O DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO: A PROTEÇÃO EM MEIO AO CONFLITO ARMADO

O DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO: A PROTEÇÃO EM MEIO AO CONFLITO ARMADO

A análise de direito nos conflitos globais é um grande desafio para a comunidade internacional. A realidade do direito internacional em tempos de paz já é por si só desafiadora, uma vez que norteia a convivência entre atores de uma sociedade complexa. Os entes internacionais são dotados de características distintas, o que dificulta a busca por um vínculo espontâneo e subjetivo que seja capaz de conjugar estas relações. Desta forma, percebe-se a existência, por vezes frágil, de uma relação de suportabilidade de natureza negocial.

Quando essa relação entra em uma esfera de conflito entre atores desse cenário, o mesmo se torna, por vezes, incapaz de ser resolvido mediante a aplicabilidade de técnicas pacíficas ou conciliatórias. Assim, quando o uso da força se faz latente, é necessária a existência de normatização em torno de como essa força poderá ser empregada e quais limites deverão ser impostos.

Nesse cenário, é necessário recorrer ao Direito Internacional Humanitário, de forma limitar os efeitos dos conflitos, buscando a proteção de pessoas em situações de vulnerabilidade e impedir ações desproporcionais.  A preocupação se dá em questões como os alvos de um ataque armado, as armas utilizadas, o tratamento aos presos e a proteção de civis em meio às guerras.

Todas as vezes que conflitos armados despontam no Sistema Internacional, a preocupação com a proteção de civis como possíveis vítimas surge como assunto necessário na temática global. Desta forma, o presente artigo visa discorrer sobre  a criação e fundamentação do Direito existente para trazer regulação às situações de guerra.

 A NECESSIDADE DE NORMAS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO DIANTE DE UM CONFLITO

Aprendemos a voar como pássaros e a nadar como peixes, mas não aprendemos a conviver como irmãos.

Martin Luther King Jr.

A história da humanidade revela a presença de inúmeros conflitos cujo conteúdo bélico gerou a preocupação de proteção tanto com os mais vulneráveis em meio à lide, quanto com aqueles que não têm vínculo com a guerra, mas que podem ser afetados de forma direta e indireta pelo conflito. Essa preocupação foi o fato gerador da criação de uma normatização de alcance internacional que garantisse a proteção de bens jurídicos específicos em meio ao confronto, tais como a vida de civis em latu sensu [1] e a assistência humanitária em stricto sensu [2]. Assim, surgiu o Direito Internacional Humanitário (DIH), cujo conceito pode ser explicado na definição do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (UNIDAS, 2020):

“Podemos dizer que este ramo do direito representa o conjunto de princípios e regras que limitam o recurso à violência em período de conflito armado, e cujos objetivos são os seguintes: – Proteger as pessoas que não participam diretamente nas hostilidades, ou que já deixaram de o fazer – os feridos, náufragos, prisioneiros de guerra e civis; – Limitar os efeitos da violência nos combates destinados a atingir os objetivos do conflito.”

Trata-se de um desmembramento do Direito Internacional Público. Em síntese, o objetivo do DIH é mais específico, qual seja, a proteção da pessoa humana. A partir dessa distinção, pode ser traçado mais um aspecto da definição do instituto, cujo fundamento é a garantia da proteção aos indivíduos ou categorias de indivíduos que não participam do conflito armado ativo (SOUZA, 2007).  

Assim, tem-se que a sua função básica é assegurar e determinar a proteção aos cidadãos de um estado, que têm ameaçadas as suas garantias fundamentais, seja na esfera interna, seja internacionalmente. A preocupação se centrará em três questões fundamentais: quem pode ser alvo de um ataque armado, quais armas podem ser utilizadas, e qual tratamento deve ser dado àqueles que foram presos durante o conflito. Ou seja, a discussão é em torno de que maneira a força precisa ser limitada, de modo a proteger as pessoas em condições de vulnerabilidades e impedir ações desproporcionais (FERREIRA, 2014).

