CRISE HUMANITÁRIA EM MIANMAR E A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO DISCRIMINATÓRIO CONTRA A ETNIA ROHINGYA.

CRISE HUMANITÁRIA EM MIANMAR E A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO DISCRIMINATÓRIO CONTRA A ETNIA ROHINGYA.

CONTEXTO HISTÓRICO DA REPRESSÃO

A Birmânia, atualmente chamada de República da União de Mianmar, é um país localizado ao sul do continente asiático que faz fronteira com cinco outros países, Índia, Bangladesh, China, Laos e Tailândia. O contato próximo com outros países determinou parte dos traços culturais na região. Mianmar possui aproximadamente 135 etnias divididas em uma área territorial de 676,578 km2. A coexistência entre esses grupos nunca foi pacífica devido as diferenças culturais.

Mianmar se tornou independente da Inglaterra, em 1948, quando a Liga Antifascista pela Liberdade Popular (AFPFL) tomou o poder.  Desde este período, é caracterizado como um território marcado por amplos confrontos civis e governos ditatoriais. De acordo com Macmanus, T., Green, P. e De la Cour Venning, A. (2015), “Mianmar tem uma longa história de conflito inter-religioso e inter-étnico, violência e repressão do Estado, restrições ao movimento da população e subdesenvolvimento. Mianmar é religiosamente diverso, mas não religiosamente pluralista”. (ISCI, Rohingya-Report, 2015, p. 19, tradução nossa)

A religião foi e é a peça chave de vários confrontos no país berço de diversos grupos minoritários. A etnia que domina a região é composta por budistas, que compreendem mais 87,9% de toda a população. O restante é dividido entre cristãos, muçulmanos, animistas e hindus[1]. O início dos confrontos étnicos no país se deram após 1962, quando o governo foi deposto por um golpe militar de estado. O primeiro governo civil só foi instalado em 2016, 54 anos após o governo militar.

As ações discriminatórias contra minorias se construíram em Mianmar em meio a sucessivos regimes autoritários. Gradativamente, a ideia que os demais grupos étnicos no país, especificamente os rohingyas, povos de origem muçulmana, eram invasores se expandiu na região. O discurso defendido no país é o de que antes de 1824 não existiam rohingyas na Birmânia, e que estes são imigrantes advindos da Índia e Bangladesh durante a colonização britânica, consequentemente, não merecem o status de cidadãos birmaneses. Historicamente, os rohingyas afirmam serem indígenas e habitantes do Estado de Rakhine, antes denominado Arakan ou Arracão, oficialmente não há um consenso sobre a origem da etnia. A presença muçulmana, de longa data, já foi historicamente confirmada no estado de Rakhine mediante a existência de mesquitas antigas e o uso de moedas e títulos islâmicos por parte de antigos governantes do estado.

Na Constituição de 1948, pós independência, os rohingyas detinham o status de cidadãos birmaneses. Entretanto, após o golpe de estado isso foi revogado, quando a Constituição de 1974 entrou em vigor, os rohingyas passaram a ser classificados como imigrantes ilegais. Já em 1982, foi criada a Lei birmanesa de cidadania que determinou que só poderia ser considerado birmanês aqueles grupos que faziam parte da Birmânia antes de 1823. De acordo com AHMED,

Toda a população de Mianmar é praticamente codificada por cores! Na verdade, após o lançamento da ‘Operação Nagamin’ (Dragon King) em 1977, que continuou por mais de uma década, quase toda a população de Mianmar foi registrada e fornecida com carteiras de identidade. Esses cartões são todos codificados por cores, principalmente para a fácil identificação da condição de cidadania do titular. (AHMED, Imtiaz. The Rohingyas: From stateless to refugee. Dhaka, Bangladesh: University of Dhaka, 2009, pág. 4 tradução nossa).[2]

As cores nas carteiras de identificação dos birmaneses é forma de identificar o grupo ao qual pertencem e seguem a seguinte lógica; “rosa, para aqueles que são cidadãos plenos; azul, aqueles que são cidadãos associados; verde, aqueles que são cidadãos naturalizados; e, por fim, branco para os estrangeiros” (AHMED, 2009, pág. 4, Tradução nossa). Vale ressaltar, que até 2014, os rohingyas eram identificados pelo “white card”, a última forma de documentação mantida por eles, porém, após as eleições de 2015 eles perderam o direito de utilizá-los. Desde então, os rohingyas adquiriram o status de apátridas e não possuem qualquer direito civil dentro de Mianmar. Consequentemente, a violência contra a etnia aumentou significativamente o que levou à imigração de diversos grupos para países fronteiriços. Estima-se, de acordo com a Human Rights Watch, que mais 87 mil rohingyas fugiram de Mianmar para Bangladesh durante as ofensivas.

