O PARADOXO INDIANO DA FORÇA

O PARADOXO INDIANO DA FORÇA

Fonte: imagem de Naveed Ahmed, por Unsplash 

Introdução

Desde 1947 a Índia tem uma relação contraditória com o uso da força, uma vez que ela é muito reconhecida pelo ideal da não violência, marcado por Gandhi, mas ainda utiliza da mesma para fins políticos e econômicos. Assim, esse paradoxo da força ocorre pois o país buscou, e ainda busca, lutar por sua autonomia e para esta finalidade ele precisa de poder, no caso a força. No entanto, o país teve líderes, os primeiros-ministros, os principais tomadores de decisão de política externa desde a independência da Índia (COHEN, 2001), que tinham fortes princípios de não violência, advindos de influências culturais. Neste contexto, o seguinte artigo apresentará a primeira seção, que conterá algumas conceituações e a primeira parte da argumentação, que vai compreender o ideal de autonomia para a Índia, apresentando as ameaças a esse fim, e a necessidade de força para atingi-la. Já a segunda seção inclui a segunda parte do argumento, as tendências dos primeiros-ministros, principalmente no século XX, em relação à não-violência e, dessa forma, engendram a visão paradoxal das atitudes da Índia no que se refere à força.

Buscando autonomia através da força: Ideal de autonomia: contexto histórico e ameaças atuais a esse ideal 

Para entender a relação da Índia com o uso de força, é importante compreender a primeira parte do argumento, a autonomia, e a contribuição da força para alcançá-la. Em primeiro lugar, a autonomia é um traço importante para a Índia, dado seu passado colonial (GANGULY, 2010). Segundo Saltya Gautam, ela é conceituada “como autogoverno, deve ser vista como liberdade tanto da heteronomia externa quanto da interna” (GAUTAM, 1994, p. 1118, tradução minha1). Outra caracterização que ajuda a entender como a autonomia será utilizada, é dada por Kanti Bajpai (1998), na qual ele afirma que o interesse da Índia é ter poder para manter alguns atributos da soberania, uma política externa independente, além de manter seu território (BAJPAI, 1998). Dado esse conceito, compreende-se que, como esses atributos da soberania têm o mesmo traço que a autonomia, de desejar auto governança, no caso de ter domínio garantido sobre a política externa e seu território, o poder pode ser usado para alcançar, também, a autonomia. Entretanto, deve-se ressaltar que a soberania não é utilizada, aqui, como sinônimo de autonomia. Não é do interesse desse artigo diferenciá-los, mas sim entender que, dado o fato de que ambos conceitos apresentam o traço de autogoverno, e por serem de interesse da Índia, os meios para alcançar um podem ser usados para obter o outro. 

Assim, o caminho da Índia rumo à autonomia pode ser ameaçado por três fatores: a pobreza, que tornará a Índia dependente dos países com maior poderio econômico; a influência de outros países na região do Sudeste Asiático; e os problemas de fronteira com o Paquistão e a China, que podem comprometer o autogoverno indiano em seu território e em sua região de influência. Dessa forma, o poder é necessário, sendo composto por características econômicas, militares e de ordem doméstica (BAJPAI, 1998). Dada essa noção, o desejo por autonomia será ameaçado por esses três problemas, por isso a Índia necessita de poder (no caso a força) caracterizado majoritariamente pelo aspecto militar.

Também é importante contextualizar a autonomia para o país, uma vez que a Índia, antigamente, era vista como alvo de outros países, devido à sua localização e recursos. Assim, essa noção histórica é utilizada por ela para construir a ideia de sua importância na atualidade (OGDEN, 2011). Porém, mesmo com essa noção de valor próprio, a Índia tem um passado que foi reconhecido como importante para o enriquecimento alheio e, por essa razão, por muito tempo foi dominada por estrangeiros.

Após sua independência em 1947, a Índia enfrentou a questão da pobreza e um cenário de paralisia diante do domínio britânico (ADHIA, 2015). Para superar estas dificuldades, o país focou na economia, mas foi caracterizado como sendo isolado e que se mantinha concentrado na demanda interna (SINGH, 2020). Nesse contexto, o governo criou planos de cinco anos, que tinham como um dos focos a criação de indústrias estatais (ADHIA, 2015). A questão da pobreza pode ser relacionada à autonomia em uma declaração feita por Jawaharlal Nehru (1947-1964), primeiro-ministro da Índia. “Mas importá-los do exterior é ser escravo de países estrangeiros.” (NAYAR, 1972, p.127-128 apud PANAGARIYA, 2008, p. 25, tradução minha2). Portanto, a economia indiana, na era pós-independência, tinha um caráter autogovernado, que carregava desconfiança das grandes potências. Por fim, a superação da pobreza, sem depender de ajuda externa, vai de acordo com o interesse indiano de se ter uma política externa independente, sem se submeter às vontades alheias em troca de ajuda, dando, portanto, mais liberdade, como visto na fala de Nehru.

