Canadá: a identidade nacional no multicultural?

Canadá: a identidade nacional no multicultural?

O presente artigo tem por objetivo analisar as implicações no que diz respeito ao modelo político canadense pautado no multiculturalismo. A análise partirá de sua instauração oficial por meio do Canadian Multiculturalism Act em 1988 e suas respectivas consequências a partir deste.

A história da colonização do Canadá resultou em uma sociedade multicultural por si só, na qual foi constituída por três povos fundadores: os aborígenes, franceses e britânicos. Os colonizadores franceses e britânicos começaram a chegar no início dos anos 1600. Na virada do século XX, os imigrantes de outros países europeus passaram a compor o país. Em termos percentuais, o fluxo de imigração atingiu o pico em 1912 e 1913, quando as chegadas anuais ultrapassam 5% da população total. Desde então, a proporção da população nascida fora do país vem aumentando desde o início da década de 1950.

No início do século XXI, a proporção de pessoas com origens étnicas britânicas, francesas e/ou canadenses caiu para abaixo da metade da população total (46%). Uma pesquisa de diversidade étnica publicada por Statistics Canada em 2003, mostrou que 21% da população se declarava como de ascendência britânica, enquanto 10% relataram apenas origens francesas, 8% eram canadenses e 7% eram uma mistura destas três origens. Esse aumento da diversidade foi evidente no levantamento nacional de 2011, em que foram relatadas mais de 200 origens étnicas diferentes e também foi descoberto que 20,6% da população nasceu fora do Canadá – a maior proporção em 80 anos – e que o maior número de imigrantes era da Ásia. A população das minorias visíveis representou 19,1% da população contra 4,7% em 1981.

Onde entra o Canadian Multiculturalism Act nessa história?

Voltada à preservação e aprimoramento do multiculturalismo no Canadá, a Lei busca auxiliar na preservação da cultura e do idioma, reduzir a discriminação, aumentar a conscientização e a compreensão cultural e promover mudanças institucionais culturalmente sensíveis a nível federal. A Lei reconheceu a necessidade de aumentar a participação das minorias nas principais instituições do Canadá, trazendo a diversidade para essas instituições como um componente natural, normal e positivo da tomada de decisões, da alocação de recursos e da definição de prioridades.

De acordo com o ato, todas as agências governamentais, departamentos e corporações da Coroa – não apenas o ministério responsável pelo multiculturalismo – deveriam liderar o avanço da combinação multicultural do Canadá e participar do projeto e implementação de planos, programas, procedimentos e estratégias de tomada de decisão que melhorem a participação plena e igualitária das minorias nas estruturas institucionais.

No entanto, e se o uso do multiculturalismo como promotor da homogeneização cultural pudesse estar levando a criação de um nacionalismo reivindicatório? Lançado o questionamento, passo a analisar o crescimento de recentes ondas de racismo e xenofobia no país. Algumas dessas situações podem funcionar a você, caro leitor, como um termômetro para essa análise.

Segundo a BBC News em  matéria divulgada em outubro de 2016, uma movimentação associada a membros da Ku Klux Klan, pacotes de panfletos defendendo a supremacia branca e atacando uma minoria específica foram disseminados na província de British Columbia. Em junho de 2017, dessa vez na província de Ontário, uma mulher causa agitação em um hospital na cidade de Mississauga exigindo por um médico ‘branco’ e ‘canadense’ para que atenda seu filho, apresentando como justificativa seu direito intrínseco como ‘cidadã canadense’. Em julho de 2019, segundo relato divulgado pelo jornal de Brasília, uma brasileira é agredida em ônibus em Vancouver por estar supostamente falando em português com um grupo de adolescentes.

Ora, se o multiculturalismo se torna responsável pela promoção do Estado canadense, nos presentes casos, não consegue plenitude de seus efeitos. Parte da resposta para essa questão pode ser encontrada no diálogo e extensão das definições do multiculturalismo. Segundo Stuart Hall, teórico cultural e sociólogo britânico-jamaicano:

Na verdade, o “multiculturalismo” não é uma única doutrina, não caracteriza uma estratégia política e não representa um estado de coisas já alcançado. Não é uma forma disfarçada de endossar algum estado ideal ou utópico. Descreve uma série de processos e estratégias políticas sempre inacabados. Assim como há distintas sociedades multiculturais, assim também há “multiculturalismos” bastante diversos. (Hall, S. A questão Multicultural, 2000)

O curioso do caso canadense é que o Estado infunde duas definições complexas de processos, sendo assim, inacabados: o multiculturalismo e a construção da nacionalidade, e a condição nacional. Esses processos, por si só, já são produtos culturais específicos, de modo que para entender sua formação se faz necessária a compreensão da origem histórica, a maneira em que seus significados se transformam com o tempo e o porquê de uma legitimidade emocional profunda.

Sendo assim, o mix de conceitos na formação nacional resulta no surgimento de um ‘nacionalismo como destino dos excluídos’ (HALL) , onde o grupo minoritário se inverteu e começam a ter a consciência da homogeneização cultural passando a reedificar sua identidade nacional. Analisando esse processo é como se  ficasse evidente a nossa absoluta capacidade de inverter conceitos que poderiam ser extremamente benéficos para  subprodutos refletidos na xenofobia, racismo ou qualquer outro processo discriminatório.

Ao fim, deixo a reflexão de Benedict Anderson sobre a construção do sentimento nacional:

“Ela [a nação] é imaginada porque mesmo que os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrarão, ou sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles” (ANDERSON, Benedict Comunidades Imaginadas, 1983).

Nós nos perdemos tanto em nossas próprias construções.

 

Referências

ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das letras, 2008.

ARENDT, H. Origens do Totalitarismo. Schocken Books , 1951.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 10a Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

BRETON, Raymond. Ethnic Relations in Canada: Institutional Dynamics. McGill-Queen’sUniversity Press, Montréal, 2005.

BURKE, Peter. Hibridismo Cultura. São Leopoldo. Editora Unisinos, 2003.

CANADÁ. Canadian Human Rights Foundation. Multiculturalism and the Charter. Carswell,Toronto, 1987.

_________. House of Commons, Standing Committee on Multiculturalism. Multiculturalism: Building the Canadian Mosaic. Supply and Services.  Canada, Ottawa, 1987.

DRIEDGER, Leo, ed. Ethnic Canada: Identities and Inequalities. Copp Clark Pitman,Toronto, 1987.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2000.

JORNAL DE BRASÍLIA. Mulher ataca brasileiras que falam português no Canadá. 22/07/2019  disponivel em <https://jornaldebrasilia.com.br/mundo/mulher-ataca-brasileiras-que-falavam-portugues-em-coletivo-no-canada/> Acesso em 05/08/2020.

KYMLICKA, Will. Finding Our Way: Rethinking Ethnocultural Relations in Canada. Oxford University Press, Don Mills, 1998.

MURPHY, Jessica. O silencioso e inquietante crescimento de grupos racistas e xenófobos no Canadá. BBC , Toronto, 18 out. 2016. Disponível em:<http://www.bbc.com/portuguese/internacional-37698630&gt > Acesso em: 05/08/2020.

THUNDER SHARE. Racist Woman yelling and demanding to see a white doctor born in Canada. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=Zl5JKDIlsbU >. Acesso em: 05/08/2020.

Marcos Souza

Diretor de Conteúdo do Dois Níveis Graduando em Relações Internacionais (UFG)

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