Aos rohingyas, como não cidadãos, o acesso à saúde, educação e outros serviços é restrito. Além disso, não podem frequentar ou viajar para qualquer lugar dentro do país sem permissão, qualquer tipo de manifestação religiosa é controlada. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), os rohingyas são hoje a minoria mais perseguida do mundo e compõem 10% de toda a população apátrida. Até esse ano (2020), também de acordo com a ONU, mais de 370 milhões de refugiados cruzaram a fronteira de Mianmar, para outros países, por causa de perseguições étnicas.

A CONSOLIDAÇÃO E CONSTRUÇÃO DO DISCURSO DE ÓDIO CONTRA ROHINGYAS

A atual perseguição e exclusão dos rohingyas reflete mais de 40 anos de propaganda estatal que foi construída para assegurar que a maioria dos birmaneses passassem a considerá-los e enxergá-los como estrangeiros e uma ameaça a cultura Budista. As políticas governamentais em Mianmar se constituíram ao longo dos anos baseada em princípios de raça e religião (IBRAHIM, 2018, p. 10). Os estigmas postos sobre a etnia rohingyas, em Mianmar, os qualificou como imigrantes ilegais, invasores, no país muitos utilizam o termo “bengalis muçulmanos” para se referirem ao grupo. Esse processo pode ser explicado pela relação denominada de conflito entre estabelecidos e outsiders (ELIAS, 2000, p. 27). Essas relações tomam esse pressuposto de exclusão pois o grupo que já estava ali antes acredita que os novos indivíduos não respeitam e ameaçam os costumes e as leis do local onde se encontram.

Neste contexto, em 2017, foi criado o Exército de Salvação dos rohingyas de Arracão (ARSA), o objetivo do grupo paramilitar é combater a violência sofrida pela etnia e expor para comunidade internacional a existência de um genocídio em Mianmar. O ARSA passou a ser identificado pelo Governo Nacional como grupo terrorista ligado à Al Qaeda. A partir disso, a violência do exército nacional contra a etnia rohingya se tornou ainda mais intensa e vilas inteiras foram destruídas. O governo de Mianmar justificou as ações como represálias aos ataques do ARSA a postos policiais. Após o ocorrido, as Nações Unidas passaram a classificar tais medidas como ações de limpeza étnica.

A associação feita pelo Governo de Mianmar entre o ARSA e grupos fundamentalistas islâmicos, mesmo após o grupo ter negado a relação, levou a população a temer ainda mais os rohingyas. Segundo dados divulgados pelo Médicos Sem Fronteiras (MSF), aproximadamente 6700 adultos e 730 crianças, abaixo dos 5 anos, rohingyas, foram assassinados após investidas militares. Imagens de satélite divulgadas, em 2017, pela Human Rights Watch revelarem que mais de 288 vilarejos foram queimados em Rakhine e milhares de famílias foram expulsas ou mortas no processo. [3]

Em 2018, as Nações Unidas e os Estados Unidos acusaram o exército de Mianmar de violar a legislação internacional que condena ações de limpeza étnica. Enviados da ONU ao país ainda reforçaram que a disseminação dos discursos de ódio contra rohingyas se deu em grande parte por campanhas em redes sociais, destaque para o Facebook, segundo eles a rede funcionou como uma versão modernizada da Rádio – Televisão Livre das Mil Colinas[4] peça chave no genocídio de Ruanda, em 1994.

Oficialmente a crise humanitária envolvendo a etnia rohingya em Mianmar não foi reconhecida internacionalmente como um genocídio. Entretanto, uma rápida a análise sobre a situação do grupo étnico pode reforçar a real ocorrência dessa problemática. Define-se por genocídio, segundo o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (Artigo 6):

[…] qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal: a) Homicídio de membros do grupo; b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo qualquer ato praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal. (Artigo 6, Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, 1998)

De acordo com o relatório publicado pela Iniciativa Internacional para Crimes Estatais, “os rohingya enfrentam potencialmente os dois estágios finais do genocídio – aniquilação em massa e eliminação do grupo da história de Mianmar” (ISCI, Rohingya-Report, 2015, p. 16, tradução nossa). As outras três fases já aconteceram e corresponderam, segundo o relatório pela: 1) estigmatizarão e desumanização; 2) assédio, violência e terror; 3) isolamento e segregação.[5]

Atualmente, mais de 912 mil rohingyas ainda vivem em campos de Refugiados em Bangladesh, segundo informes do MSF, sem qualquer condição básica de sobrevivência dependentes, exclusivamente, de ajuda humanitária uma vez que não possuem status legal. Nesse contexto, nota-se que antes de mais nada é preciso eliminar o estigma imposto sobre a comunidade. Goffman (1988, pág.7) explica que a estigmatização, seja ela tribal, racial, religiosa, política etc. impossibilita a inserção do indivíduo na sociedade e consequentemente suas possibilidades de crescimento. Diante disso, a garantia de sobrevivência desse povo só será assegurada com a modificação de seu status social. Em Mianmar, os rohingyas estão a margem de qualquer Direito Civil, por conta disso continuam sem voz na Comunidade Internacional.

