MÃES DA PRAÇA DE MAIO: PONTE DE MEMÓRIA ENTRE OS DESAPARECIDOS E O NEOLIBERALISMO

MÃES DA PRAÇA DE MAIO: PONTE DE MEMÓRIA ENTRE OS DESAPARECIDOS E O NEOLIBERALISMO

Reprodução da Marcha realizada na Praça de Maio devido ao aniversário de 42 anos do Golpe Militar de 1976. (Foto: Tati Arregui / 24 de Março de 2018).

O que hoje se observa na Argentina é a continuação de um longo passado de instabilidades políticas. Embora fosse considerado um dos países mais prósperos da América Latina até o início dos anos 50, com uma população educada e grande quantidade de recursos naturais, a nação já passou por seis quedas de governos democráticos (1930, 1943, 1955, 1962, 1966 e, a mais recente, 1976) (FABJ, 1993). Nesse contexto, surgem as Mães da Praça de Maio, que conseguiram se constituir como uma força ativista de destaque internacional. Capazes de enfrentar a narrativa estatal sobre o que foi esse período, elas garantem que a Argentina não se esqueça do sangue que hoje se manifesta na violência neoliberalista, escorrendo do seu passado, manchando seu presente e ameaçando seu futuro. 

A Ditadura Argentina de 1976

Ainda que os golpes anteriores tenham demonstrado a incapacidade militar de implementar planos de refundação mediante uma sociedade politizada, o perecimento de Perón, presidente eleito e antigo ditador, foi devastador para a Argentina. Durante o governo de sua sucessora e esposa, Isabel (1974-1976), a inflação alcançava índices de 500 a 800% e o déficit público chegava a 12% do PIB (NOVARO; PALERMO, 2007). A fim de diminuir a resistência de um povo agitado, a então presidente dependia de organizações paramilitares especiais, as quais sequestravam os chamados “subversivos” (FABJ, 1993). Assim, um cenário de caos econômico, social e político era constituído, no qual os militares estavam fortalecidos e um assassinato político ocorria a cada 5 horas (NOVARO; PALERMO, 2007).

Esse panorama era apenas um prelúdio para o governo militar que teve início em 1976. Com o objetivo de estabelecer políticas econômicas neoliberais e manter a sobrevivência do regime por meio do apagamento de uma geração inteira de cientistas e ativistas, foi implementada a política de “Guerra Suja”, inspirada nos métodos utilizados por militares franceses na Argélia e Indochina. Ela foi sustentada pelo treinamento de mais de 3 mil oficiais em escolas militares estadunidenses entre os anos de 1960 e 1975, assim como pela definição ampla e ambígua de quem seriam os “subversivos” perseguidos (NOVARO; PALERMO, 2007).

Estíma-se que o terrorismo estatal levou à criação de 364 campos de concentração e centros clandestinos de detenção e extermínio, onde eram retidos, torturados e assassinados aqueles que fossem considerados inimigos da nação. Isso acontecia mesmo que não fizessem parte da luta armada ou não tivessem informações, o que representa a maior parte dos casos (SADER; JINKING, 2006). Legitimada por intermédio da ocultação e falsificação de informações, mulheres grávidas eram torturadas, assim como maridos, esposas e crianças na presença uns dos outros, bebês eram tomados de suas mães e distribuídos às famílias militares que desejavam filhos (CONADEP, 1986, pág. XVII). A tortura alcançava até mesmo parentes distantes dos sequestrados, que sofriam com a ostracia de amigos e parentes que temiam o mesmo destino (FABJ, 1993).

As Mães da Praça de Maio

Embora os desaparecimentos tenham começado em 1973, eles se intensificaram após o golpe em 1976. Foi nesse contexto que mães procuraram pelos desaparecidos desesperadamente em delegacias e se reuniram informalmente por quase um ano em locais públicos. Unidas pelos ideais compartilhados de seus filhos, as mães escolheram a Plaza de Mayo, próxima dos escritórios do governo e mais segura devido à grande circulação de pessoas. Inicialmente, elas apenas trocavam informações, mas, quando a polícia as pressionou sobre os perigos da movimentação, as Mães marcharam silenciosamente durante meia hora ao redor do monumento central da praça (FABJ, 1993).

