A RESPONSABILIDADE DE PROTEGER E A LÍBIA

A RESPONSABILIDADE DE PROTEGER E A LÍBIA

Muitas vezes quando lemos ou vemos notícias sobre violações de direitos humanos sendo cometidas por Estados contra seu próprio povo, cujo os Estados deveriam ser os primeiros a proteger, nos perguntamos o seguinte: “cadê as Nações Unidas (ONU)?”, “por que ninguém faz nada quanto a isso?”, “Por que ninguém ajuda esses povos e intervém contra esses governos tiranos?”. Foi pensando nesses questionamentos que uma reunião de um dos órgãos da ONU trouxe à luz o conceito de Responsabilidade de Proteger, em 2005. Como quase tudo na vida, a prática é mais complicada que a teoria, e o caso da Líbia pós-Primavera Árabe nos demonstra isto.

Antes de tudo, do que se trata essa “Responsabilidade de Proteger”?

Após uma década lotada de guerras por motivos étnico-culturais[1], que foi a década de 1990, os países da comunidade internacional se reuniram na sessão do Conselho de Segurança da ONU, em 1999, e o então Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, trouxe como pauta de debate: “o que fazer em situações de violações de direitos humanos por parte dos Estados para que elas parem de acontecer, mas sem ao mesmo tempo ferir a soberania dos países em que elas estão acontecendo?”.

Se a intervenção humanitária é, de fato, um ataque inaceitável à soberania, como devemos responder a uma (situação semelhante a) Ruanda, a uma Srebrenica, a grosseira e sistemática violação de direitos humanos que ofende todo princípio na nossa humanidade comum? (ANNAN, 2000, tradução minha)  

Tomando esse questionamento do secretário geral (até então sem resposta) como um desafio, a Comissão Internacional sobre Intervenção e a Soberania Estatal (ICISS, da sigla em inglês) criou em 2005 um documento que debatia a “Responsabilidade de Proteger”, ou, em inglês R2P (Responsibility to Protect). Segundo o próprio site da ONU na sessão do Conselho de Prevenção ao Genocídio:

Nos parágrafos 138 e 139 do Documento Final da Cimeira Mundial (A/RES/60/1) Líderes de Estado e de Governo afirmaram sua responsabilidade de proteger suas populações do genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade e aceitaram a responsabilidade coletiva de encorajar e ajudar outros a manter este compromisso. Eles também declararam sua prontidão de tomarem ações decisivas, em acordo com a Carta das Nações Unidas e em cooperação com organizações regionais relevantes, quando autoridades nacionais falharem ativamente em proteger suas populações. (ONU, sem data, tradução minha)

 Sendo assim, as nações acordaram em não só proteger suas populações, como também acordaram em intervir em outras nações cujos líderes estejam desrespeitando ativamente a Carta de Direitos Humanos da ONU, desde que a soberania do país em questão seja respeitada ao máximo.

OK, e o que isso tem a ver com a Líbia?

Em dezembro de 2010, com um grande impulso do uso das redes sociais, estourou um grande número de revoltas no Norte da África (Líbia, Tunísia, Egito etc) e no Oriente Médio (Arábia Saudita, Síria, Irã, Iraque etc) contra governos repressores e em sua maioria autoritários. A série de protestos foi batizada de “Primavera Árabe”. (PASSOS, 2011)

No caso específico da Líbia, os protestos começaram em fevereiro de 2011 contra o então ditador do país, Muammar Al-Ghadaffi, no poder no país norte-africano desde 1969.

Ressaltemos aqui, que por mais que o regime líbio gostasse de criar a ilusão de um regime democrático que ouve toda a população através da Jamahiriya (modelo político em que toda a população comparece em congressos para decisões regionais, nacionais e internacionais), o próprio povo líbio sentia que sua participação real era insignificante, dado os diferentes interesses das diferentes tribos que compõem a Líbia. Interesses estes que acabavam por não ser ouvidos por Ghadaffi. (JOFFÉ, 2011)

A escalada dos protestos na Líbia foi tão grande, que os protestos viraram uma luta de rebeldes contra as forças do governo e seus apoiadores. Em suma, eclodiu uma Guerra Civil na Líbia em 2011. O principal centro desta guerra, bem como a maior concentração de rebeldes anti-Ghaddafi, foi em Benghazi, a segunda maior cidade da Líbia depois da capital Trípoli (PASSOS, 2011). Foi ali, que as potências internacionais decidiram concentrar sua capacidade de ação para intervir no conflito interno líbio.

