QUIRGUISTÃO: O TERRITÓRIO DAS RIVALIDADES ÉTNICAS

QUIRGUISTÃO: O TERRITÓRIO DAS RIVALIDADES ÉTNICAS

QUIRGUISTÃO: O TERRITÓRIO DAS RIVALIDADES ÉTNICAS

 

Há pouco mais de uma década, o Quirguistão foi palco do mais trágico evento da história desse recém independente país centro-asiático. A escalada de violência que ocasionou o conflito interétnico de quirguizes e uzbeques possui raízes antigas e fatores multifacetados oriundos de divisões territoriais impostas pela União Soviética combinadas às peculiaridades regionais, sobretudo as suas características etno-demográficas. Assim sendo, o artigo foi elaborado a fim de mostrar a origem e as nuances desse acontecimento histórico, evitando-se, porém, delinear argumentos que sejam contraproducentes para ambos os lados. 

Geografia do conflito 

Se estendendo entre o Uzbequistão, Tajiquistão e Quirguistão em aproximadamente 22.000 km² e delimitado por altas cadeias de montanhas está o Vale de Fergana – o coração histórico da Ásia Central. Essa região é caracterizada por divisões étnicas, culturais e políticas entre esses três países, tornando-se há pouco tempo um dos lugares mais voláteis do mundo, como se observou na cidade de Osh, em 1990 e 2010, conforme será exposto posteriormente. Além disso, a presença de outros fatores contribuem também para a instabilidade do local, entre eles a falta de fronteiras bem demarcadas, extremismo religioso, problemas socioeconômicos e ambientais, enclaves[1] e exclaves[2], bem como a ampliação da corrupção e de redes criminosas  (BORTHAKUR, 2017). 

Figura 1: Mapa da área no entorno do Vale de Fergana 

FONTE: WIKIMEDIAS, 2012

A controversa divisão territorial imposta pela União Soviética

A demarcação de fronteiras no Vale de Fergana foi e continua sendo uma problemática na Ásia Central em virtude da coexistência de diversos grupos étnicos no local. As fronteiras dessa região foram desenhadas e redesenhadas pela União Soviética nas décadas de 1920, 1930 e 1950, a partir da estratégia de ‘dividir para governar’, com o objetivo de impedir a coesão econômica, política, cultural e étnica através da adoção de divisas mal definidas e inadequadas às realidades locais do território (MAMATOVA, 2018, p. 3). 

Dessa maneira, Fergana, que é uma das regiões agrícolas mais férteis do mundo por ser cercada e alimentada por geleiras e montanhas, foi repartida arbitrariamente com linhas que agruparam diferentes etnias e unidades econômicas naturais, minando o enorme potencial da região com desconfiança e hostilidade, impedindo, segundo os objetivos dos soviéticos, que movimentos nacionalistas se fortalecessem por lá (BRUIJN, 2011, p.29). 

A cidade de Osh, localizada no Vale, foi palco de dois conflitos étnicos entre quirguizes e uzbeques e é o exemplo mais evidente dessa sobreposição de identidades étnicas, pois era inicialmente habitada por uzbeques. Porém, após as divisões territoriais se tornou parte do território do Quirguistão, gerando, consequentemente, disputas por recursos naturais  e por emprego, desde o enfraquecimento e posterior colapso da União Soviética, quando a independência foi alcançada pelos Estados da Ásia Central. No cenário pós-soviético, as fronteiras artificialmente estabelecidas potencializaram os conflitos na região e abriram espaço para o nacionalismo (BRUIJN, 2011, p 29). 

A primeira disputa étnica em Osh

Sob o domínio soviético, o Quirguistão vivenciou o primeiro grande embate da história moderna do país na cidade de Osh. Aparentemente, as motivações que o suscitaram estavam relacionadas somente à embates interétnicos decorrentes das divisões territoriais, como foi anteriormente mencionado. Todavia, implicitamente, por trás da contenda entre quirguizes e uzbeques, também haviam fatores socioeconômicos e a busca pelo controle de recursos naturais, sobretudo água e terras (AKINER, 2016). 

