A ORGANIZAÇÃO PARA COOPERAÇÃO DE XANGAI COMO FERRAMENTA DE ESTABILIZAÇÃO

A ORGANIZAÇÃO PARA COOPERAÇÃO DE XANGAI COMO FERRAMENTA DE ESTABILIZAÇÃO

Bandeira dos Estados-membros permanentes da OCX. Fonte: Ministério de Informação e Radiodifusão da Índia.

Com a retirada das tropas da OTAN e dos Estados Unidos, a rápida crise política que se instalou no Afeganistão em 2021 e com o vazio de poder deixado pelos EUA na região, uma “nova” Organização Intergovernamental (OIG) surge como ator de destaque na região: a Organização para Cooperação de Xangai (OCX, ou na sigla em inglês, SCO).

O objetivo deste trabalho é, justamente, apresentar  o contexto geográfico e a importância da Ásia Central para as duas grandes potências da organização (Rússia e China), o histórico da criação da OCX, sua autoridade na geopolítica centro-asiática e se a possibilidade da OCX conseguir restabelecer a ordem em países com conflitos internos como é o caso do Afeganistão.

CONTEXTO GEOGRÁFICO E A IMPORTÂNCIA DA ÁSIA CENTRAL

Localizada no limite entre a Ásia e a Europa e considerada a segunda maior reserva de hidrocarbonetos do mundo – atrás apenas do Oriente Médio – a Ásia Central é uma região compreendida entre o sul da Rússia, o norte do Afeganistão e do Irã, o leste do Mar Cáspio e centro-oeste da China. Integram essa região o Cazaquistão, o Quirguistão, o Tadjiquistão, o Turcomenistão e o Uzbequistão. As fronteiras com países importantes na Política Internacional como Rússia, China, Afeganistão e Irã, tornam a região ainda mais privilegiada (CHARIPOV; CHARIPOVA, 2011).

Mapa político da Ásia Central. Fonte: Wikimedia Commons.

Dados da British Petroleum (2020) apontam que a Ásia Central, até 2019, possuía pouco mais de 4,1 bilhões de toneladas de reservas comprovadas de petróleo e seus derivados. Além disso, como argumenta Lopes (2012, p. 31), a região está dentro do Novo Grande Jogo de Energia (NGJE)[1], “enquanto espaço de irradiação e de passagem obrigatória” para a maioria dos oleodutos daquela região, e também por ter participação ativa na NGJE enquanto produtora de gás e petróleo.

Ademais, os países da região não participam de compromissos intergovernamentais no que tange à exportação de petróleo, o que torna os Estados centro-asiáticos muito suscetíveis a acontecimentos que abalem ou fortaleçam a oferta e a procura do produto. Essa carência na política externa centro-asiática também facilita a dependência de países que realizam o escoamento energético, neste caso, a Rússia (LOPES, 2012).

Mapa dos gasodutos e oleodutos que conectam a China com a Ásia-Central. Fonte: The Financial Times.

RÚSSIA, CHINA E A ÁSIA CENTRAL

Para a Rússia – país com a maior rede de oleodutos e gasodutos do mundo – a região é de valiosidade ímpar, já que é o principal e mais importante fornecedor de petróleo e gás de toda a Europa Centro-Oriental, além das questões securitárias, envolvendo o ópio afegão que atravessa a região centro-asiática até chegar à Rússia (CHARIPOV; CHARIPOVA, 2011). Já para a China, a Ásia Central é de extrema importância, pois o país enfrenta sérios problemas energéticos e que, como argumenta Lopes (2012, p. 46), “não é alheio [a]o seu elevado ritmo de crescimento econômico”.  Portanto, quanto maior a influência chinesa nesta área, maior será o benefício energético, com uma forte possibilidade de escoamento do gás e do petróleo pelo próprio território chinês. 

OS CINCO DE XANGAI

Tendo em vista justamente o combate ao terrorismo e ao extremismo, bem como a resolução pacífica de conflitos fronteiriços históricos na região, em 26 de abril de 1996, os chefes de Estados da China, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão encontraram-se em Xangai. O produto deste encontro foi a assinatura do Tratado de Aprofundamento da Confiança Militar nas Regiões Fronteiriças (PRADT, 2020).

