GUARDIÕES DA GALÁXIA 3  E A REALIDADE AMERICANA SOBRE OS DIREITOS ANIMAIS

GUARDIÕES DA GALÁXIA 3  E A REALIDADE AMERICANA SOBRE OS DIREITOS ANIMAIS

No universo cinematográfico de Guardiões da Galáxia, um grupo de super-heróis desajustados se une para proteger o universo de ameaças perigosas. O filme de volume 3 da franquia, lançado em abril de 2023, leva essa equipe a correr contra o tempo para salvar um de seus companheiros do dispositivo mortal do Alto Evolucionário — o vilão da história. 

Enquanto esteve entre a vida e a morte, Rocket, um guaxinim geneticamente modificado e especialista em armas e estratégias de combate, recorda-se de momentos conturbados do seu passado, como ter sido submetido a testes de laboratórios, antes de fazer parte  do grupo de guerreiros intergalácticos. As habilidades especiais que ele possui foram adquiridas em virtude das torturas cometidas pelo Alto Evolucionário, em seu objetivo de acelerar artificialmente a evolução da humanidade.

A prática monstruosa para a qual o filme chama a atenção acontece com muitos animais fora das telas de cinema. Eles são alvos de indústrias milionárias, que os utilizam para testar os seus produtos. Nos Estados Unidos, o uso de cobaias é amplamente adotado em diversos setores, principalmente farmacêutico, de cosméticos e de pesquisa médica. Tendo isso em vista, o presente artigo busca apresentar as nuances que envolvem a sombria utilização de animais em experimentos no país. 

Aspectos gerais da utilização de animais em testes

A utilização de animais para testes científicos é um assunto complexo e controverso, devido a questões éticas e de bem-estar animal. Estimativas apontam que mais 115 milhões de animais em todo o mundo são utilizados em experimentos de laboratório anualmente (HUMANE SOCIETY INTERNATIONAL, 2012). No entanto, poucos países coletam e divulgam esses dados. Nos Estados Unidos, por exemplo, até 90% dos animais utilizados para esse fim não constam nas estatísticas oficiais (HUMANE SOCIETY INTERNATIONAL, 2012). 

A prática mencionada consiste em submeter animais a procedimentos experimentais com o objetivo de obter informações sobre efeitos de substâncias, desenvolvimento de medicamentos, estudos de doenças e outras investigações científicas. Para essa finalidade, passam por testes de irritação ocular/cutânea, de toxicidade e de comportamento  (CRUELTY FREE INTERNATIONAL, 2021). Diversas espécies são usadas como cobaias de laboratórios; porém, as mais comuns incluem “camundongos, peixes, ratos, coelhos, porquinhos-da-índia, hamsters, animais de fazenda, pássaros, gatos, cachorros, mini-porcos e primatas não humanos (macacos e, em alguns países, chimpanzés)” (HUMANE SOCIETY INTERNATIONAL, 2012, tradução nossa).

“O termo “teste em animais” refere-se a procedimentos realizados em animais vivos para fins de pesquisa em biologia básica e doenças, avaliando a eficácia de novos produtos medicinais e testando a saúde humana e/ou a segurança ambiental de produtos de consumo e da indústria, como cosméticos, produtos de limpeza domésticos, aditivos alimentares, produtos farmacêuticos e industriais/agroquímicos.” (HUMANE SOCIETY INTERNATIONAL, 2012, tradução nossa). 

Existem razões práticas e éticas frequentemente apontadas para o uso de animais em vários segmentos. A semelhança fisiológica e genética que eles possuem com os seres humanos é uma das principais, o que permite obter informações sobre os efeitos da substância e procedimentos em seres vivos. Essa escolha é também justificada pela facilidade encontrada nas práticas de criação e manejo das espécies, como é o caso dos roedores (FERNANDES, PEDROSO, 2017). Por fim, questões de segurança e eficácia de produtos e medicamentos são levantadas para a realização dessa prática. O livro“Use of Laboratory Animals in Biomedical and Behavioral Research”, por exemplo, destaca algumas pesquisas importantes para a humanidade que submeteram animais a testes, como o desenvolvimento da vacina da poliomielite, de medicamentos e  transplantes (NATIONAL LIBRARY OF MEDICINE, 1988).  

Todavia, a necessidade e a ética da utilização de animais de laboratório em experimentos são questionadas por diversos autores. Em “Libertação Animal” (2010), o filósofo Peter Singer opõe-se à utilização de animais em experimentos, afirmando que é moralmente indefensável causar maus-tratos e morte a esses seres sencientes em prol dos benefícios humanos. Outro intelectual de destaque nesse contexto é Tom Regan (2004). Para ele, os animais têm direito a serem tratados com consideração moral, e que a utilização deles em testes viola esses direitos fundamentais.

