. E, ainda que seja um fato conhecido, não o torna mais fácil de vislumbrar em meio à representação dramatizada.

Em quesito de direção, ela também consegue “brincar” com elementos de terror e deixar o público sentindo como se estivesse assistindo a outro gênero e não um drama histórico; a cena em que os três trabalhadores da usina entram no edifício em meio à água radioativa, e as luzes de suas lanternas começam a falhar até apagarem por completo, é o exemplo perfeito da tensão que o espectador pode sentir ao assistir Chernobyl. Outro destaque reconhecido é a atenção ao detalhe e a pesquisa extensiva que foi realizada, havendo mesmo a utilização de tecidos da época na confecção do figurino (Barros; Rodrigues, 2019)! A ambientação impecável de cenários, figurinos e efeitos é reconhecida mesmo pelos discordantes de parte ou toda autenticidade do roteiro (uma vez que é uma dramatização e dispuseram de liberdade criativa em determinados pontos), e certamente merece as nomeações e premiações nas categorias adequadas do Emmy de 2019.

Notas

[1] “80% of its energy resources are concentrated in eastern regions of the country, while 75% of the population and consumers of power are concentrated in the European part of the USSR” (Semenov, 1983, p. 47).
[2]  They were told they would be gone for two or three days and advised to take the minimum: identity papers, documents, food and clothing. None ever returned to live in Pripyat, declared too radioactively dangerous for human habitation for at least 24,000 years (Willsher, 2016).

REFERÊNCIAS

BARROS, Luiza; RODRIGUES, Eduardo; LOPES, Leticia. ‘Chernobyl’: o que é verdade e o que é ficção na série da HBO. O Globo, 28 maio 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/chernobyl-que-verdade-o-que-ficcao-na-serie-da-hbo-23695605. Acesso em: 10 out. 2023.

BLAKEMORE, Erin.The Chernobyl disaster: What happened, and the long-term impacts. National Geographic, 17 maio 2019. Disponível em: https://www.nationalgeographic.com/culture/article/chernobyl-disaster. Acesso em: 13 out. 2023.

CHAISTY, Paul; WHITEFIELD, Stephen. Expert Comment: Putin’s Russia: people increasingly identify with the Soviet Union – here’s what that means. University of Oxford, 21 abr. 2022. Disponível em: https://www.ox.ac.uk/news/2022-04-21-expert-comment-putin-s-russia-people-increasingly-identify-soviet-union-here-s-what. Acesso em: 11 out. 2023.

CHERNOBYL. Direção de Johan Renck. Estados Unidos; Reino Unido: HBO; Sky UK; Sister Pictures; Word Games; The Mighty Mint, 2019. 1 minissérie (5 episódios, 318 min.). Disponível em: https://play.hbomax.com/page/urn:hbo:page:GXJvkMAU0JIG6gAEAAAIo:type:series. Acesso em: 11 out. 2023.

CHERNOBYL Accident 1986. World Nuclear Association, abr. 2022. Disponível em: https://www.world-nuclear.org/ukraine-information/chernobyl-accident.aspx. Acesso em: 10 out. 2023.

FREQUENTLY  Asked Chernobyl Questions. IAEA (International Atomic Energy Agency), c2023. Disponível em: https://www.iaea.org/newscenter/focus/chernobyl/faqs. Acesso em: 11 out. 2023.

GESSEN, Masha. What HBO’s “Chernobyl” Got Right, and What It Got Terribly Wrong. The New Yorker, 4 jun. 2019. Disponível em: https://www.newyorker.com/news/our-columnists/what-hbos-chernobyl-got-right-and-what-it-got-terribly-wrong. Acesso em: 12 out. 2023.

GORBACHEV Says the ‘Worst Is Over,’ Blasts West ‘Lies’ : Makes First Comment on Chernobyl. Los Angeles Times, 14 maio 1986. Disponível em: https://www.latimes.com/archives/la-xpm-1986-05-14-mn-5603-story.html. Acesso em: 12 out. 2023.

OUTLINE History of Nuclear Energy. World Nuclear Association, nov. 2020. Disponível em: https://world-nuclear.org/information-library/current-and-future-generation/outline-history-of-nuclear-energy.aspx. Acesso em: 10 out. 2023.

PIZZINGA, Vivian H. Notas sobre Chernobyl: análise de alguns aspectos

relacionados às situações de trabalho da usina

nuclear de Pripyat. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 2020, v. 23, n. 2, p. 143-156. https://www.revistas.usp.br/cpst/article/view/164724/167315

PRISYAZHNIUK, Marianna. What the Russian Media Thinks of HBO’s ‘Chernobyl’. VICE, 20 jun. 2019. Disponível em: https://www.vice.com/en/article/mb8584/russia-media-reacts-fact-checks-chernobyl-hbo-series. Acesso em: 10 out. 2023.

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Mariana de Castro Lopes Alphonsus de Guimaraens

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