O CINTURÃO DE SAHEL COMO BERÇO DOS CONFLITOS ARMADOS NA ÁFRICA?

O CINTURÃO DE SAHEL COMO BERÇO DOS CONFLITOS ARMADOS NA ÁFRICA?

fonte: Dar Sila/Flickr

A região do Sahel (do árabe سَاحِل‎, sāḥil, “costa’’) é uma área de mais de 5 mil Km que se estende da costa oeste do continente Africano à costa leste (Imagem 1). Composta por aproximadamente 10 países, o cinturão, como é conhecido, delimita um local de transição geográfica entre o deserto do Saara e a região das Savanas. Além disso, o Sahel também divide o continente em dois, o Norte, majoritariamente árabe, e a África Subsaariana, marcada pela imensa diversidade étnica e religiosa.

Imagem 1 – Países que abrangem a região do Sahel

Fonte: DW

Atualmente, os países que compõem o Sahel estão imersos em diversas crises causadas por fatores como aquecimento global, conflitos étnicos e ameaça terrorista. Por causa disso, o local está entre as regiões que mais geraram deslocados nos últimos anos. Segundo as Nações Unidas, só em 2019, mais 330 mil pessoas foram obrigadas a abandonar suas casas em decorrência da fome e da violência. Desde então, a área já gerou, aproximadamente, 100 mil novos refugiados.[1]

Construção da instabilidade política na região

De acordo com Diallo (2021, p. 267) “o Sahel é uma região de instabilidade política, caracterizada por guerras civis, conflitos internos e interestatais, com instabilidades econômicas que se materializaram devido a várias formas de predação dos recursos naturais.” Durante o período colonial a região foi dividida, majoritariamente, entre três Estados; Grã-Bretanha (Sudão, Sudão do Sul e Nigéria), França (Mauritânia, Senegal, Burkina Faso, Mali, Níger e Chad) e Itália (Eritréia, Etiópia e Somália) (OCI, 2021).

Harmon (2016) argumenta que, embora haja muitos grupos étnicos nos países que compõem a região, quatro etnias dominaram o local; tuaregues, Árabes, Fulbe e Songhai. A diferenciação entre esses grupos era geralmente determinada, entre eles, mediante os estilos de vida: alguns ocupavam as cidades, como os árabes, enquanto outros realizavam atividades pastorais, dentre os quais os Fulbes.

Durante a colonização, como explica Harmon (2016, p. 6, tradução minha), todos esses grupos foram intencionalmente divididos por classe, por especialização profissional, por raça ou por percepções de raça. Os árabes, Tuaregue, Fulbe e Songhai criaram hierarquias internas e se subdividiram entre: nobres, livres e servos. “Os grupos de estatuto servil eram tipicamente considerados não só socialmente distintos das linhagens livres e nobres, mas também racialmente distintos, sendo os grupos de estatuto servil considerados como ‘negros’ e os grupos de estatuto livre e nobre considerados como ‘brancos’ ou ‘não negros.”

Entretanto, vale ressaltar, a eclosão dos processos de independência dos países do Sahel, a partir dos anos 1960, não pôs fim a problemática étnica, pelo contrário. Os novos Estados mantiveram as divisões coloniais, favorecendo alguns grupos em detrimento de outros, em especial aqueles que habitavam as áreas urbanas. Diante desse modelo de administração, focado nas capitais, as áreas rurais mais afastadas de diversos territórios do Sahel foram abandonadas pelo governo, fator que facilitou a ascensão de grupos insurgentes.

No Mali, por exemplo, o nível de vida dos produtores de algodão do sudeste é muito mais elevado do que o dos pequenos agricultores do norte. Sempre que todas as atividades econômicas modernas se concentram numa parte de um país e o resto do país quase não muda, desenvolve-se um fosso na distribuição de recursos entre as duas regiões. Em si mesmo, isto não conduz geralmente a conflitos, mas irá certamente agravar quaisquer conflitos que surjam por outras razões (AZAM et. al, 1999, p. 20-21, tradução minha).

Azam et. al (1999) exemplifica essa questão através do exemplo dos nômades tuaregues  (nome que em árabe significa “abandonados pelos deuses”) no Mali e no Níger. O autor expõe que essa etnia sofreu com um extenso processo de discriminação. Pelo fato de historicamente ocuparem áreas mais rurais, esse e outros grupos não urbanos, vivenciam uma política governamental excludente cujo os investimentos se limitam às zonas urbanas.