É importante salientar que o ativismo das Mães da Praça de Maio está intrinsecamente ligado à sua identidade enquanto mães, utilizada para propósitos políticos (BURCHIANTI, 2004). O peso dessa percepção é ainda maior quando se considera o mito do marianismo, descrito pela primeira vez por Stevens (1973), uma ideia da superioridade moral relacionada à ideia da maternidade, bem como uma predisposição a atribuições apolíticas às suas movimentações, que costumam ser relacionadas somente ao amor e luto por seus filhos.

Essa retórica se constituía como uma faca de dois gumes: mesmo que limitasse e ditasse as possíveis escolhas de comunicação disponíveis, abria novas oportunidades de discurso que não poderiam ser utilizadas pelo sexo masculino (FABJ, 1993). Elas tinham consciência dessas vantagens e desencorajavam que homens participassem de suas marchas, pois era sabido que se o seu discurso ultrapassasse os limites da maternidade, sua “imunidade” diante do governo seria findada.

Com isso em mente, as Mães encontraram meios alternativos de dramatizar a sua dor, utilizando símbolos atrelados a sua identidade, como lenços para a cabeça na cor branca, contendo os nomes de seus filhos bordados e a data de seu desaparecimento. Também foram bordados os dizeres “Aparición con Vida” (Reaparecimento com Vida), fazendo menção ao fato de que sua busca não era apenas por seus familiares, mas por todos os desaparecidos (FABJ, 1993). Fotos deles eram expostas como prova incontestável de que o objeto fotografado realmente havia existido, ao contrário da narrativa construída pelo governo. 

Uma das Mães da Praça de Maio utilizando o lendo com os dizeres “Aparición con Vida” bordados. (Fonte: Javier Paredes /Março de 2008)

Enquanto o regime, guiado pela crença do marianismo, acreditava que com um pouco de persuasão as Mães poderiam ser silenciadas, as mulheres que antes eram confinadas ao espaço do lar, de classe trabalhadora, ganhavam consciência política (FABJ, 1993). Surgiu a percepção chave de que, em ordem de manter os seus filhos vivos, era necessário lutar pelos ideais que o terrorismo de Estado tentara apagar.  A ideia de que a condição de suas crianças era a de todos os argentinos ganhou vida, pois todos compartilham de um mesmo opressor, um projeto econômico que favorecia a poucos e oprimia a maioria. 

Nesse sentido, a ampliação de sua voz política tem exemplo prático durante a guerra contra a Grã Bretanha pelas Ilhas Malvinas, uma tentativa desesperada da Ditadura Militar de sobreviver. As Mães, então, fizeram oposições públicas, solicitando aos dois governos que retrocedessem nas investidas. Assim, sua retórica se tornava ainda mais politizada e consciente de como as violências do sistema se interligam. 

A Transição Democrática, Memória e o Neoliberalismo

A derrota argentina na Guerra das Malvinas foi a última pá de terra sobre a ditadura, que já havia sido enfraquecida pelo fracasso da política de reestruturação e estabilização nacional. Assim, iniciou-se uma transição para um regime democrático que precisava encarar como seriam lidos os eventos que se passaram anteriormente.

É preciso notar que, em ordem de realizar uma transição inteligente em que não se alterasse o status quo, uma série de medidas que preservam os militares foram tomadas. Desse modo, vigoraram leis como a “Ponto Final” e “Ordens de Superiores”, as quais protegiam aqueles que agiam sob ordens, num mesmo período em que as Mães da Praça de Maio eram consideradas e reconhecidas enquanto a única voz da democracia que sobreviveu à ditadura e a “voz da consciência” da Argentina.