Naquele momento, mais da metade da população daquela região era formada por quirguizes (54, 6%), que compartilhavam esse território com minorias étnicas, cerca de 27% de uzbeques e 10% de russos. Em decorrência do enfraquecimento da União Soviética, ao final da década de 1980, foram reduzidos os subsídios agrícolas fornecidos para os quirguizes, os quais, em sua grande maioria, viviam em regiões montanhosas, dependendo da agricultura e da criação de animais para sobreviverem. Diante dessa difícil situação, migram para regiões urbanas, sem, porém, conseguirem empregos. Assim, culpam os uzbeques pelas faltas de oportunidades de se inserirem no mercado de trabalho e por dominarem as regiões mais férteis  (AKINER, 2016). 

Por outro lado, os uzbeques também tinham as suas próprias reclamações da vida no Quirguistão, principalmente quanto à sub-representatividade política, às poucas produções audiovisuais na sua língua de origem e ao êxodo de jovens por não haver oportunidades de promoção. Contudo, foi a perda gradual da história dessa etnia que levou os anciãos dessa comunidade a apresentarem uma petição ao Soviete Supremo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), no dia 2 de março de 1990, pedindo que fosse estabelecido um território autônomo de sua etnia na porção do Quirguistão, em que havia a predominância uzbeque. Essa ação não agradou o grupo étno-nacionalista uzbeque, Adalat (“Justiça”), pois defendiam a total autonomia destes  (AKINER, 2016).   

As tensões entre as duas etnias cresceram e atingiram o ápice nos dois meses seguintes, quando foi concedido a um grupo de jovens quirguizes um grande terreno para construção em uma área dominada quase inteiramente por uzbeques. A partir de então, observa-se a ocorrência de confrontos hostis entre ambos os lados. Após protestos agitados na cidade de Osh, eclodiu no dia 4 de junho, o conflito interétnico naquela cidade, o qual tornou-se nos dias posteriores ainda mais intensos. Durante esse período, os direitos humanos foram terrivelmente feridos, pois, segundo testemunhas, as vítimas sofreram agressões e torturas, algumas chegaram até a ser estranguladas, mulheres foram estupradas e exibidas nuas nas ruas  (AKINER, 2016). 

Contudo, toda essa conjuntura foi revertida quando 2.000 homens do exército e outros 1.000 soldados de segurança interna interviram e apaziguaram o conflito naquele mesmo mês, quando 300 pessoas já haviam sido mortas de acordo com as estimativas oficiais – esse número é maior em fontes não oficiais -, 1.000 agredidas e diversas ficaram feridas. Apesar da tentativa de Akayev de promover posteriormente a harmonia entre essas duas etnias ao se tornar presidente, isso não surtiria efeito, pois posteriormente um cenário caótico de violência também se instauraria  (AKINER, 2016).  

A chama do conflito reacende 20 anos depois

A Revolução das Tulipas ocorrida em 24 de março de 2005 teve enormes impactos no Quirguistão, sobretudo no Vale de Fergana. A partir dela, o presidente Akayev foi deposto depois de permanecer desde 1990 no poder, se envolvendo em escândalos de corrupção e  nepotismo, além de acusações envolvendo repressão à oposição e incapacidade de controlar a enorme inflação. Em seu lugar, quem assumiu a presidência do país foi o político oposicionista e quirguiz, Kurmanbek Bakiyev (REZVANI, 2013).

 A Revolução foi responsável também por fazer crescer a enorme competição étnica entre os quirguizes e os uzbeques. A partir de então, os uzbeques se queixavam das crescentes discriminações e da insensibilidade de Bakiyev em relação às questões interétnicas, pois apesar de todas as falhas do governo anterior, esta etnia conseguia ter representatividade política à nível local e ser amparada por políticas de apaziguamento e acomodação de suas demandas. Além disso, muitos funcionários públicos de descendência uzbeque foram substituídos por pessoas do sul do Quirguistão, os quais formavam a grande e privilegiada rede de apoio ao presidente, em virtude de suas congruências genealógicas e ideológicas (REZVANI, 2013). 

Os mesmos motivos que levaram à queda do antecessor de Bakiyev somados ao aumento de preços dos serviços públicos por ordem do governo e das tarifas sobre as exportações de combustível para o Quirguistão por parte de Moscou em 1º de abril de 2010, fizeram as tensões aumentarem e a violência eclodir. Durante a primeira fase do conflito, desencadeada no dia 6 daquele mesmo mês, ocorreram incêndios criminosos, tiroteios e ondas de assaltos, principalmente em Bisqueque, capital do país, que reuniu no dia seguinte milhares de manifestantes anti-Bakiyev. Houve ainda relatos de pessoas que foram espancadas, além  do parlamento e outros edifícios terem sido furtados. Nesse ínterim, aproximadamente 89 pessoas morreram e 15.000 ficaram feridas (AKINER, 2016).   