É importante destacar aqui que a região onde a Primavera Árabe ocorreu é uma zona de influência tricontinental que engloba regionalmente África, Ásia e Europa. Assim, com tensões em uma região cheia de interesses em jogo, grandes potências procuraram se envolver no evento da Guerra Civil Líbia (ESTEVES, 2012). Com o conflito tendo chamado a atenção da comunidade internacional, na reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), de março de 2011, três dos cinco países de cadeira permanente no Conselho, o famoso P5: Estados Unidos (EUA), França e Reino Unido formaram uma coalizão junto de outros membros rotativos (não-permanentes) do CSNU[2] para fornecer armas e ajuda militar em geral aos rebeldes líbio (PASSOS, 2011). A intervenção internacional, que caso preciso fosse, seria militar, foi aprovada sob o argumento de que na Líbia estava ocorrendo o seguinte:

“violação grosseira e sistemática dos direitos humanos, incluindo detenções arbitrárias, desaparecimentos, torturas e execuções sumárias”. (CSNU, 2011)

Ainda no texto da resolução, feito pela França, Líbano e Reino Unido, fora invocado a irresponsabilidade humanitária do governo líbio para com seus cidadãos e a transferência da responsabilidade de manter a segurança destes civis líbios para os membros do CSNU. Ou seja, os países ali, em reunião, invocaram o princípio da Responsabilidade de Proteger- R2P (PUREZA, 2012).

Porém, o que se deu na Líbia foi o envolvimento da coalizão militar multilateral[3] Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) nos bombardeios e expedições militares, com um notório protagonismo da França, Reino Unido e EUA, principalmente deste último. Em agosto de 2011, a capital Trípoli foi tomada pelos rebeldes e, em outubro daquele mesmo ano, o ditador Muammar Al-Ghadaffi foi capturado junto de seu filho, pelas forças da OTAN, morto e enterrado pelas próprias forças ocidentais no vasto deserto líbio (PASSOS, 2011). O feito foi visto como o grande triunfo da intervenção internacional no país norte-africano, tanto que a Secretária de Estado da administração Obama à época, Hillary Clinton, declarou em entrevista:

“Nós viemos, nós vimos, ele morreu” (CLINTON, 2011. Tradução minha)

A frase da então Secretária de Estado americana é um jogo de palavras com a famosa frase de triunfo militar do general e imperador romano Júlio César a cada conquista militar: “Vini, Vidi, Vici” que se traduz em “Vim, Vi e Venci”.

E depois? O que aconteceu com a Líbia?

A grande questão-chave deste artigo é justamente os resultados da primeira aplicação explícita da Responsabilidade de Proteger em socorro da população líbia contra um regime que violava sistematicamente os direitos humanos, desde a década de 70.

Ditador da Líbia de 1969 a 2011, Muammar Al-Ghadaffi

Tendo esta intervenção sido perpetrada pelas potências ocidentais, com a liderança dos EUA, o que se viu na Líbia, logo após o êxito em depor e matar o ditador Ghadaffi, foi simplesmente mais do mesmo. Ressoando os erros repetidos no Iraque por George W. Bush ao depor Saddam Hussein e no Afeganistão ao destruir o regime Talibã, a administração Obama simplesmente não planejou o que fazer para reestabilizar o país. Apesar da OTAN ter criado um Conselho Nacional de transição na Líbia, a articulação de restabelecimento da ordem e de um governo local com a população líbia, simplesmente não deu certo. Como dito pelo professor de Ciências Políticas Dominic Tierney (2016):

“Na guerra, existem duas boas opções pros Estados Unidos. A primeira é mudar um regime com um plano viável para conseguir a paz. A segunda opção é simplesmente não ir à guerra. Não tem por que derrubar um tirano se o resultado é anarquia.” (TIERNEY, 2016)

Conclusão?

