O MCDONALD’S NA RÚSSIA E AS TRANSFORMAÇÕES DO SISTEMA INTERNACIONAL
Após 30 anos operando na Rússia, o McDonald’s anunciou no dia 14 de abril de 2022 o encerramento de suas atividades no país e os planos de vender toda a sua rede de restaurantes, como resposta à invasão russa ao território ucraniano em 24 de fevereiro do mesmo ano (KUMAR, 2022). Dentre as unidades que fecharam suas portas está o icônico McDonald’s localizado no centro de Moscou, na Praça Pushkin, o primeiro restaurante da empresa que começou a operar em 1990, ainda na então União Soviética.
Tão importante quanto a saída da companhia do país foi a sua entrada. Talvez um dos maiores símbolos do capitalismo ocidental, a trajetória do McDonald’s, na Rússia, pode ser lida em paralelo às transformações do sistema internacional nos últimos 30 anos. No ano seguinte à abertura da rede de fast-food, o primeiro país socialista colapsaria e o conflito político-ideológico da Guerra Fria chegaria ao seu fim.
DOS ARCOS DOURADOS A PRAÇA VERMELHA
Estabelecer um poderoso ícone do capitalismo como o McDonald’s no coração do mundo socialista não foi tarefa fácil. As primeiras tratativas para levar o fast-food aos soviéticos começaram ainda na década de 1970, curiosamente por iniciativa da subsidiária da companhia no Canadá, presidida por George Cohon. Patrocinador oficial das Olimpíadas de Verão de 1976, em Montreal, o McDonald’s estava vivenciando um dramático período de expansão e Cohon projetou nas Olimpíadas de Moscou, em 1980, uma oportunidade única de introduzir a empresa a um mercado novo e inexplorado. Cohon explica que expandir os negócios à União Soviética era “Parte capricho e parte bom senso nos negócios: Moscou possuía 35% da população do Canadá como um todo, e o Canadá já possuía 300 McDonald’s em operação ao fim dos anos 1970” (IRONSIDE, 2021, p. 2)
As negociações olímpicas, a princípio promissoras, acabaram por fracassar. Alexander Yakovlev, à época embaixador soviético no Canadá e intermediário entre George Cohon e as autoridades soviéticas, revelou o impasse entre o Governo de Moscou e as lideranças do Partido Comunista em aprovar que uma companhia ocidental operasse no país. A recusa, segundo ele, teria vindo de cima (IRONSIDE, 2021, p. 4).
Na segunda metade da década de 1980, uma série de reformas econômicas foram promovidas pelo novo Secretário-Geral do Partido Comunista, Mikhail Gorbachev, afim de impulsionar a economia soviética. Em 13 de janeiro de 1987, foi aprovada a “Lei de Joint Venture”, que criava procedimentos para o estabelecimento e operação de joint ventures na União Soviética, bem como a divisão de 51% dos lucros com a parceria soviética (HOURI, 1990, p. 513).
A partir de então, o caminho para incluir o Big Mac no paladar dos moscovitas estava aberto e, em 29 de abril de 1987, o McDonald’s firmou acordo com o Governo de Moscou para a criação do primeiro restaurante da rede no país (IRONSIDE, 2021, p. 4). A abertura do restaurante ocorreu em 31 de janeiro de 1990, e foi um sucesso estrondoso. Segundo a empresa, mais de 30.000 refeições foram servidas neste dia e filas de centenas de pessoas se acumulavam por quarteirões (“CBC Archives/The National”, 1990).
No ano seguinte, apesar da tentativa de Gorbachev em ressuscitar a economia soviética através das políticas da perestroika e glasnost, a crise político-econômica no Estado socialista atingiu seu ápice e, no dia 25 de dezembro de 1991, o Secretário-Geral anunciou a dissolução da União Soviética.
