E-TEAM

E-TEAM

Dirigido por Katy Chevigny e Ross Kauffman, E-Team é um documentário lançado em 2014 e atualmente é disponibilizado na Netflix. Ele retrata um grupo da Human Rights Watch (HRW), ONG internacional e sem fins lucrativos que realiza pesquisas e relatórios em prol da defesa dos direitos humanos e denúncia de suas violações ao redor do mundo. Na obra em específico, acompanha-se o “E-Team” (Emergencies Team) — sua equipe de emergência especializada em reportar crimes contra a humanidade —, composto por Ole Solvang, Anna Neistat, Fred Abrahams e Peter Bouckaert, enquanto investigam ocorrências da Guerra Civil Síria e da Líbia pós-conflito, em 2013.

A investigação da Human Rights Watch na Guerra Civil Síria

Em março de 2011, em meio à insatisfação quanto ao governo ditatorial de Bashar al-Assad e no contexto pró-democrático da Primavera Árabe [1], protestos em prol da liberdade política e da renúncia de Bashar al-Assad ganharam mais força no território sírio — e, em resposta, maior repressão do governo. Em contrapartida à violência do governo sírio, grupos beligerantes se formaram, e o conflito evoluiu para um cenário de guerra civil. Com o envolvimento de grupos terroristas e da comunidade internacional se posicionando, a Guerra Civil Síria é um conflito que perdura por doze anos, com estimativas de mais de 668.400 mortes até março de 2023 e levou milhões de pessoas a deixarem a Síria em busca de refúgio (WHY…, 2023; AL JAZEERA, 2018).

Fonte: imagem de Scott Bob (Wikicommons).

No documentário, Neistat e Solvang precisam perpassar clandestinamente pelas fronteiras de modo a pesquisar sobre os relatos recebidos de massacres e violência extrema contra civis e protestantes contrários ao governo de Assad. Mostra-se uma fração das diversas entrevistas realizadas para a veracidade das informações recebidas e posterior composição do relatório, e em especial a dor da população em meio à guerra. Destaca-se uma fala de Anna: “Guerra é um inferno, sempre. Guerra é sempre ruim. Não é nosso papel fazer essa observação perspicaz. Nosso papel é mostrar exatamente o que aconteceu nessa vila, e o porquê nós achamos que é uma violação do direito internacional” (E-TEAM, 2014). 

O documentário mostra, ainda, a presença de Neistat e Solvang no local logo após os bombardeios por aviões militares contra civis da cidade de Azaz, causando 40 fatalidades e ferindo mais de 100 pessoas. Como posto no texto escrito à época, pela organização, este ataque por si só já caracteriza um crime de guerra: 

A lei internacional humanitária, ou as leis da guerra, aplica-se a todas as forças do governo sírio e da oposição armada na Síria. As leis da guerra proíbem ataques diretos a civis. Casas, apartamentos, e outras estruturas civis também devem ser protegidas de ataques, a não ser que estejam sendo usadas para propósitos militares. Onde há dúvida quanto ao alvo ser militar ou civil, deve-se presumir que é civil (SYRIA, 2012, tradução nossa) [2]. 

Dois outros momentos se ressaltaram, no que tange ao que vai à disseminação das informações coletadas à mídia: primeiramente, ao coletarem as informações confirmando a ocorrência de crimes contra a humanidade pelo governo de Assad e se prepararem para liberá-las à imprensa, Anna opta por realizar a coletiva em Moscou, apoiada pela diretoria da HRW. Uma decisão estratégica e interessante, uma vez que, à época, a Rússia havia vetado diversas resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) — até fins de 2018, Moscou havia usado seu veto em 12 ocasiões em assuntos relativos à Guerra Civil Síria (LUCAS; DOUCOULIAGOS, 2018). O Presidente russo, Vladimir Putin, ainda apoia o governo de Bashar al-Assad abertamente. 

Na coletiva de imprensa liderada por Neistat, dois jornalistas se posicionaram contrários às informações apresentadas no relatório, chamando-o de “tendencioso e comprado” e comparando a ação da organização com a “‘democracia’ que os Estados Unidos concederam ao Iraque e Afeganistão”. Um deles chega a questionar quem lhes deu o direito de “ignorar a opinião do governo legítimo”, e quando Anna sugere que a Síria então permita observadores internacionais, o jornalista retruca afirmando que isso violaria sua soberania. Em contraste, do lado de fora da coletiva, um imigrante sírio agradece a ativista. 

É mostrado, também, a descoberta do uso de armas químicas contra civis, com um grande papel exercido pela Human Rights Watch em identificá-las como pertencentes ao governo de Assad, reconhecido por governos como o britânico. Posteriormente, o CSNU aprova uma resolução exigindo a erradicação das armas químicas na Síria, apoiado mesmo pela Rússia. 

E em uma Líbia “pós-conflito”

Assim como no cenário sírio, a Primavera Árabe também teve efeitos de influência política na Líbia. A tentativa do ditador Muammar Gaddafi, à época há 42 anos no poder do Estado líbio, de reprimir violentamente os protestos da população, escalou o conflito em uma guerra civil, bem como no caso sírio. De fevereiro de 2011 até outubro do mesmo ano, a população da Líbia veria o desenrolar da guerra — contudo, a rápida resolução adotada pelo CSNU e intervenção da OTAN, que realizou bombardeios contra as forças militares de Gaddafi e apoiou os grupos beligerantes por meses, fez com que o conflito tomasse um rumo diferente do caso sírio. Isso se evidenciou mais ainda com a deposição e morte de Gaddafi (BATTLE…, 2017). Há estimativas de até 25 mil mortes e centenas de milhares de refugiados neste primeiro conflito, que foi o primeiro de uma crise que a Líbia enfrenta mesmo doze anos depois de seu início; após a guerra de 2011, a disputa pelo poder por grupos rivais continua em um conflito subsequente desde 2014 (MCKERNAN, 2020).