[…]as populações rurais são fortemente tributadas, particularmente através de taxas não orçamentais, enquanto as populações urbanas são fortemente favorecidas na distribuição dos serviços públicos.” Este enviesamento explica-se pelo fato de os residentes urbanos poderem mostrar muito mais facilmente o seu descontentamento[…]. Através deste poder negocial, as famílias urbanas obrigam o governo a gastar muito mais com elas do que com a população rural[…]. Por exemplo, a maior parte das despesas de saúde e educação concentra-se geralmente nas cidades (AZAM et. al, 1999, p.22, tradução minha).

Esse constante desacordo entre o governo e uma parcela da população, no que tange às políticas orçamentárias e as desigualdades na distribuição de renda entre diferentes etnias, pode ser considerado um importante motivador da instabilidade étnica e política na região. O fato de determinados grupos terem mais poder políticos que outros, além de permitir a manutenção dessas políticas discriminatórias, gera constantes confrontos civis.

Os tuaregues, por exemplo, estão por trás de diversos movimentos revolucionários no Mali e Níger. Segundo Azam (1999), a etnia foi marginalizada, ao longo do processo de independência dos Estados do Sahel, e acabou dividida entre vários Estados (Argélia, Níger, Mali, Burkina Faso e Líbia) no decorrer das negociações da Conferência de Berlim (1884-1885).[2] O fato de não terem um Estado os coloca em constante conflito com as demais etnias. Em Mali foram excluídos de cargos políticos e do serviço público. No Níger eram precariamente representados na política pelo fato de poucos terem acesso à educação.

Esta discriminação era agravada por fatores exógenos de conflito. Uma série de secas excepcionalmente severas levou a grandes perdas de gado que arruinaram muitos tuaregues e os deixaram sem ocupação. Muitos tiveram que migrar para os países vizinhos, e alguns dos jovens foram recrutados pela Legião Islâmica de Muammar al-Gaddafi. Esses homens foram doutrinados, sendo ensinados a rejeitar os chefes hereditários e a combater os governos que excluíam o povo tuaregue da sociedade. […] Assim, todos os fatores de conflito, econômicos e não econômicos, se combinaram para produzir essas rebeliões (AZAM, 1999, p. 14, tradução minha).

Entre 1916 e 1917, os tuaregues organizaram uma rebelião contra o colonialismo francês. Entre 1961 e 1964, se colocaram contra as reformas agrárias do governo do Mali. Nos anos 90 eles criaram o Movimento Popular para a Libertação de Azawad (MPLA) no país, de natureza secular-nacionalista, que fazia parte de um agrupamento de cúpula chamado MUFA. Este incluiu a Frente Islâmica Armada de Azawad (FIAA), uma facção de árabes e mouros intimamente ligados à Argélia e Mauritânia (HARMON, 2016).

Eles desejavam essencialmente libertar as três províncias do norte do Mali – Timbuktu, Kidal, e Gao – e formar um estado tuaregue independente de Azawad. É importante notar que as tribos tuaregues no Sahel não estão de modo algum unificadas; na realidade, têm lutado historicamente umas contra as outras com frequência. No entanto, nos últimos anos, tem havido um sentimento crescente de uma identidade nacional tuaregue, algo que o MNLA procura explorar. Embora inicialmente bem sucedidos no encaminhamento do Exército Maliano e no destacamento de Azawad do sul do Mali, eles acabaram deslocados por grupos islâmicos mais radicais como Ansar Dine e AQIM (SHAW, 2013, p. 202, tradução minha).

Como exposto, o MNLA acabou perdendo espaço para outro grupo revolucionário Tuaregue o  Ansar Dine (“defensores da fé”). Tal grupo é uma ramificação salafista[3] do MNLA e foi criado pelo notável comandante Tuaregue Iyad Ag Ghali, um dos líderes da rebelião dos anos 90. O que chama atenção no Ansar Dine é sua estreita relação com o grupo Al Qaeda no Magrebe Islâmico (AQIM) (SHAW, 2013). Tal questão é a peça chave para entender o porque a região do Sahel se tornou o “berço” do jihadismo na África.

O crescimento do terrorismo

A partir do exposto, destaca-se que a crise dos anos 90 em Mali foi essencial para o processo de penetração de grupos terroristas no Sahel.  Esses atores passaram a ocupar o espaço deixado pelo Estado em diversos países a partir da construção de uma “governança jihadista baseada na prestação de serviços públicos básicos como o controle espacial, justiça, saúde e educação, tudo de acordo com a sua interpretação literalista do Islã” (BALDARO, 2020, p. 8, tradução minha).

Na região do Sahel, dois grupos terroristas são relevantes: AQIM e Boko Haram (na Nigéria). A AQIM (Al-Qaeda no Magrebe Islâmico) está sediada na Argélia desde a guerra civil (1991/1992), considerando que alguns dos seus líderes eram radicais da Frente de Salvação Islâmica (ISF). A estratégia do Grupo Salafista de Pregação e Combate (SGPC), que foi o predecessor da AQIM, fundada em 2007, é criar uma rede que espalhe retórica extremista a nível local e global (GALITO, 2012, p. 145, tradução minha).