O compromisso da Responsabilidade de Proteger foi firmado pelas nações em 2005 com o objetivo de melhorar as falhas das intervenções humanitárias e torná-las humanitárias de fato, mediante a adoção do direito internacional na guerra, planejamento a longo prazo do que fazer no país depois da derrota da tirania em questão,  e qual o protagonismo das populações locais nestas intervenções e na formação de uma nova democracia.

Velhos hábitos de guerra dos EUA

Porém, o que se observou na Líbia foram os exatos mesmos erros do passado, sendo eles, como admite o próprio Barack Obama (TIERNEY, 2016): protagonismo estrangeiro nas articulações militares e políticas, desleixo com a lei internacional, ao matar um prisioneiro que já estava rendido e desarmado, e relaxo com o planejamento em longo prazo do que fazer com o país depois que Ghadaffi caísse. Tudo isso provocado pela falta de estudos da organização sócio-política do país norte-africano fator que hoje se traduz na anarquia reinante no país.

É bom lembrar, como diz José Manuel Pureza (2012), que a Responsabilidade de Proteger foi criada justamente em resposta às críticas a intervenção humanitária irresponsável, brutal e sem cuidado. Podemos observar que, no caso líbio, os exatos mesmos erros foram cometidos e que a comunidade internacional, principalmente a maior potência militar do mundo, que também é a maior responsável pelas expedições militares intervencionistas, precisa aprender a colocar em prática o que lê, se quiser realmente cumprir objetivos humanistas.

Fontes:

ESTEVES, João Amorim. A intervenção da comunidade internacional na primavera Árabe.  Lusíada, Porto, n.5 e 6, p.95-170, 2012.

JOFFÉ, George. A Primavera Árabe no Norte de África: origens e perspectivas de futuro. Relações Internacionais, Lisboa, n. 30, jun 2011.

PASSOS, Rogério Duarte Fernandes dos. Uma crônica: Primavera Árabe, Líbia e Ocidente, Organização do Tratado do Atlântico Norte, um advogado francês e Tribunal Penal Internacional. Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 11, p. 41-51, jul.-dez. 2011.

PUREZA, José Manuel. As ambiguidades da responsabilidade de proteger: o caso da Líbia . Carta Internacional, vol.7, n. 1, p.03-19, jan.-jun. 2012.

TIERNEY, Dominic. The Legacy of Obama’s ‘Worst Mistake’: There’s a problem with the American way of war. The Atlantic, 2016. Disponível em: <https://www.theatlantic.com/international/archive/2016/04/obamas-worst-mistake-libya/478461/ >. Acesso em: 09 nov 2020.

UN – United Nations. RESPONSIBILITY TO PROTECT. Disponível em: <https://www.un.org/en/genocideprevention/about-responsibility-to-protect.shtml>. Acesso: 09 nov 2020

WE CAME, we saw, he died: What Hillary Clinton told news reporter moments after hearing of Gaddafi’s death. Daily Mail, 2011. Disponível em: <https://www.dailymail.co.uk/news/article-2051826/We-came-saw-died-What-Hillary-Clinton-told-news-reporter-moments-hearing-Gaddafis-death.html >. Acesso em: 09 nov 2020.

 

[1] Guerra Civil de Ruanda, separação do Kosovo e o Genocídio Étnico nos Bálcãs, especificamente em Srebrenica, na Sérvia

[2] O Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) possui cinco membros permanentes sendo eles: França, Rússia, Reino Unido, China e Estados Unidos. O resto dos membros é rotativo, significando que sua cadeira no Conselho de Segurança é temporária. Curiosamente, no ano em questão (2011) o Brasil era um dos membros rotativos do CSNU e se absteve de votar contra ou a favor de uma intervenção na Líbia.

[3] Significando que é uma organização formada por vários países

Letícia Martins Lima

Internacionalista em formação pela Universidade Federal de Goiás, gosta da área geral de Relações Internacionais, mas tem interesse mais específico nas áreas de Política Internacional e Diplomacia.

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