Este encontro foi um marco para as relações sino-russas, pois, com a fundação do grupo dos “Cinco de Xangai” – que precede a OCX -, foi necessário estabelecer o “Espírito de Xangai”, uma denominação para o conjunto de normas e valores que diziam respeito aos princípios básicos[2] das Relações Internacionais (GOMES; LIMA; ABREU, 2019). Sobre isso, Tilman Pradt (2020) afirma que:

“O objetivo de enfrentar ameaças não tradicionais à segurança (leia-se terrorismo), construiu um contrapeso à influência dos EUA e promovendo a cooperação econômica entre eles [os Estados-membros], unificou os membros dos Cinco de Xangai e levou a uma maior institucionalização de suas relações, o que resultou na fundação da OCX” (PRADT, 2020, p. 33, tradução minha).

A ORGANIZAÇÃO PARA COOPERAÇÃO DE XANGAI

Em 15 de junho de 2001, após a adesão do Uzbequistão – primeiro país observador da organização -, é finalmente oficializada, em Xangai, a criação da Organização para Cooperação de Xangai. A formalização desse coletivo, afirmam Geórgia Gomes, Vítor Lima e Vitória Abreu (2019), visava, sobretudo, o combate aos “três males” que ameaçavam os territórios do Estados-membros, isto é, o terrorismo, o separatismo e o extremismo islamista[3]. Algo que está claramente evidente na Carta da OCX de 2002 e em seus inúmeros exercícios militares conjuntos realizados nos últimos anos.

Exercício militar da OCX em 2018. Fonte: Ministério Nacional da Defesa da China.

O combate aos “três males” na organização é realizado pela Estrutura Regional Anti-Terrorista (RATS, na sigla em inglês), que é o segundo órgão permanente da organização – atrás apenas do Secretariado – e que tornou-se mais necessária do que já era, após os ataques do 11 de setembro de 2001. Atualmente, a RATS reconhece mais de 30 grupos separatistas, extremistas e/ou terroristas, dentre eles a Al-Qaeda e o Taleban. Número este que supera o de grupos reconhecidos pelas Nações Unidas (CHARIPOV; CHARIPOVA, 2011).

Na atualidade, a organização compreende oito Estados-membros (Cazaquistão, China, Quirguistão, Rússia, Tadjiquistão, Uzbequistão, Índia e Paquistão), quatro membros observadores (Afeganistão, Bielorrússia, Irã e Mongólia) e seis “parceiros de diálogo” (Azerbaijão, Armênia, Camboja, Nepal, Turquia e Sri-Lanka) (SHANGHAI COOPERATION ORGANISATION, 2021).

Se comparada com a OTAN ou com o Pacto de Varsóvia, a OCX tem um baixo grau de institucionalização, ou seja, seus acordos e tratados não são permanentes e de fácil aplicação. No entanto, a organização tem como Estados-membros três potências nucleares (China, Rússia e Índia), o que pode influenciar tanto ações regionais quanto globais (MORAES, 2010).

A OCX COMO FERRAMENTA DE DIÁLOGO

Com a reunião de 8 e 9 de junho de 2017, ficou evidente o caráter  dialogante da organização, já que neste encontro, Índia e Paquistão – rivais históricos desde a descolonização do Império Britânico – foram aceitos como Estados-membros. A inserção destes países na organização foi uma tentativa clara de realizar um diálogo mais pacífico entre as duas nações, o que seria benéfico para toda a região e que, desde então, surge certo efeito (SHANGHAI COOPERATION ORGANISATION, 2021; RIBEIRO, 2015).

O QUE ESPERAR DA OCX NO CONTEXTO AFEGÃO?

O fato de a OCX contar com a presença de uma nação (a China) conhecida pelo uso do soft power[4] no contexto da Política Internacional, além de ser uma organização que visa uma união militar e de repressão ao terrorismo, faz com que, após o vácuo de poder deixado no Afeganistão pelos Estados Unidos, a OCX torne-se uma das principais Organizações Internacionais com capacidade de negociar um regime pacífico no Afeganistão, estabelecido através da diplomacia.

Como supramencionado, a inclusão da Índia e do Paquistão na organização, teve como principal objetivo a estabilização de possíveis conflitos entre os países. Portanto, negociar a paz – utilizando o soft power chinês como arma – é algo muito mais interessante política e economicamente, não só para a China, mas também para a OCX como um todo (GOMES; LIMA; ABREU, 2019).

Além disso, o histórico antagonismo entre a China e os Estados Unidos, a vitória dos mujahedin no contexto da invasão soviética (o que dificulta o envolvimento direto da Rússia na situação), e a recente vitória do Taleban (com a saída dos EUA do Afeganistão, ainda no contexto da invasão de 2001), tornam a China um dos poucos países com capacidade de negociar a paz com o Taleban. Algo que já vem sendo preparado desde 2019, com inúmeras reuniões entre os extremistas e ministros chineses.