Dado o pressuposto, tem-se que a instabilidade socioeconômica e política são importantes preditores da atividade jihadista no Sahel Ocidental. A situação se tornou ainda mais grave mediante a eclosão da Primavera Árabe. O evento, que provocou a queda de diversos governos na África e no Oriente Médio, elevou a instabilidade nessas regiões, o que facilitou a ascensão de grupos insurgentes e terroristas. A AQIM, por exemplo, se beneficiou do fluxo de armas e soldados da Líbia, após a queda do regime de Gaddafi em 2011. Fator que ampliou o controle do grupo sobre regiões como Mali, Argélia e Mauritânia.

A instabilidade resulta principalmente da manipulação de conflitos internos por parte de grupos terroristas. Estes grupos são frequentemente financiados e controlados a partir do estrangeiro. Tanto os civis como os guerrilheiros são altamente manipulados por criminosos maliciosos que só aparentemente se preocupam com a pobreza ou a justiça das reivindicações de independência, mas estão bastante mais interessados em utilizá-los para os seus próprios interesses, muitas vezes econômicos (GALITO, 2012, p. 147, tradução minha).

Na crise política que se seguiu, junto com o colapso do exército, os separatistas tuaregues declararam a independência de Azawad, em abril de 2012. Entretanto, alguns meses depois, a rebelião tomou novos rumos quando AIQM e o Ansar Dine – jihadistas que lutaram junto com MNLA – deram um golpe no grupo e assumiram o controle das cidades conquistadas no norte de Mali, criando, assim, a República Islâmica de Azawad (ISPI, 2021).

A partir daí, eles lutaram para eliminar impostos, alfândegas e registros de terras, além de substituírem as leis civis de inspiração francesa pela lei da sharia. Tal questão, além de ser uma forma de marcarem seus territórios, facilitou que tais grupos ganhassem apoio entre alguns comerciantes e produtores rurais. O fato de o governo local não conseguir conter a ofensiva acarretou um golpe de estado que depôs o presidente Amadou Toumani Touré (ISPI, 2021).

O contra-terrorismo no Sahel

Diante do cenário exposto, preocupada a possibilidade de expansão da ameaça jihadista para o sul do país, a França lançou a Operação Serval, em janeiro de 2013, o objetivo da missão era limpar o norte de Mali e conter a insurgência. A partir daí surgiram outras mediadas contra-terroristas para conter o avanço jihadista no Sahel. Em julho de 2013, foi lançada a  Missão de Estabilização Integrada Multidimensional da ONU no Mali (MINUSMA), responsável pelo envio de quase 12.000 soldados para auxiliar no processo de paz na região. O acordo foi selado em 2015 (ISPI, 2021).

Após a insurgência islâmica, a França organizou a Operação Barkhane, e mantém tropas em Mali desde 2014. No mesmo ano, Burkina Faso, Chade, Mali, Mauritânia e Níger organizaram o Grupo dos Cinco de Sahel (G5 Sahel) uma organização regional, intergovernamental, cujo o objetivo é promover o desenvolvimento e a segurança nos seus cinco países membros (INTERPOL, 2021).

Imagem 2 – G5 Sahel

Fonte: Interpol, 2021[4]

Contudo, as medidas escolhidas até agora para tentar conter o avanço jihadista pelo Sahel não surtiram efeito desejado. Em 2019, mais de 3.300 escolas foram fechadas, em  Burkina Faso, Mali e Níger, privando quase 650.000 crianças de acesso à educação – isso antes mesmo da pandemia do coronavírus exigir o fechamento do restante (ACNUR, 2020).[5]

Em agosto de 2014, a operação Serval foi regionalizada, através de sua sucessora Operação Barkhane, para incluir operações militares de contra-terrorismo em todos os países do G-51 Sahel. As atividades antiterroristas dos franceses são apoiadas pela cooperação logística militar americana, que inclui a vigilância por aeronaves, além da cooperação militar bilateral com tropas canadenses e europeias para treinar e equipar as forças armadas malinesas e nigerianas. Estas tendências indicam um aumento da militarização no Sahel. De fato, as tropas francesas têm argumentado que seu papel no Sahel é “cortar a grama” – para caçar e matar terroristas – destacando as mentalidades que patrocinam o recurso à ação coercitiva violenta (FROWD e SANDOR, 2018, p. 7, tradução minha).