Em relação aos titulares da proteção do DIH, é necessário entender como a ideia de solidariedade e humanidade se demonstram na imposição de que um governante tem a responsabilidade, não apenas pela segurança e bem-estar de seu povo, mas também pela segurança e bem-estar de indivíduos de outros Estados. Frize-se que ser vítima é o requisito principal para a proteção deste direito, não cabendo qualquer debate moral, ético, cultural ou religioso. Trata-se de pessoas titulares de direitos fundamentais inalienáveis, que são ameaçados ou até tolhidos diante das situações de enfrentamento. Cabe ressaltar que, embora os destinatários imediatos desse sistema sejam as vítimas de conflitos armados, a proteção se estende às demais situações de assistência humanitária e proteção aos direitos e garantias fundamentais, como, por exemplo, as catástrofes naturais.

AS RAÍZES HISTÓRICAS DO DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO

Em toda a evolução histórica da humanidade encontram-se relatos de conflitos armados que refletiram em diversos aspectos da sociedade: na literatura, cultura, área jurídica, área social e militar. Há relatos históricos informando acerca de guerras estruturadas desde o final do período Paleolítico, ou seja, que se confundem com o início da própria civilização.

Desde as origens do Direito Internacional, ficou evidente a necessidade de um regime de direito apto a tornar qualquer ação bélica compatível com os princípios fundamentais da convivência internacional, mantendo-se dentro dos limites razoáveis, evitando o aspecto de completa barbárie dos conflitos (SWINARKI, 1991).  Entre as codificações antigas para os períodos de guerra pode-se destacar o “Código de Manu” [3] que trazia dispositivos avançados para aquela época, como a proibição de matar o inimigo que estivesse rendido ou desarmado.

Segundo Jean Pictet (1986, pág. 5), “nas sociedades primitivas imperava o triunfo do mais forte sobre o mais fraco, de forma desmedida e sem limites.” Sempre foi necessário buscar a proteção dos homens dos males da guerra, e, ainda que não se possa encontrar tratados internacionais de tempos mais remotos, algumas compilações de códigos de conduta foram de suma importância para estabelecer um limite às hostilidades, já que as normas da guerra são tão antigas quanto a própria.

As bases do Direito Internacional e do Direito de Guerra foram primeiramente divulgadas no século XVII por Hugo Grotius que entendia que a comunidade internacional deveria proteger alguns direitos essenciais inerentes à pessoa humana, e que a guerra, mesmo autorizada, não poderia passar por cima de deveres do Estado na observação das leis que impõem limites ao conflito (SOUZA, 2007). Já no século XVIII, entra em cena o “Contrato Social” de Rosseau, firmado como a regra fundamental do Direito de Guerra, inaugurando a ideia de que a guerra é uma relação entre Estados (ROUSSEAU, 1999). Contudo, somente na segunda metade do século XIX que surgiram tratados internacionais para regular a guerra, incluindo os direitos e a proteção para as vítimas de conflitos armados.

O COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA – CICV

Para entender como surgiu o DIH, é necessária uma análise anterior ao surgimento do Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Deve-se entender que muito antes desse nascimento já havia contribuições das antigas sociedades humanas que influenciaram na formação desse direito na forma que ele hoje é entendido, mesmo que, à época, fundamentadas essencialmente nos costumes, sem uma codificação específica. Nas palavras de Quincy Wright (CICV, 2015. Pg. 12):

“Tomadas em seu conjunto, as práticas bélicas dos povos primitivos ilustram vários tipos de normas internacionais relativas à guerra conhecidas no tempo presente: normas que distinguem tipos de inimigos; normas que determinam as circunstâncias, formalidades e a autoridade para iniciar e terminar a guerra; normas que descrevem limitações quanto a pessoas, momentos, lugares e métodos para a sua condução; e até mesmo normas que proíbem por completo a guerra”

Primeira página da ata manuscrita da primeira reunião do Comitê Internacional de Socorro aos Feridos, precursor do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), assinada por seu secretário Henry Dunant. [a]