Diante dessa situação, Bakiyev foge primeiramente para o sul, renunciando em 16 de abril, oito dias depois de ser instaurado um governo provisório sob o comando de Roza Otunbayeva. Consequentemente, os apoiadores do ex-presidente sofreram as consequências de sua deposição, inclusive o seu irmão, Janysh Bakiyev, o qual teve um mandato de prisão emitido em seu nome por ordenar que as tropas abrissem fogo contra a multidão em Bisqueque em 7 de abril, quando era chefe da Guarda Nacional. Naquela ocasião, se tornara impossível o retorno de Bakiyev à sua posição de liderança (AKINER, 2016).

Novamente as tensões ressurgem e inicia-se em 13 de maio a segunda fase do conflito ao sul do país, quando os prédios públicos de Jalal-Abad passam a ser controlados por forças pró-Bakiev, aparentemente da etnia quirguiz, mas rapidamente partidários do governo de descendência uzbeques desarticulam o movimento insurgente. Contudo, o que desencadeou o conflito étinico no país, foi o ataque incendiário de uzbeques ao vilarejo de Teit, onde vivia a família do ex-presidente, motivados pelo importante líder dessa comunidade, Kadyrjan Batyrov. Assim, de um lado do confronto estava a comunidade uzbeque em defesa do governo provisório e do outro, os quirguizes em defesa de Bakiyev (AKINER, 2016). 

Por conseguinte, ocorreu um ataque à Universidade da Amizade dos Povos – ponto focal das atividades culturais dos uzbeques – em 19 de maio, por cerca de 5.000 a 7.000 manifestantes aliados à Bakiyev. Em decorrência disso,  rompeu-se no Quirguistão uma onda de incêndios e saques criminosos, levando ao óbito três pessoas e cerca de 60 a 70 a se ferirem durante os confrontos. Ainda, protestos quirguizes em Jalal-Abad, Osh e Batken, ocasionaram a morte de mais duas pessoas e dezenas de feridos (AKINER, 2016).

No entanto, o pior ainda estava por vir. Na terceira e mais avassaladora fase, que teve como epicentro a cidade de Osh, o conflito de 2010 ganhava os contornos daquele ocorrido em 1990 na mesma região. Primeiro, a morte de um empresário local e importante barão das drogas com ligações à família Bakiyev, depois, em 9 de julho, uma briga entre jovens quirguizes e uzbeques em um cassino da cidade reacende o confronto que levou à estupros, torturas, prédios comerciais incendiados, casas furtadas e depredadas, bem como a interrupção dos serviços público básicos, o fornecimento de energia e dos transportes. O caos e a insegurança se instalaram, houveram casos em que policiais e militares atacaram a comunidade étnica uzbeque (AKINER, 2016).    

Apesar do governo provisório ser momentaneamente afetado pela crise, ele conseguiu reverter a situação a partir de 12 junho por meio de um decreto militar que concedia o direito das forças de segurança em se utilizarem de armamento letal em suas operações, além de instituir a mobilização parcial de militares e a formação de grupos de defesa ao corpo civil. Muitos quirguizes foram mortos, mas a quantidade de vidas uzbeques ceifadas superou essa quantia – 400 baixas, segundo a Anistia Internacional (2014). Além disso, um enorme contingente dessa minoria étnica se deslocou para o Uzbequistão, que registrou em 14 de junho a entrada de 75.000 refugiados por lá, número que chegaria nos quatro dias seguintes a 400.000, a maioria crianças, mulheres e idosos, o que impactou os recursos econômicos do país (AKINER, 2016). 

A intensidade do conflito foi reduzida após uma semana, principalmente com o início do trabalho de agências internacionais e doações vindas de outros países. Aos poucos, os refugiados uzbeques regressaram ao Quirguistão e foram mantidas as medidas de segurança emergências até 25 de junho em Osh. Contudo, houveram registros de alguns pontos isolados de violência e muitos casos de agressões e abusos policiais direcionadas a uzbeques, que foram considerados pelo Alto Comissariado da ONU como um flagrante de preconceito ético, mas acima de tudo, uma quebra dos princípios fundamentais tanto do Quirguistão quanto do Direito Internacional (AKINER, 2016). 