Influências externas na região do Sudeste Asiático:

A segunda ameaça à autonomia da Índia está relacionada à influência de outros na região do Sudeste Asiático, visto que é uma região de influência da Índia, o que leva em consideração o interesse por uma política externa independente e o papel desempenhado pela força nessa questão. Diante disso, P.S Raghavan afirma que:

“A política externa da Índia, portanto, trabalha para sustentar uma rede de relações externas que promova o melhor ambiente de segurança para o país e maximize a margem de manobra do governo para buscar políticas que, a seu ver, colocariam o país no caminho mais rápido para seus objetivos.” (RAGHAVAN, 2020, p. 34, tradução minha.3)

Nesse sentido, pode-se destacar o poder militar ao fortalecer os laços na região. Dessa forma, a relação da Índia com o Sudeste Asiático é importante pelo que afirmou Raghavan. Assim, essa busca pela segurança na região é essencial, visto que a Índia já tem problemas em outras proximidades, como no Paquistão e tensões com a China. Desta forma, ter influência sobre os outros seria útil, para ter, como diz Raghavan, espaço de manobra para operar em seus objetivos.

Ademais, deve-se entender a complexidade desses laços, uma vez que são de tempos antigos, dividindo traços culturais, históricos e religiosos (WADHWA, 2020). Atualmente, a Índia se relaciona com a região por meio de cooperações, que englobam segurança, economia e cultura (WADHWA, 2020). Em termos de segurança, pode-se citar o fato de que, em 2015, o primeiro-ministro indiano Narendra Modi anunciou o SAGAR (Segurança e Crescimento para Todos na Região), sendo uma cooperação que vai além do Sudeste Asiático e percebe o oceano Indo-Pacífico como essencial para os fluxos comerciais, e por tal causa deve ser protegido (WHADWA, 2020). Assim, as relações da Índia com a região têm o uso da força como ferramenta, que pode ser usada de forma cooperativa, para manter o fluxo comercial, mantendo poder econômico e garantindo sua autonomia.

Além disso, a estratégia de Nova Délhi na região é vista por Rohan Mukherjee não apenas para fins de segurança, mas, também, para fins econômicos. Dessa forma, ele afirma que “o terceiro e último objetivo da Índia é garantir a paz e a estabilidade na Ásia. O motivo aqui não é apenas segurança, mas, mais importante, econômico” (MUKHERJEE, 2019, p. 45, tradução minha4). Conforme exemplificado pelo tratado acima, a região é economicamente importante para a Índia. Portanto, o uso de medidas da força serve para garantir seu poder econômico, assim como sua autonomia na região.

Fonte: imagem de Jai Bhutani, por Pixabay 

Paquistão e China VS Índia

A terceira ameaça à autonomia da Índia diz respeito às questões fronteiriças com o Paquistão e a China. Logo, uma forma de continuar garantindo a autonomia é por meio da força. Assim, desde sua independência, a Índia teve problemas fronteiriços com o Paquistão, principalmente na divisão do território em 1947, que gerou um grande massacre no fluxo de migrantes, além de dificuldades acerca do desenho da região, levando a guerras, tornando essa fronteira uma das mais instáveis do mundo. Em relação à China, além da guerra de 1962, sua influência na região e sua proximidade com o Paquistão fazem dela uma ameaça5 a esse ideal de autonomia indiana.

Atualmente, essas tensões com o Paquistão ocorrem tanto por questões históricas como por desavenças recentes, exemplo disso são os movimentos ao longo de suas fronteiras conflitivas, e o treinamento de grupos terroristas que atuam dentro da Índia (RAGHAVAN, 2020). Assim, o uso da força pode ser necessário para a defesa do território, no caso de um adversário que é seu vizinho, onde as tensões não são novas. 

Já a China se configura como ameaça para a Índia devido ao seu crescente poder militar no seu entorno (SCOTT, 2008), como na existência de mísseis apontados para importantes cidades indianas, o que não ocorre do contrário (SCOTT, 2008). Além disso, David Scott (2008) mostra exemplos sobre a atuação da China na esfera de influência indiana no Sudeste Asiático, ao criar laços bilaterais que concernem questões como segurança. É importante destacar, também, que no final dos anos 90, os testes nucleares de Pokhran, na Índia, foram explicados como sendo uma consequência da ameaça e auxílio chinês ao programa nuclear paquistanês (YUAN, 2007). Assim, o uso da força pela Índia pode ser entendido como um meio de garantir seu interesse em se tornar autônoma e não apenas preservar sua integridade territorial, mas em ter liberdade em suas escolhas de política externa, que estão sendo ameaçadas pelo crescimento chinês na região de interesse da Índia.