Além disso, segundo o relatório do Secretário-Geral da Nações Unidas (Documento S/2020/585), facções de Boko Haram, em especial a chamada Província da África Ocidental do Estado Islâmico e a Jama’atu Ahlis Sunna Lidda’Awati Wal-Jihad (JAS), continuam ameaçar a segurança no nordeste da Nigéria. Ademais, em 2020, coordenaram ataques que mataram pelo menos 47 soldados nigerianos na aldeia de Gorgi e cerca de 98 soldados chadianos na ilha de Boma, na bacia do Lago Chade.

No mesmo ano, somente em Burkina Faso, o número de deslocados internamente aumentou cinco vezes, chegando a 921.000, o que corresponde a um aumento de 92% em relação aos números de 2019. No Mali, quase 240.000 pessoas estão deslocadas internamente, das quais 54% são mulheres. No Níger, 489.000 pessoas foram forçadas a fugir, incluindo refugiados vindos do Mali. [6]

Em relação ao Índice de Terrorismo Global (ITG)[7] – avaliado pelo Instituto de Economia e Paz – os três países listados acima apresentaram, desde de 2014, um significativo aumento de eventos relacionados com atividades terroristas. Em 2014, Mali apresentava um índice de 5.03 (escala de 10); Níger, 3.20 e Burkina Faso, 0.30. Em 2020, o índice de terrorismo em Mali foi para 7.20; Níger, 5.62 e Burkina Faso, 6.75.[8]


NOTAS

[1] ONU. Instabilidade no Sahel gerou cinco vezes mais deslocados no último ano. 2019. Disponível em: < https://news.un.org/pt/story/2019/05/1671452>

[2] Conferência que “dividiu” o continente africano entre as potências europeias, durante o período de exploração colonial, definindo as fronteiras territoriais atuais.

[3] Movimento fundamentalista ortodoxo dentro do islamismo sunita

[4] Disponível em: <” target=”_blank” aria-label=” (opens in a new tab)” rel=”noreferrer noopener” class=”ek-link”>https://www.interpol.int/es/Delitos/Terrorismo/Proyectos-de-lucha-contra-el-terrorismo/G5-Sahel>

[5] Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/2020/09/08/conflito-armado-ameaca-escolas-na-regiao-do-sahel/>

[6] Disponível em: <https://www.un.org/press/en/2020/sc14245.doc.htm>

[7] ITG é uma medida composta por quatro indicadores: incidentes, mortos, feridos e danos materiais. Para medir o impacto do terrorismo, é aplicada uma média ponderada de cinco anos.

[8] Disponível em: <https://www.visionofhumanity.org/maps/global-terrorism-index/#/>

BIBLIOGRAFIA

AZAM, Jean-Paul et. al. Conflict and Growth in Africa: Vol. 1: the Sahel. OECD, 1999.

BALDARO, Edoardo. Rashomon in the Sahel: Conflict dynamics of security regionalism. Security Dialogue, v. 52, n. 3, p. 266-283, 2021.

DIALLO, Mamadou Alpha. Guerra e conflito no Sahel africano, fruto da histórica e. guerra e conflito no sahel africano, fruto da histórica e permanente guerra entre dois impérios: império árabe-islâmico e império ocidental. Revista Brasileira de Estratégia e Relações Interacionais Brazilian Journal of Strategy & International Relations, p. 261.

FROWD, Philippe M.; SANDOR, Adam J. Militarism and its limits: Sociological insights on security assemblages in the Sahel. Security Dialogue, v. 49, n. 1-2, p. 70-82, 2018.

GALITO, Maria Sousa. Terrorism, ethnicity and Islamic extremism in Sahel. JANUS. NET, v. 3, n. 2, p. 139-152, 2012.

HARMON, Stephen A. Terror and insurgency in the Sahara-Sahel region: corruption, contraband, jihad and the Mali war of 2012-2013. Routledge, 2016.

ISPI. In the Sahel, 20 Years of War on Terror Has Created More and Stronger Enemies. 2021. Disponível em: https://www.ispionline.it/en/pubblicazione/sahel-20-years-war-terror-has-created-more-and-stronger-enemies-31617

ITERPOL. G5 Sahel. 2021. Disponível em: https://www.interpol.int/es/Delitos/Terrorismo/Proyectos-de-lucha-contra-el-terrorismo/G5-Sahel

SHAW, Scott. Fallout in the Sahel: the geographic spread of conflict from Libya to Mali. Canadian Foreign Policy Journal, v. 19, n. 2, p. 199-210, 2013.


Anna Clara Oliveira

Estudante do 7ºperíodo de Relações Internacionais na Universidade Federal de Goiás e pesquisadora no programa de iniciação científica sobre milícias brasileiras, crime organizado transnacional e assemblages globais da segurança.

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