A MULHER DE PÉS DESCALÇOS E A RUANDA PRÉ-GENOCÍDIO

A MULHER DE PÉS DESCALÇOS E A RUANDA PRÉ-GENOCÍDIO

A Mulher de Pés Descalços é um livro de memórias da escritora ruandesa Scholastique Mukasonga em homenagem à sua mãe, Stefania. A obra tem como foco os momentos sociais de uma comunidade ruandesa alocada em Uganda por conta do genocídio. Assim, as palavras da autora exprimem com pesar a saudade do país e as consequências do massacre tanto na população quanto na cultura. Além disso, a visão de uma mulher durante o genocídio deixa a escrita ao mesmo tempo cruel e suave.

“Eles não miravam no coração, repetia minha mãe, e sim nos seios, somente nos seios. Eles queriam dizer a nós, mulheres tutsis: ‘Não deem vida a mais ninguém, pois, na verdade, se colocarem mais alguém no mundo, vocês vão acabar trazendo a morte. Vocês não são mais portadoras da vida, são portadoras da morte'”.

A Mulher dos Pés Descalços, Scholastique Mukasonga.

Contexto

Ruanda é um pequeno país da África Oriental, cuja população era majoritariamente constituída de duas etnias: tutsis e hutus. A maioria da população fazia parte do segundo grupo, entretanto, por causa de um passado colonial, os tutsis eram política e economicamente dominantes. Inicialmente os dois povos viviam em paz. E isso durou até o domínio belga se instaurar no país, durante o século XX, e incitar rixas entre eles. Os motivos tinham como base as características físicas dos tutsis, que eram consideradas “mais finas” e “mais brancas”, de acordo com Philip Gourevitch. Seu livro, “Desejamos Informá-lo de que Amanhã Seremos Mortos com Nossas Famílias”, retrata a influência belga no processo de genocídio.

Os brancos jogaram em cima dos tutsis os monstros famintos de seus próprios pesadelos. Eles nos ofereceram espelhos que distorciam a farsa deles e, em nome da ciência e da religião, nós tínhamos que nos reconhecer nesse duplo perverso nascido de seus fantasmas.

A Mulher dos Pés Descalços, Scholastique Mukasonga.

O genocídio

Com anos e anos de tensão se amontoando, desde conflitos nas décadas de 50, 60, 70 e 80, tudo apontava para um momento final de tragédia. Em 1994, o genocídio aconteceu. As milícias hutus mataram mais de 800 mil tutsis em um intervalo de 100 dias. Além disso, e os conflitos posteriores para o apaziguamento fizeram o número de mortos se aproximar de 1 milhão. As violências cometidas não se resumiram a chacinas, mas ao desrespeito dos direitos humanos básicos, dos refugiados, das mulheres e crianças.

Por exemplo, uma das mais cruéis forma de estratégia foi a do estupro como tática de guerra. “Quase todos os estupradores eram portadores do vírus HIV” (p. 118). Essa “estratégia” foi utilizada porque a mulher tinha uma parte essencial na comunidade ruandesa, e a violência sexual se configurava como uma forma de manchar a imagem das vítimas. Além disso, o estupro é um tabu dentro de Ruanda, e as vítimas muitas vezes sofriam caladas ou eram excluídas do seu círculo social. Outro fator era a característica “inalcançável” da mulher tutsi. Acreditava-se que eram mais doces e amáveis que as hutus, mais uma vez devido aos preconceitos criados entre as etnias.

A voz de Mukasonga sobre o estupro como tática de guerra

Mas o que fazer com esses costumes quando suas filhas são vítimas dos jovens do partido único que aprenderam que o estupro de moças tutsis é um ato revolucionário, um direito adquirido pelo povo majoritário? Quem suportará o peso esmagador da desgraça que, em vão, se tenta esconder: a menina-mãe, que se torna uma maldição viva, de quem todos querem fugir e que afunda na solidão do desespero? A família que fica remoendo o remorso de não ter podido proteger os seus e que se vê posta de lado, por prudência, por todo o vilarejo? E quais desgraças trará esse filho, filho nascido de tanto ódio?

[…]

Nem toda água seria suficiente para limpar os rumores que corriam dizendo que essas mulheres eram portadoras da morte e fazendo com que todos as rejeitassem. Contudo, foi nelas, nelas próprias e nos filhos nascidos do estupro que essas mulheres encontraram força para sobreviver e desafiar o projeto de seus assassinos. A Ruanda de hoje é o país das Mães-coragem.

A Mulher de Pés Descalços, Scholastique Mukasonga.

A mulher na sociedade ruandesa

O papel feminino dentro da cultura de Ruanda era extenso. Além de serem objeto de respeito, por fazer parte fundamental na família, as mulheres eram vistas como portadoras da vida e como pessoas trabalhadoras. “O que se esperava de uma boa esposa era sua força de trabalho; pois sobre ela recairia a necessidade de cultivar o campo para alimentar a família […]”.

É desse pensamento que surge o título do livro. As mulheres, desde pequenas, andavam descalças, e os pés de uma ruandesa eram marcados pelo trabalho duro. Algo assim representava a postura firme e trabalhadora de uma jovem mulher, pronta para se casar.

Mas talvez agora eu possa beijar os pés de Haute-Volta e, certamente, os da minha mãe, os pés dessas Amas de leite que têm a África como filho.

A Mulher dos Pés Descalços, Scholastique Mukasonga.

A obra

A escrita de Scholastique é hipnotizante e certeira ao falar sobre seu povo. Todos os detalhes foram bem pensados para estar ali, modelando um livro sobre a etnia que foi dizimada. Também, a autora não esconde a saudade que sente da terra natal, e mostra o ponto de vista de quem o tempo calou.

Os detalhes sobre as religiões de Ruanda também são extasiantes. Conhecer um pouco de divindades relativamente desconhecidas é algo que deve ser mais valorizado. Além disso tudo, momentos únicos marcam as lembranças de uma jovem sobre seu país, algo que nos prende do início ao fim do livro.

A Mulher dos Pés Descalços traz relatos de uma jovem que viu seu mundo cair. De uma menina cuja mãe é o ser mais forte do universo. De uma mulher cuja dor é inimaginável. É uma obra que marca a memória do leitor, ansiando por lembrá-lo do que aconteceu e da justiça que ainda não foi feita. De uma Ruanda que cresce sobre as lágrimas da Lua.

E me parecia que, se eu pudesse chegar mais perto dos pés da Haute-Volta, também poderia ler as idades do mundo e remontar, de geração em geração, até chegar à mulher que foi a primeira que, com as costas encurvadas e uma enxada nas mãos, abriu a terra vermelha da África.

A Mulher dos Pés Descalços, Scholastique Mukasonga.

Talita Soares

Formada em RI pela UFG, leitora nas horas vagas.

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