“Consideramos que leões e lobos são selvagens porque eles matam; mas, se não matarem, passam fome. Seres humanos matam outros animais por esporte, para satisfazer a sua curiosidade, para embelezar o seu corpo e para satisfazer seu paladar.” (SINGER, 2013, p. 323).

Nesse contexto, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais (DUDA) desempenha um papel importante ao fornecer uma base ética para a proteção e o bem-estar dos animais. A DUDA, adotada pela UNESCO em 1978, estabelece princípios fundamentais que visam garantir que os animais sejam tratados com respeito e consideração. Além disso, o princípio dos 3Rs (Redução, Refinamento e Substituição)[1], proposto pela primeira vez por Russel e Burch (1959), tem sido amplamente adotado como uma abordagem para minimizar o uso de animais em experimentação.

A comunidade científica e a sociedade de modo geral reconhecem a necessidade de buscar alternativas aos testes animais. Recentemente, ocorreu um crescente aumento em investimentos para este objetivo, como testes in vitro, modelos computacionais e simulações.

A realidade dos experimentos com animais nos Estados Unidos

Diferentemente da União Européia, que proibiu o uso de animais em pesquisas e testes, os Estados Unidos lideram as estatísticas no que tange a essa questão. Cerca de 20 milhões de cobaias foram  submetidas a essa finalidade desde 2020 (STATISTA, 2023). Anualmente, mais de 100 milhões de animais sofrem e morrem no país em testes cruéis de produtos químicos, medicamentos, alimentos e cosméticos, bem como para estudos ou apenas curiosidade (PETA, 2021). Como anteriormente mencionado, os números exatos não estão disponíveis. Dessa maneira, camundongos, ratos, pássaros e animais de sangue frio, que respondem por boa parte dos animais utilizados nos laboratórios, não são cobertos minimamente pelas proteções mínimas da Lei de Bem-Estar Animal (Animal Welfare Act – AWA). Desta forma, não são nem contabilizados (PETA, 2021). 

No âmbito regulatório, a Lei de Bem-Estar Animal é a principal referência para as legislações do país que tratam da utilização de animais em pesquisas. Essa lei foi promulgada em 1966 e é administrada pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA). Ela estabelece padrões mínimos de cuidado e tratamento de animais utilizados em pesquisas, abrangendo questões como instalações adequadas, nutrição, saúde, manejo e alívio da dor e sofrimento. No entanto, a Animal Welfare Act possui limitações e desafios em pontos como abrangência, aplicação, padrões de cuidado, incentivo a métodos alternativos e foco real no bem-estar animal. 

Além da AWA, a FDA Modernization Act 2.0, sancionada em dezembro de 2022, é uma importante medida para reduzir os testes em animais. A Lei de Modernização retirou a obrigatoriedade existente desde 1983 da indústria farmacêutica submeter seus medicamentos. Apesar disso, diversas empresas no país continuam a utilizar animais em testes científicos e experimentos como parte de seus processos de desenvolvimento de produtos e pesquisas. 

As indústrias farmacêuticas e cosméticas são os setores que mais conduzem testes com animais. Gigantes como a Pfizer, Johnson & Johnson e Estée Lauder são algumas delas, mas existem mais de 6.200 empresas no banco de dados da PETA — organização não governamental dedicada aos direitos dos animais. Entretanto, um movimento no país ganha força para tentar banir ou reduzir esses testes, impulsionado pela conscientização pública e por regulamentações mais rigorosas. Empresas de cosméticos, como Lush, The Body Shop e Paul Mitchell, têm se comprometido a não realizar testes em animais e buscar alternativas mais éticas para avaliar a segurança de seus produtos.

O retrato dos testes em animais em Guardiões das Galáxias 3

A visibilidade dada para a problemática dos testes em animais em Guardiões das Galáxias: Volume 3 rendeu ao seu diretor e roteirista, James Gunn, o prêmio Not a Number[2] pela “defesa inabalável” dos animais. A organização PETA, que concedeu a honraria, ressaltou que a poderosa mensagem passada pelo filme contra essa prática tão cruel o transforma em “uma obra prima dos direitos animais”. Como visto ao longo deste artigo, a comovente história da origem de Rocket não é mera ficção, pois foi inspirada pelo tormento a que muitos animais em laboratórios estão expostos  há décadas (PETA, 2023). 

Rocket e seus amigos, Lylla (lontra), Teefs (morsa) e Floor (coelho) dão “rosto, nome e personalidade aos milhões de animais vulneráveis que estão passando por experimentos similares neste exato momento”, disse a presidenta da PETA. Os personagens do filme reforçam que animais são seres sencientes e representam  muito mais do que os números grafados em seus corpos[3]. O filme mostra claramente os maus-tratos pelos quais passam. Eles são confinados em gaiolas apertadas, mutilados e forçados a suportar processos dolorosos. Em uma das cenas, Rocket é amarrado a um dispositivo de contenção, enquanto os cientistas do Alto Revolucionário o utilizam para fazer experimentos. A máquina em questão é semelhante à usada em laboratórios para conter primatas (PETA, 2023). 