O SISTEMA INTERNACIONAL PÓS-GUERRA FRIA
O colapso da União Soviética também representou o fim da Guerra-fria e, para a perspectiva realista das Relações Internacionais, o fim da ordem bipolar até então vigente. Kenneth Waltz, teórico realista, sugere que o sistema político internacional pós-Guerra fria caracteriza-se pela unipolaridade e pela hegemonia dos Estados Unidos (PASHAKHANLOU, 2014, p. 307), porém essa configuração haveria de durar por pouco tempo. Segundo o Estruturalismo Realista, “potências dominantes possuem muitas tarefas para além das suas fronteiras, se enfraquecendo ao longo do tempo” (WALTZ, 2000, p. 23), “mesmo que uma potência dominante atue com moderação, contenção e paciência, Estados mais fracos se preocuparão com seu comportamento futuro” (WALTZ, 2000, p. 23), buscando equilibrar a balança de poder através de alianças entre si.
Enquanto Waltz considera que a ordem unipolar seria eventualmente substituída por um sistema multipolar “constituído pela União Europeia ou uma coalizão de liderança alemã, China, Japão e, em um futuro mais distante, Rússia” (PASHAKHANLOU, 2014, p. 302), John Mearsheimer, outro teórico realista, considera que em uma realidade onde os Estados Unidos atingiram a hegemonia mundial, toda a ordem global deixaria de ser anárquica¹ e se tornaria hierárquica. Dessa forma, o sistema pós-Guerra Fria seria multipolar, composto por três grandes potências: Estados Unidos, China e Rússia (PASHAKHANLOU, 2014, p. 307).
Seja a ordem global unipolar ou multipolar, ambos os teóricos convergem ao assumir que o sistema se balanceará em algum momento. Mearsheimer sugere que mesmo que o Estados Unidos sejam a potência preponderante no mundo, este não pode ser um poder hegemônico global se outras grandes potências existem, e que a China se tornou o principal desafiador a preponderância estadunidense, superando a Rússia em todas as áreas de poder e capacidades com exceção a ogivas nucleares (PASHAKHANLOU, 2014, p. 307).
O “REDIRECIONAMENTO” DA ORGANIZAÇÃO DO TRATADO DO ATLÂNTICO NORTE
Uma das expectativas dos teóricos realistas após 1991 era a dissolução da aliança militar da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Afinal, se não havia mais a União Soviética, contra quem o tratado de segurança garantiria a segurança?
A OTAN perdeu sua principal função e tornou-se um “meio de manter e prolongar o controle dos Estados Unidos sobre as políticas externa e militar dos Estados europeus” (WALTZ, 2000, p. 29). Ainda, a expansão da instituição nos últimos 30 anos pode ser compreendida como uma forma de mitigar as rivalidades na balança europeia de segurança, e atender a políticas domésticas norte-americanas, uma vez que potenciais novos membros precisam necessariamente de modernizar sua infraestrutura militar ao aderirem à organização. “A indústria armamentista americana, na expectativa de capturar a grande parcela de um novo mercado, realiza um forte lobby em favor da expansão da OTAN” (WALTZ, 2000, p. 30)
Sobretudo, a expansão da organização para o leste europeu e o cáucaso, mais especificamente países como Ucrânia e Geórgia, representa para a Rússia a quebra das promessas feitas em 1990 e 1991, de que antigos membros do Pacto de Varsóvia não seriam incorporados à organização (WALTZ, 2000, p. 30) e uma “ameaça direta” à segurança da Rússia (MEARSHEIMER, 2014, p. 3), uma afirmação repetida diversas vezes por lideranças russas, e expressa claramente pelo conflito na Geórgia, em 2008.
A SAÍDA DO MCDONALD’S E O CONFLITO COM A UCRÂNIA
Em declaração oficial sobre o encerramento das atividades na Rússia, o McDonald’s afirma que a crise humanitária causada pela guerra na Ucrânia e o ambiente operacional imprevisível, tornaram insustentável a continuidade dos negócios no país, e a incompatibilidade com os valores da empresa (MCDONALD’S, 2022). Ao analisarmos as consequências dos acontecimentos que motivaram a decisão da empresa pela ótica realista, podemos inferir que um dos elementos críticos deste conflito foi a expansão da União Europeia e da OTAN para a órbita russa.