Portanto, a autonomia é um importante objetivo da Índia, que pode ser conquistado e mantido pelo poder, seja econômico, para superar a pobreza e sair da dependência de estrangeiros, ou militar, para garantir segurança e liberdade das pressões estrangeiras na formulação da sua política externa.

O paradoxo indiano: realidade da violência e a tradição da não-violência

Nesta seção, a natureza paradoxal do uso da força pela Índia será explorada, já que a visão da Índia sobre a força é diferente do que a realidade exige. Em primeiro lugar, a influência cultural dos primeiros-ministros indianos, em sua grande maioria, remete-se ao princípio da não-violência apresentado por Mahatma Gandhi. Seu pensamento será interpretado como um idealismo realista, no qual a não-violência seria um tipo de constrangimento e solução para as questões políticas (MANTENA, 2012).

Diante disso, é importante destacar o que Chris Ogden disse sobre ideologias e sua influência na política indiana. Em suas conclusões no artigo “Normas, Política Externa Indiana e a Aliança Democrática Nacional de 1998–2004”, ele diz que “ao focar no governo indiano anterior a 1998 e nas normas do BJP e compará-las com as ações do NDA liderado pelo BJP em governo, pudemos ver como as diferentes crenças ideológicas restringem e influenciam a política externa (indiana)” (OGDEN, 2010, p. 311, tradução minha6).

Neste cenário, a Índia no século XX era governada, na maioria do tempo, pelo Congresso Nacional Indiano, havendo, portanto, algumas semelhanças entre as ideologias dos governos, e no que diz respeito à questões de segurança, a característica da não-violência estará presente (OGDEN, 2013). Um exemplo disso foram as tentativas da Índia de negociar com o Paquistão sobre a Caxemira, podendo destacar as ações feitas por Rajiv Gandhi, I.K Gujral e, claro, Nehru, todos do partido mencionado acima, mas não foram frutíferas (OGDEN, 2010). Seguindo as conclusões de Ogden, a política externa indiana pode ser influenciada pelas diferentes ideologias. Portanto, o uso da força pode ser compreendido como paradoxal, dado essas ideologias dos primeiros-ministros, que remontam aos esforços de Gandhi.

CONCLUSÃO

Conclui-se que Nova Delhi, desde 1947, tem uma atitude paradoxal em relação à força, porque mesmo que seus líderes não concordaram e tentaram evitar o uso dela, eles precisam utilizá-la. Isso ocorre, pois para a Índia ser autônomo não é apenas estar livre do domínio externo em termos estratégicos e económicos, mas, também, ter a fronteira e o seu povo livre de ameaças diretas.

Notas

[1] Trecho original: “as self-rule, is to be seen as freedom from both external and internal heteronomy.” (GAUTAM, 1994, p. 1118).

[2] Trecho original: “But to import them from abroad is to be the slaves of foreign countries.” (NAYAR, 1972, p.127-128 apud PANAGARIYA, 2008, p. 25).

[3] Trecho original: “India’s foreign policy, therefore, works to sustain a network of external relationships that promotes the best security environment for the country and maximizes the government’s room for manoeuvre to pursue policies that, in its judgement, would put the country on the fastest path towards its national objectives.” (RAGHAVAN, 2020, p. 34)

[4] Trecho original: “India´s third and final objective is to ensure peace and stability in Asia. The motive here is not just security but, more importantly, economic” (MUKHERJEE, 2019, p. 45)

[5] A complexidade da relação entre Índia e China não pode ser esgotada neste artigo, por isso, para fins de delimitação do tema, leva-se em conta apenas o ideal indiano de autonomia.

[6] Trecho original: “By focusing on pre-1998 Indian government and BJP norms, and comparing them with the actions of the BJP-led NDA in government, we have been able to see how differing ideological beliefs both constrain and influence (Indian) foreign policy.” (OGDEN, 2010, p. 311)

Referências

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Referência das imagens:

PIXABAY. Jai Bhutani. Disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/bandeira-indiana-ex%C3%A9rcito-indiano-2644512/. Acesso em: 05/06/2023

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Camila Neves Peixoto

Estudante de Relações Internacionais na PUC Minas. Interessada em Política Externa, diplomacia e segurança.

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