Infelizmente, o guaxinim é exceção, a maioria desses animais, inclusive seus amigos, não resistem a uma vida de dor, solidão e terror. A fala de uma das personagens do longa, Nebulosa, é destacada pela PETA e representa bem a necessidade de pôr fim a essa prática: usar animais em experimentos é “pior do que qualquer coisa que Thanos[4] já fez” (PETA, 2023).  

Conclusão

A utilização de animais em testes científicos é um tema complexo que envolve considerações éticas, avanços científicos e a busca por alternativas mais humanitárias. Embora os testes em animais tenham contribuído para importantes avanços médicos e científicos ao longo dos anos, é essencial continuar explorando e desenvolvendo alternativas para reduzir a dependência dessas práticas, sobretudo nos Estados Unidos, onde a maior parte dos experimentos em animais são realizados. Nesse sentido, Guardiões das Galáxias 3, ao dar voz e chamar a atenção para essa causa, mostra que um planeta perfeito como o Alto Evolucionário pretendia construir não faz sentido se os animais tiverem de sacrificar a própria vida. 


[1]  Replacement, Reduction, Refinement, em inglês 

[2] Concedido ao melhor filme de direitos dos animais do ano

[3]  “Os animais recebem números de identificação, como 89P13, em vez de nomes.” (PETA, 2023). 

[4] Thanos é um supervilão do Universo Marvel, cujo objetivo é obter todas as Joias do Infinito para eliminar metade da vida no universo e equilibrá-lo. 


REFERÊNCIAS 

CRUELTY FREE INTERNATIONAL. What is animal testing? 2021. Disponível em: https://crueltyfreeinternational.org/about-animal-testing/what-animal-testing. Acesso em: 08 mai. 2023.

ESTADOS UNIDOS. Animal Welfare Act. Public Law 89-544. 24 de agosto de 1966. Disponível em: https://www.govinfo.gov/content/pkg/COMPS-10262/pdf/COMPS-10262.pdf. Acesso em: 17 mai. 2023. 

FERNANDES, Marcos Rassi; PEDROSO, Aline Ribeiro. Animal experimentation: A look into ethics, welfare and alternative methods. Revista da Associação Médica Brasileira, v. 63, p. 923-928, 2017.

HUMANE SOCIETY INTERNATIONAL. About Animal Testing. 2012. Disponível em: https://www.hsi.org/news-resources/about/. Acesso em: 8 mai. 2023.

NUNES, Mônica. ‘Guardiões da Galáxia 3’ é premiado por ativismo animal ao expor efeitos dos testes em laboratório. 2023. Disponível em: https://conexaoplaneta.com.br/blog/guardioes-da-galaxia-3-e-premiado-por-ativismo-animal-ao-expor-efeitos-dos-testes-em-laboratorio/#fechar. Acesso em: 26 mai. 2023.

NATIONAL RESEARCH COUNCIL. Benefits Derived from the Use of Animals. In: NATIONAL RESEARCH COUNCIL. Use of Laboratory Animals in Biomedical and Behavioral Research. Estados Unidos: National Research Council, 1988. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK218274/. Acesso em: 10 mai. 2023.

PETA. Companies That Do Test On Animals . 2021. Disponível em: https://crueltyfree.peta.org/companies-do-test/. Acesso em: 25 mai. 2023.

PETA. Facts and Statistics About Animal Testing. 2021. Disponível em: https://www.peta.org/issues/animals-used-for-experimentation/animals-used-experimentation-factsheets/animal-experiments-overview/. Acesso em: 15 mai. 2023.

PETA. Guardians of the Galaxy Vol. 3 Exposes the Reality for Animals in Laboratories. 2023. Disponível em: https://www.peta.org/blog/guardians-of-the-galaxy-vol-3/. Acesso em: 26 maio 2023.

PETA. Help Animals Like Rocket From Guardians of the Galaxy. 2023. Disponível em: https://headlines.peta.org/guardians-of-the-galaxy-vol-3//. Acesso em: 26 mai. 2023.

REGAN, Tom. The Case for Animal Rights. University of California Press, 2004.

RUSSELL, William M.S.; BURCH, Rex L. The Principles of Humane Experimental Technique. London: Methuen, 1959.

SINGER, Peter. Libertação animal: O clássico definitivo sobre o movimento pelos direitos dos animais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

UNESCO. Declaração Universal dos Direitos dos Animais. 1978. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/direitosdosanimais/files/2018/10/DeclaracaoUniversaldosDireitosdosAnimaisBruxelas1978.pdf. Acesso em: 21 mai. 2023.

Giovana Machado

Formada em Relações Internacionais na Universidade Estadual Paulista (UNESP). Tem interesse em Direitos Humanos e Segurança Internacional.

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