Sendo assim, a OCX, que completou 20 anos em 2021, é atualmente, uma das mais importantes armas do soft power chinês e em breve, poderá ser usada fortemente na mediação acerca das questões políticas do Afeganistão. Ademais, caso a solução chinesa não se dê por meios pacíficos, um novo capítulo na política externa de Beijing será escrito.

NOTAS

[1] O Novo Grande Jogo da Energia (NGJE), como explica Lopes (2012), é uma terminologia ligada ao escritor Rudyard Kipling que designou o termo The Great Game como todas as relações e/ou conflitos que envolviam britânicos e russos e que tinham como palco a Ásia Central.

[2] São princípios básicos das Relações Internacionais: o respeito mútuo pela soberania e pela integridade territorial, o pacto de não-agressão, a não interferência em assuntos internos, a igualdade e a coexistência pacífica.

[3] Por “islamista”, com “s”, entende-se o uso político e deturpado do Islam. Não confundir com “islamita”, sem “s”, que são aqueles que seguem o Islam como fé.

[4] Criado pelo teórico das Relações Internacionais Joseph Nye, o termo soft power (antagônico ao hard power) é a habilidade de um Estado de exercer sua influência utilizando a cultura, valores políticos ou a política externa, ou seja, agir sem utilizar a coerção.

REFERÊNCIAS

BRITISH PETROLEUM. Statistical Review of World Energy. 2020. Disponível em: <https://www.bp.com/content/dam/bp/business-sites/en/global/corporate/pdfs/energy-economics/statistical-review/bp-stats-review-2020-full-report.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2021.

CHARIPOV, Rodrigo Borges Cardoso; CHARIPOVA, Elena. Organização para Cooperação de Xangai: nova ordem geopolítica na Ásia. Percurso: Sociedade, Natureza e Cultura: Curitiba, v. 1, n. 11, p. 173-199, jan. 2011. Disponível em: <http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/percurso/article/view/302/267>. Acesso em: 22 ago. 2021.

GOMES, Geórgia Bernardina de Menezes; LIMA, Vítor Sfredo Sokal; ABREU, Vitória Vieira de Souza. Rota da Seda e OCX: Novas perspectivas para a Governança Mundial?. In: RANINCHESKI, Sonia Maria. (ed.) Relações Internacionais para Educadores: A globalização em perspectiva: caminhos e desafios. Porto Alegre, v. 6, 2019. p. 30-50. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/ripe/wp-content/uploads/2018/06/Anua%CC%81rio-RIPE-2019-Versa%CC%83o-Digital.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2021.

MORAES, Rodrigo Fracalossi de. Instituições de segurança e potências regionais: a Organização para a Cooperação de Xangai (SCO) e a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (ECOWAS). Boletim de Economia e Política Internacional, n. 2, abr. 2010, p. 37-47. Disponível em: <http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/4724>. Acesso em: 22 ago. 2021.

LOPES, Manuel Martins. O novo grande jogo da energia na Ásia. Universidades Lusíada. Política Internacional e Segurança, n. 6, p. 253-338. jul. 2012. Disponível em: <http://repositorio.ulusiada.pt/handle/11067/1038>. Acesso em: 22 ago. 2021.

PRADT, Tilman. Introduction to Shanghai Five (and SCO). In: ______. The prequel to China’s New Silk Road: preparing the Ground in Central Asia. Palgrave Macmillan. Singapura: 2020. cap. 3, p. 36-49.

RIBEIRO, Erik Herejk. A expansão da Organização para a Cooperação de Xangai (OCX): Uma coalizão anti-hegemônica?. 1º Seminário Internacional de Ciência Política – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: 2015. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/sicp/wp-content/uploads/2015/09/RIBEIRO-A-Expans%C3%A3o-da-Organiza%C3%A7%C3%A3o-para-a-Coopera%C3%A7%C3%A3o-de-Xangai-Uma-Coaliz%C3%A3o-Anti-hegem%C3%B4nica.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2021.

SHANGHAI COOPERATION ORGANISATION. About SCO. 2021. Disponível em: <http://eng.sectsco.org/about_sco/>. Acesso em: 22 ago. 2021.

SHANGHAI COOPERATION ORGANISATION. Charter of the Shanghai Cooperation Organization. 2002. Disponível em: <http://eng.sectsco.org/documents/>. Acesso em: 23 ago. 2021.

Jorge Willian Ferreira Gonçalves

Graduando em Relações Internacionais pela UFG. Membro do Grupo de Estudos sobre a Rússia (PRORUS/UFSC) e pesquisador voluntário na Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM/UFG). Tenho interesse nas relações Brasil-Rússia e a política externa russa no âmbito da Organização para Cooperação de Xangai e os BRICS.

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