NOTAS

[1] CIA, The world factbook. 2020. Disponível em: <https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/bm.html>

[2] Disponível em <https://pdfs.semanticscholar.org/70e9/b0f9277a660898e23b72ca42a8817dac9713.pdf>

[3] Disponível em: <https://www.hrw.org/report/2017/12/19/massacre-river/burmese-army-crimes-against-humanity-tula-toli>.

[4][…] “– La Radio Television Libre des Mille Collines – a Rádio Mil Colinas – que durante os três meses que durou o massacre teve o papel de incitar a população a pegar nas armas, perseguir, delatar, torturar e matar vizinhos, amigos, parentes da etnia Tutsi, chamados pelos Hutus radicais de “Inyenzi” – baratas, os traidores da pátria e do povo que queriam tomar o poder.” (COUTO, A. Mídia e propaganda racista: como os mass media constroem a imagem da realidade social – uma leitura do genocídio Ruanda. 2010, p. 9).

[5] Green, P., MacManus, T., de la Cour Venning, A. (2015) Countdown to Annihilation: Genocide in Myanmar. Disponível em:< http://statecrime.org/data/2015/10/ISCI-Rohingya-Report-PUBLISHED-VERSION.pdf>

BIBLIOGRAFIA

AHMED, Imtiaz. The Rohingyas: From stateless to refugee. Dhaka, Bangladesh: University of Dhaka, 2009. Disponível em: <https://pdfs.semanticscholar.org/70e9/b0f9277a660898e23b72ca42a8817dac9713.pdf>. Acesso em: 1 de set. 2020

BBC. Quem são os rohingyas, povo muçulmano que a ONU diz ser alvo de limpeza étnica. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-41257869>. Acesso em: 1 set. 2020.

CIA. EAST ASIA/SOUTHEAST ASIA: BURMA. Disponível em: <https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/bm.html>. Acesso em: 1 set. 2020.

COUTO, A. Mídia e propaganda racista: como os mass media constroem a imagem da realidade social – uma leitura do genocídio Ruanda. Revista Extraprensa, v. 3, n. 2, p. 1-19, 1 out. 2010.

EL PAIS. Facebook foi crucial para limpeza étnica do século XXI em Myanmar. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/12/internacional/1523553344_423934.html>. Acesso em: 1 set. 2020.

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade. Tradução: Mathias Lambert, v. 4, 1988.

GREEN, Penny; MACMANUS, Thomas; VENNING, A. D. L. C. COUNTDOWN TO ANNIHILATION: GENOCIDE IN MYANMAR. 1. ed. United Kingdom: International State Crime Initiative, 2015. p. 5-105. Disponível em: <http://statecrime.org/data/2015/10/ISCI-Rohingya-Report-PUBLISHED-VERSION.pdf> Acesso em: 1 set. 2020

HUMAN RIGHTS WATCH. Massacre by the River: Burmese Army Crimes against Humanity in Tula Toli. Disponível em: <https://www.hrw.org/report/2017/12/19/massacre-river/burmese-army-crimes-against-humanity-tula-toli>. Acesso em: 2 set. 2020

IBRAHIM, Azeem. The RohingyasInside Myanmar’s Genocide. 1. ed. United Kingdom: Oxford University, 2018. p. 1-207. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=eJ1YDwAAQBAJ&oi=fnd&pg=PP1&dq=rohingyas&ots=G1NNpSdxwj&sig=MJ_AlekbJe5U7NX5XK58fl69aQw#v=onepage&q&f=false>. Acesso em: 1 set. 2020.

MSF. Emergência humanitária no estado de Rakhine, em Mianmar. Disponível em: <https://www.msf.org.br/noticias/emergencia-humanitaria-no-estado-de-rakhine-em-mianmar>. Acesso em: 1 set. 2020.

NAÇÕES UNIDAS BRASIL. A ONU e o Direito Internacional. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/acao/direito-internacional/>. Acesso em: 1 set. 2020.

NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Milhares de rohingyas foram mortos em Mianmar desde agosto de 2017. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/artigo-milhares-de-rohingyas-foram-mortos-em-mianmar-desde-agosto-de-2017>. Acesso em: 1 set. 2020.

NUNES, Daniel Mendes; LEONEL, M. E. L; SILVESTRE, Vinícius Eduardo. A Limpeza Étnica em Mianmar e o Êxodo do Povo Rohingya. OCI, São Paulo, v. 5, n. 5, p. 1-8, out. /2018. Disponível em: <https://www.marilia.unesp.br/Home/Extensao/observatoriodeconflitosinternacionais/v.-5-n.-5-out.-2018—mianmar.pdf>. Acesso em: 1 set. 2020.

Anna Clara Oliveira

Estudante do 7ºperíodo de Relações Internacionais na Universidade Federal de Goiás e pesquisadora no programa de iniciação científica sobre milícias brasileiras, crime organizado transnacional e assemblages globais da segurança.

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