O apoio do ocidente a movimentos como a Revolução Laranja (2004), ao Euromaidan (2014), às políticas de expansão e “promoção da democracia” da OTAN e da União Europeia, e o reconhecimento por parte de Washington da destituição do presidente pró-russo Viktor Yanukovych, em 2014, em favor de um novo governo pró-ocidente e anti-Rússia, adicionaram combustível a crise que levaria a ocupação russa da península da Crimeia, em 2016 (MEARSHEIMER, 2014, p. 14). Por sua vez, a política aplicada pelo ocidente na região exacerbou ainda mais a deterioração das relações russo-ucranianas, que desencadearam no conflito, em 2022.
Como consequência, para a ordem do sistema internacional, é certo afirmar que a expansão da OTAN perturba a segurança internacional, ao passo que “Diminui a esperança de futuras grandes reduções nos arsenais nucleares.” e “Aproxima a Rússia da China ao invés aproximar a Rússia à Europa e aos Estados Unidos” (WALTZ, 2000, p. 30).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como foi possível o estabelecimento de um dos maiores símbolos do capitalismo e do ocidente no coração do bloco socialista? Ao expandirmos nossa perspectiva de análise, podemos inferir que isso foi resultado de um efeito dominó, gerado pela crise econômica vivida pela União Soviética, que motivou as reformas econômicas que propiciaram o acordo com o McDonald’s. Ainda que a ordem global pós 1992 seja tema de discussão entre os acadêmicos realistas, é certo que a balança de poder se nivelará. A política expansionista da OTAN, porém, parece ser um dos principais movimentos desestabilizadores da segurança global, e o conflito na Ucrânia é, pela lente realista, um movimento catalisador para a definição do sistema internacional pós-Guerra Fria. O primeiro fast-food atrás da cortina de ferro foi aberto num ponto de inflexão da estrutura do sistema internacional, e seu fechamento pode indicar que caminhamos novamente para outra mudança estrutural.
¹Em Relações Internacionais, o conceito de “Anarquia Internacional” expressa uma ausência de hierarquia entre os Estados, principais atores do Sistema Internacional. Um sistema anárquico significa, portanto, que não existem poderes coercitivos sobre os atores que o compõem.
REFERÊNCIAS
CBC Archives/The National. McDonald’s opens in hungry Moscow, but costs half-a-day’s wages for lunch, 1990s. l.Canadian Broadcasting Corporation, , 31 jan. 1990. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ckbfS99N6jY&t=5s. Acesso em: 30 abr. 2023.
HOURI, N. M. JOINT VENTURE LAW IN THE SOVIET UNION: Practicing law and doing business in the Soviet Union. v. 11, n. 3, 1990.
IRONSIDE, K. McDonalds on Pushkin Square: From Joint Venture to Foreign Subsidiary and from Communism to Capitalism, 1990-1999. . Artigo apresentado em “Summer” Workshop in the Economic History and Historical Political Economy of Russia. Chicago, 16 dez. 2021. Disponível em: https://bfi.uchicago.edu/event/workshop-on-the-economic-history-and-historical-political-ec onomy-of-russia/. Acesso em: 30 abr. 2023.
KUMAR, Uday Sampath. Golden arches to go dark in Russia as McDonald’s exits after 30 years. Disponível em: https://www.reuters.com/business/mcdonalds-exit-russia-after-30-years-2022-05-16/. Acesso em: 30 abr. 2023.
MCDONALD’S. MCDONALD’S TO EXIT FROM RUSSIA. [S. l.], 2022. Disponível em: https://corporate.mcdonalds.com/corpmcd/our-stories/article/mcd-exit-russia.html. Acesso em: 2 maio 2023.
MEARSHEIMER, J. J. Why the Ukraine Crisis Is the West’s Fault. v. 93, n. 5, 2014.
PASHAKHANLOU, A. H. ‘Waltz, Mearsheimer and the post-Cold War world: The rise of America and the fall of structural realism’. International Politics, v. 51, n. 3, p. 295–315, mai. 2014.
WALTZ, K. N. NATO expansion: A realist’s view. Contemporary Security Policy, v. 21, n. 2, p. 23–38, ago. 2000.