No contexto da Revolução Francesa, no final do século XVIII, foi inaugurada a garantia dos direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, passando a conferir, com a proteção da lei, o mesmo tratamento aos soldados feridos, aos nacionais e aos prisioneiros de guerra (SOUZA, 2007). Certo é que até a primeira Convenção de Genebra de 1864, não havia uma codificação efetiva do DIH, cujo início se deu com o nascimento do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). Segundo Mônica Teresa Costa Sousa (2007, p. 52):

 “Na segunda metade do século XIX acontece o que se pode chamar de “fato gerador” do moderno Direito Internacional Humanitário: o nascimento do CICV. Através da iniciativa de determinados cidadãos e do governo suíços, catorze delegados de países europeus presentes a uma Conferencia Internacional realizada em Genebra resolveram adotar um corpo de normas que vincularia os Estados em situações de conflito.”

Ou seja, o DIH contemporâneo surgiu com a Primeira Convenção de Genebra em 1864 e foi evoluindo na busca da efetivação de ajuda humanitária diante dos avanços da tecnologia armamentista e das mudanças na natureza do conflito armado. As tabelas a seguir demonstram os principais instrumentos do DIH em ordem cronológica de adoção:

Desde então, e até os dias atuais, é impossível dissociar a evolução do DIH das atividades do Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Embora atualmente haja inúmeras normas internacionais humanitárias, dois marcos podem ser destacados, seja pela importância, generalidade ou alcance, são eles: as Convenções de Genebra de 1949 e os Protocolos adicionais de 1977. Tratam-se de tratados internacionais que contêm as normas mais relevantes que limitam as atrocidades da guerra, de forma a proteger pessoas que não participam dos combates como civis, profissionais de saúde e humanitários, bem como aqueles que deixaram de combater, sejam militares feridos, enfermos, náufragos e prisioneiros de guerra. (CICV, 2004)

Não só a sua criação, mas também a verificação destas violações dentro do DIH é função do Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Não se trata de papel somente de fiscalização ou de um agente acusador, mas também de promoção dos direitos humanos, auxílio no desenvolvimento econômico e no progresso social, proteção do meio ambiente e provisão de ajuda humanitária em casos de fome, desastres naturais e conflitos armados.

ENTENDENDO A ATUAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO

Para a compreensão da atuação e alcance do DIH faz-se o seguinte compilado de característica do instituto estudado neste artigo (CICV, 2015):

  • Trata-se de um direito aplicável em situações de conflito armado, que oferece sistemas de proteção tanto para os conflitos internos, quanto para os internacionais. Ressalta-se que o DIH não se aplica a situações de violência que não chegam a ser um conflito armado, casos esses em que será aplicado o Direito Internacional dos Direitos Humanos.
  • O DIH tutela a proteção de todas as vítimas de conflitos armados, tanto civis como combatentes que depuseram as armas. Dessa forma, o caráter da proteção fornecida será determinado pela condição da pessoa em questão, como combatente ou civil. Ressalta-se que os civis gozam tanto de uma proteção geral contra os perigos derivados das hostilidades, quanto quando se encontram nas mãos de uma parte do conflito, quando não sejam cidadãos desse Estado inimigo, ou se seus aliados.
  • As normas do DIH são universais e compulsórias, ou seja, se aplicam a todas as partes do conflito armado, independentemente de terem ratificado ou não os tratados desse direito. Sejam grupos Estatais ou não, todos estão debaixo da aplicação dessas normas e sujeitos às suas sanções em caso de descumprimento.
  • O Direito Internacional Humanitário não se confunde com os Direitos Humanos. Ambos são ramos complementares do Direito Internacional e possuem algumas finalidades em comum como a proteção da vida, saúde e dignidade de indivíduos, em perspectivas diferentes, na medida que um é aplicável em situações de conflitos armados internos ou internacionais, e o outro busca o lugar de luta pelos direitos gerais da pessoa humana em sua indivisibilidade, sejam de natureza civil, política, econômica, social ou cultural.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

A ideia de Direitos Humanos e Dignidade da Pessoa Humana, bem como a busca da garantia de sua aplicação às vítimas dos conflitos, tem tido lugar desde o período paleolítico, confundindo-se com o próprio início da civilização humana. Diante do triunfo do mais forte sobre o mais fraco nas sociedades primitivas, de forma desmedida e sem limites, a busca pela proteção dos indivíduos nas situações de guerra tornou-se necessária, estabelecendo-se códigos de conduta para efetividade dessa proteção.