Fonte: J. Weeks (Wikicommons).

Na obra, Fred Abrahams e Peter Bouckaert viajam à Líbia, após o fim da Guerra Civil, de modo a atestar relatos de abusos aos direitos humanos provindos de ambos os lados do conflito. Entretanto, também deixam claro que a Human Rights Watch esteve presente desde o início do estopim, e por isso possuem influência em meio aos rebeldes, como denominados pelos ativistas. Em uma instância, após presenciarem o grupo incendiando casas de antigos oficiais do governo, Abrahams e Bouckaert argumentam com seus membros, enfatizando que a responsabilidade deve ser atribuída de maneira legítima e através de processos legais, e não com mais violência. Destaca-se, também, o abandono negligente de milhares de armamentos pelo governo destituído, identificados por Peter, que apresentam um risco à segurança do país e da região como um todo — mas, imediatamente, aos civis. 

E-team mostra-se como um bom documentário para ter um vislumbre melhor do trabalho de ativistas e investigadores pelos direitos humanos em organizações similares. Bem como, quanto ao risco que correm para trazer relatos tão essenciais ao público e à justiça, e para aqueles que têm apreço pelas temáticas do direito internacional e direitos humanos como um todo. Afinal, como posto por Fred Abrahams: “Como que você continua voltando, conversando e ouvindo essas histórias horríveis, e escrevendo seus relatórios, a não ser que você sinta que há esperança em algum ponto e eles serão responsabilizados?” (E-TEAM, 2014). 

É um filme importante também para pensar como, atualmente, não somente os governos são atores relevantes no cenário internacional — a própria ONG sendo um grande exemplo. A atuação da Human Rights Watch impacta diretamente na pressão política e moral dos Estados e na cobrança que a sociedade civil pode exercer, impactando diretamente na tensão internacional; pode-se pensar, relacionado a esses fatores, diversos aspectos ligados aos interesses dos Estados, à reputação internacional, ao papel das Organizações Internacionais como palco de debate, entre outros.

Ainda, a obra explora para além do trabalho em si, trazendo questões das vidas pessoais dos membros do E-Team — especialmente de Neistat e Solvang, como casal e para cumprir seus papéis como pais (tanto de um pré-adolescente quanto de um bebê cuja gravidez Anna descobre enquanto está trabalhando em campo), e de Bouckaert com sua família. Durante sua uma hora e meia de duração, E-Team consegue engajar o telespectador, mantendo sua atenção entre os fatos e relatos apresentados, fazê-lo simpatizar com as pessoas representadas e despertar sua vontade para pesquisar mais a fundo.

Notas

[1] Para aprender mais sobre a Primavera Árabe, leia: https://www.doisniveis.com/africa/norte-africano/revolucao-jovem-no-egito-a-primavera-arabe/.

[2] International humanitarian law, or the laws of war, applies to all Syrian government and armed opposition forces in Syria. The laws of war prohibit direct attacks on civilians. Homes, apartments, and other civilian structures are also to be protected from attack, unless they are being used for military purposes. Where there is doubt about whether a target is military or civilian, it must be presumed to be civilian (SYRIA, 2012).

REFERÊNCIAS

AL JAZEERA. Syria’s war explained from the beginning. Al Jazeera, 14 abr. 2018. Disponível em: 

https://www.aljazeera.com/news/2018/4/14/syrias-war-explained-from-the-beginning. Acesso em: 3 maio 2023. 

BATTLE for Libya: Key moments. Al Jazeera, 30 abr. 2017. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2017/4/30/battle-for-libya-key-moments-3. Acesso em: 3 maio 2023. 

E-TEAM. Direção de Katy Chevigny; Ross Kauffman. Estados Unidos: Big Mouth Productions; Red Light Films, 2014. 1 documentário (130 min.). Disponível em: https://www.netflix.com/br/title/70299286?s=i&trkid=255639042&vlang=pt&clip=80008255. Acesso em: 1 maio 2023. 

LUCAS, Scott; DOUCOULIAGOS, Chris. How Russia’s UN vetoes have enabled mass murder in Syria. The Conversation, 2 out. 2018. Disponível em: 

https://theconversation.com/how-russias-un-vetoes-have-enabled-mass-murder-in-syria-10356 5. Acesso em: 3 maio 2023. 

MCKERNAN, Bethan. War in Libya: how did it start, who is involved and what happens next? The Guardian, 18 maio 2020. Disponível em: 

https://www.theguardian.com/world/2020/may/18/war-in-libya-how-did-it-start-what-happens -next. Acesso em: 3 maio 2023. 

SYRIA: Fighter Jet Bombing Kills Over 40 Civilians. Human Rights Watch, 10 ago. 2012. Disponível em: 

https://www.hrw.org/news/2012/08/16/syria-fighter-jet-bombing-kills-over-40-civilians. Acesso em: 3 maio 2023. 

WIKICOMMONS. J. Weeks. 1 fotografia. 1,017 × 672 pixels. Disponível em: https://commons.m.wikimedia.org/w/index.php?search=Libya+war&title=Special:MediaSearch&type=image. Acesso em: 30 jun. 2023.

WIKICOMMONS. Scott Bob. 1 fotografia. 848 × 467 pixels. Disponível em: https://commons.m.wikimedia.org/w/index.php?search=Syria+war&title=Special:MediaSearch&type=image. Acesso em: 30 jun. 2023.WHY has the Syrian war lasted 12 years? BBC News, 2 maio 2023. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-middle-east-35806229. Acesso em: 3 maio 2023.

Mariana de Castro Lopes Alphonsus de Guimaraens

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