O Quirguistão no pós conflito ainda é um país dividido e marcado por tensões. Em contrapartida, não houveram, até o momento, confrontos graves e letais envolvendo quirguizes e uzbeques. À vista do exposto, o processo de construção e consolidação da paz nesse território é um processo constante e contínuo, em virtude dos múltiplos fatores que levaram o país a ser por duas vezes o cenário de conflitos étnicos, resquícios de uma política que ignorou completamente o modo de vida, bem como o sentimento de pertencimento étnico e territorial de povos tão singulares. Assim sendo, caso não haja um enorme esforço das autoridades e da comunidade internacional em amenizar as rivalidades étnicas na região, não há, infelizmente, a possibilidade dessas contendas serem minimamente resolvidas. 

[1] É chamado enclave o território de um governo rodeado inteiramente pelo território de um outro governo (SUZUKI, INOHARA, 2015).

[2] Exclave é um território que pertence, seja legal ou politicamente, a um governo, mas que não adjacente ao seu território (SUZUKI, INOHARA, 2015). 

REFERÊNCIAS

AKINER, Shirin. Kyrgyzstan 2010: conflict and context. Washington, D.C: E Central Asia-Caucasus Institute And Silk Road Studies Program, 2016. 142 p. Disponível em: https://css.ethz.ch/content/dam/ethz/special-interest/gess/cis/center-for-securities-studies/resources/docs/CACI-SRSP%20Kyrgyzstan%202010%20Conflict%20and%20Context.pdf. Acesso em: 07 fev. 2021.

BORTHAKUR, Anchita. An analysis of the conflict in the Ferghana Valley. Asian Affairs, [S.L.], v. 48, n. 2, p. 334-350, mai. 2017. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/03068374.2017.1313591. Acesso em: 4 fev. 2021.

BRUIJN, Simone de. The Ferghana Valley: A Ticking Bomb? – Conflict potential and the role of youth in the ferghana. 2011. 67 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Geografia Humana: Conflitos, Territórios e Identidades, Radboud University Nijmegen, Utrecht, 2011. Disponível em: http://theses.ubn.ru.nl/handle/123456789/2936. Acesso em: 5 fev. 2021.

HALDEVANG, Max de. Amnesty International. ‘Most of the people who died in Osh were Uzbeks but it is we who are being punished’. 2014. Disponível em: https://www.amnesty.org/en/latest/campaigns/2014/02/most-of-the-people-who-died-in-osh-were-uzbeks-but-it-is-we-who-are-being-punished/. Acesso em: 11 fev. 2021.

MAMATOVA, Diana. Grassroots Peacebuilding: Cross-Border Cooperation in the Ferghana Valley. Central Asia Program, Washington, D.C., CAP Fellows Paper 202, p. 1-16,  jan. 2018. Disponível em: https://centralasiaprogram.org/wp-content/uploads/2018/02/Mamatova-CAP-Fellows-Paper-February-2018.pdf. Acesso em: 6 fev. 2021.

REZVANI, Babak. Understanding and Explaining the Kyrgyz–Uzbek Interethnic Conflict in Southern Kyrgyzstan. Anthropology Of The Middle East, [S.L.], v. 8, n. 2, p. 61-82,  jan. 2013. Berghahn Books. http://dx.doi.org/10.3167/ame.2013.080205. Disponível em: https://www.berghahnjournals.com/view/journals/ame/8/2/ame080205.xml. Acesso em: 11 fev. 2021.

SUZUKI, Shinji; INOHARA, Takehiro. Mathematical definitions of enclave and exclave, and applications. Applied Mathematics And Computation, [S.L.], v. 268, p. 728-742, out. 2015. Elsevier BV. http://dx.doi.org/10.1016/j.amc.2015.06.114. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.amc.2015.06.114. Acesso em: 12 fev. 2021.

Giovana Machado

Formada em Relações Internacionais na Universidade Estadual Paulista (UNESP). Tem interesse em Direitos Humanos e Segurança Internacional.

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