Nesse sentido, a Convenção de Genebra de 1864 inaugurou essa codificação com o nascimento do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, revestindo de caráter imperativo e universal os tratados internacionais na busca da proteção e promoção das normas humanitárias. Desde então, tal direito tem sido ampliado e modernizado para fazer face às necessidades decorrentes dos diversos cenários sociais que se apresentam. Contudo, trata-se de uma ferramenta pouco conhecida e estudada, sendo alvo de pesquisas somente após a instalação de conflitos armados, cuja publicidade atinge a escala global.

Certo é que o Sistema Internacional tem se mostrado um cenário dinâmico e volátil, necessitando de maior atenção às presentes normas de proteção. Desta forma, importa estimular as discussões que impulsionam o debate dos operadores do Direito Internacional para a divulgação e conhecimento do Direito Internacional Humanitário, ratificando o seu importante papel nas Relações Internacionais, visando, assim, sua máxima efetividade e garantia em meio aos conflitos que insurgem na atualidade.

NOTAS

[1] – Sentido amplo

[2] – Sentido estrito

[3] – Que teve sua origem na Índia em torno do ano 1500 a.C., promulgado aproximadamente entre os anos de 1300 a 800 a.C. criado com a incumbência de estabelecer leis norteadoras da convivência social. (COSTA, RIBEIRO E BRASIL, 2014)

IMAGENS

Imagem em destaque: https://pixabay.com/pt/photos/s%C3%ADria-m%C3%A9dio-oriente-mapa-globo-1034467/

[a] É o primeiro documento coletado pelos arquivos do CICV. – Foto tirada e carregada no contexto da Semana Internacional de Arquivos 2020 da Wikimedia Suíça, Áustria e Alemanha e da Associação de Arquivistas Suíços. – Fonte: Search media – Wikimedia Commons

Tabelas: CICV – Comitê Internacional da Cruz Vermelha, 2004.

REFERÊNCIAS

ALVES. Lucas Garcia. A necessidade de regulamentação nos conflitos armados para o reestabelecimento da democracia. Revista de Direito Internacional – CEUB. V.9 , n.2,2012. 

ARZABE, Patricia Helena Massa. A Declaração Universal dos Direitos Humanos – 50 anos. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/direitos/tratado4.htm. Acesso em 16/11/2023.

CICV – Comitê Internacional da Cruz Vermelha. O que é o Direito Internacional Humanitário? Disponível em: https://www.icrc.org/pt/doc/resources/documents/misc/5tndf7.htm. Acesso em 16/11/2023.

COSTA, Naiara Lauriene Souza; RIBEIRO, Gilman Horta; BRASIL. Deilton Ribeiro. Código de Manu: principais aspectos. Athenas – Revista de Direito, Política e Filosofia. vol. 2, ano. III, ago.-dez. 2014.

FERREIRA, Luciano Vaz. Direito Internacional de Guerra. Jundiaí: Paco Editorial, 2014.

JUBILUT, Liliana Lyra [et al.], organizadores. Direitos Humanos e vulnerabilidade e o direito humanitário. Boa Vista: Editora da UFRR, 2019. 

MELLO, Celso de Albuquerque. Direitos humanos e conflitos amados. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.

SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito internacional humanitário. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007.

UNIDAS, Nações. Direitos Humanos: Direito Internacional Humanitário e Direitos Humanos. Disponível em: http://direitoshumanos.gddc.pt/pdf/ficha_infiormativa_13.pdf. Acesso em 16/11/2023.

Priscila Tardin

Luso-brasileira, apaixonada pela África. Profissional do Direito que está se especializando em Relações Internacionais para viver o melhor desses dois mundos. Entusiasta de novos desafios e experiências transculturais, com muita facilidade em comunicação e no aprendizado de novos idiomas.

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