Nesse paragima, o governo, ainda que democrático, passou a desacreditar a movimentação novamente, atrelando a elas o título de muito apegadas ao passado. Isso aponta para algo a mais: não apenas os oficiais que ceifaram o povo argentino continuam a viver plena e livremente, mas também o próprio projeto que guiou e deu vida ao regime ditatorial — a implementação de uma economia neoliberal que favorecia as elites e países como os Estados Unidos, os quais financiaram os golpes e a instabilidade argentina. Ao lutarem veementemente pelo reconhecimento dos crimes e contra a impunidade e a anistia, as Mães relatam que, dessa vez, quem lhes dera vida foram os filhos, uma vez que foram eles os responsáveis por repassar a consciência política necessária para reconhecer os verdadeiros opressores e as ideias que matam e se perpetuam silenciosamente. (FABJ,1993).

Assim sendo, o fato das Mães continuarem a utilizar seus lenços brancos simboliza como a injustiça que levou embora uma geração inteira de ativistas de esquerda ainda existe e tomam outras vidas. O confronto imposto pelas Mães entre as memórias dos reprimidos e a narrativa construída por um Estado que continua a realizar um genocídio — agora por meio do desemprego e da fome — garante que seus filhos continuem vivos, tanto os que desapareceram quanto os que ainda podem desaparecer, angariando novos ativistas todos os dias para sua causa (BURCHIANTI, 2004).

Ou seja, ao lembrar a Argentina, assim como o Sistema Internacional como um todo, as mães confrontam diretamente as autoridades que permitiram ou, ainda melhor, causaram os desaparecimentos. Utilizam suas memórias maternais e as ideias políticas de seus filhos, ressignificando o terrorismo de Estado e demonstrando como os desempregados são os novos desaparecidos, sem rosto e sem a proteção do governo, vitimadas por ele em troca do fortalecimento da hegemonia de poucos (BORLAND, 2006).

Portanto, as Mães da Praça de Maio demonstram a importância da conservação da memória e as razões pelas quais um governo que se propõe a ser democrático as silencia, levando adiante um projeto que financia sua corrupção e mantém uma elite segura, a custo da insegurança de seus filhos. Incorporando pautas como o desemprego, o neoliberalismo, a dívida internacional e a corrupção, o movimento se manteve atualizado e forte, se conectando com uma juventude em busca da construção de um país pacífico que se lembra de onde vieram as manchas de sangue em sua história.

Referências

BORLAND, Elizabeth. Las Madres de Plaza de Mayo en la era neoliberal: ampliando objetivos para unir el pasado, el presente y el futuro. Colombia internacional, n. 63, p. 128-147, 2006.

BURCHIANTI, M. E. Building bridges of memory: The mothers of the Plaza de mayo and the cultural politics of maternal memories. History and anthropology, v. 15, n. 2, p. 133–150, 2004.

CONADEP [Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas]. Nunca más: The report of the Argentine National Commission of the Disappeared. New York: Farrar Straus Giroux, 1986.

FABJ, V. Motherhood as political voice: The rhetoric of the mothers of Plaza de Mayo. Communication studies, v. 44, n. 1, p. 1–18, 1993.

NOVARO, Marcos; PALERMO, Vicente. A Ditadura Militar Argentina 1976-1983: do golpe de Estado à restauração democrática. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007.

PERRONE-MOISÉS, Cláudia. O perdão e os crimes contra a humanidade: um diálogo entre Hannah Arendt e Jacques Derrida. Hannah Arendt e a condição humana. Salvador: Quarteto, p. 211-224, 2006.

SADER, Emir; JINKINGS, Ivana et. al. (Coord.). Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006.

STEVENS, E. P. Marianismo: The other face of machismo in Latin America. Em: PESCATELLO, A. (Ed.). Female and Male in Latin America. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, p. 90–101, 1973.

Kaillany Azevedo Batista

Interessada em Memória Política, Gênero e Economia Política. Graduanda em Relações Internacionais na UFG e Assistente de Pesquisa no INCT-INEU. Tagarela, leitora voraz, maníaca por música, madrinha de gatos e tia das plantas.

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