ATOS HUMANOS: MEMÓRIA, SANGUE E JUVENTUDE SUL-COREANA NO MASSACRE DE GWANGJU

ATOS HUMANOS: MEMÓRIA, SANGUE E JUVENTUDE SUL-COREANA NO MASSACRE DE GWANGJU

Em seu mais recente romance histórico, Han Kang propõe uma reflexão multifacetada acerca da ainda tão recente ferida ocasionada pelo Massacre de Gwangju (1980). Este foi um dos maiores crimes contra a humanidade cometidos por mãos humanas durante a repressão na Ditadura Militar Sul-coreana, que dominou o país por anos (VALCARENGUI, 2022).

Logo após uma sequência desastrosa de eventos históricos que assolaram a Coreia, ocorre a partilha da península coreana em duas: Coreia do Norte e Coreia do Sul. A partir deste momento, as duas regiões passam a enfrentar processos históricos e políticos completamente diferentes apesar de dividirem um mesmo território. Enquanto a Coreia do Norte se encontrava em um duro processo de adaptação ao novo sistema político (juche), o Sul lidava com frequentes crises econômicas e políticas em meio a uma ditadura militar.

A revolta popular contra a ditadura de Chun Doo-hwan, que teve como resposta do governo repressor inúmeras mortes e desaparecimentos, ocorreu de 18 a 27 de maio de 1980. A população armada tomou conta da cidade de Gwangju exigindo o fim do governo autoritário, da censura e das constantes violações de direitos humanos. Muitos dos protestantes eram estudantes do ensino médio e universitários. 

“Esmagando aquele momento, vem massacre, vem tortura, vem repressão. Empurra para a frente, esmaga, varre. Entretanto, agora, contanto que estejamos com os olhos abertos, contanto que encaremos até o fim, nós…”

(KANG, Han. Atos Humanos. p. 191, 2021)

Através de perspectivas de narradores múltiplos, Han Kang nos leva a visões das vítimas diretas e indiretas da repressão militar à Revolta de Gwangju, ocorrida em sua cidade natal.

Cada capítulo possui um narrador e um período de tempo específico, que acaba enriquecendo a trama e proporcionando ao leitor uma breve viagem histórica a um episódio que, apesar de se passar na Coreia do Sul, nos leva a pensar acontecimentos locais, como o Golpe Militar de 1964 no Brasil.

SEM PERDÃO

O primeiro capítulo nos apresenta um menino de 15 anos que busca o corpo do amigo Jungdae, que foi assassinado pelos militares durante uma ação de repressão aos manifestantes e civis próximos.

Em meio a busca pelo corpo, o protagonista perpassa pelas memórias dos dias que passou ao lado do amigo e da relação próxima que construíram na escola, assim como, reflete sobre o sistema de voluntários que se criou a partir da alta demanda pelo cuidado com os feridos e mortos no massacre. Estudantes e outros civis se revezavam para limpar e posicionar os corpos em um mesmo ambiente para ajudar no processo de reconhecimento e, posteriormente, o velório.

Ao mesmo tempo que, o peso da culpa e a raiva pela impossibilidade de evitar algo que já aconteceu e que não estava sob seu controle faz o personagem questionar os motivos que guiaram o assassinato do amigo.

Não vou perdoar. Olhas nos olhos do velho, que treme como se tivesse visto a coisa mais terrível em toda sua vida. Não vou perdoar nada. Nem a mim mesmo.

(KANG, Han. Atos Humanos. p. 38, 2021)

O capítulo possui um narrador oculto que parece acompanhar os passos do personagem como se contasse a história dele para ele mesmo. Dessa forma, a narrativa perpassa a busca do menino enquanto este se recusa a ser salvo em um misto de culpa por ter fugido e por ter deixado o amigo para trás durante o ataque que lhe custou a vida.

MORTOS NÃO FALAM

No capítulo seguinte, Jungdae finalmente nos é apresentado. Dessa vez ele conta sua perspectiva em primeira pessoa de seu processo após a morte, sendo o cadáver perdido de uma vítima da repressão.

“Penso no meu flanco que está se decompondo.

Penso na bala que o penetrou.

Naquilo que sentia no começo como um porrete frio,

Naquilo que, em um instante, tornou-se massa de fogo, movendo-se no interior da minha barriga.

Penso no buraco que aquilo causou no flanco do outro lado,

fazendo todo o meu sangue quente escorrer.

Penso no cano da arma que atirou e deixou aquilo sair.

Penso no gatilho gelado.

Penso no dedo quente que o puxou.

Penso nos olhos que miraram em mim.

Penso nos olhos da pessoa que deu a ordem de atirar em mim.”

(KANG, Han. Atos Humanos. p. 48, 2021)

O rapaz descreve a ausência de vida e o processo de apodrecimento de um cadáver que teve seu direito de ser velado negado junto ao direito de seus familiares e amigos ao luto. Perdidos e assistindo uns aos outros apodrecerem aos poucos, temendo não serem encontrados pelos entes queridos ao mesmo tempo que são almas presas a cascas decrépitas, sem o direito de finalmente poder descansar em paz.

NÓS ESTAMOS AQUI

Toda tragédia possui vítimas diretas e indiretas. Desde os mortos, feridos e enfermos, também existem aqueles que sobreviveram e os entes queridos que lidam com a dor eterna da perda e das consequências de um Estado que, ao invés de zelar pela população, utiliza da força para exercer poder por meio da repressão e do silenciamento.

Nos capítulos seguintes, exceto pelo epílogo, Han Kang utiliza do recurso literário para nos apresentar aos sobreviventes e como se deram suas vidas após o episódio. Neste sentido, é destacado pela autora que essas pessoas têm a voz para manter a história viva e relembrar constantemente os crimes cometidos pelos militares, uma vez que assumiram o poder através de uma ditadura contra a vontade do povo.

Entretanto, a dor do trauma e a negligência para com o tratamento e acompanhamento dessas pessoas é factual para o abandono por parte do Estado e a reclusão, devido à impossibilidade de se reinserir na sociedade por conta do preconceito relacionado aos transtornos psicológicos e doenças mentais desenvolvidos por conta do trauma. Sendo envolvidos diretamente ou não com a Rebelião de Gwangju, muitas pessoas seguem sobrevivendo com as sequelas deste período enquanto batalham para viver de forma minimamente decente em uma sociedade que ainda não sabe lidar com doenças mentais e transtornos psicológicos.

“Certas memórias não cicatrizam. Em vez de obscurecerem com o passar do tempo, como outras, essas, pelo contrário, permanecem, fazendo apenas as outras memórias se desgastarem lentamente. O mundo escurece como se as lâmpadas se apagassem uma a uma. Sei que também não estou em segurança.”

(KANG, Han. Atos Humanos. p. 112, 2021)

AS FERIDAS ABERTAS DA HISTÓRIA SUL-COREANA

Após o fim não somente da Ditadura Militar na Coreia do Sul, como também de uma sequência desastrosa de golpes, em 1987, houveram as primeiras eleições diretas no país após anos de tensões políticas.

A Sexta República, que perpetua até hoje, trata-se de um marco para o desenvolvimento econômico sul-coreano. Isso ocorre visto que seis anos após o restabelecimento da democracia, o país torna-se membro da Organização pela Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OECD) e tem seus avanços econômicos reconhecidos internacionalmente. Outrossim, os sul coreanos se recuperaram rapidamente da crise financeira asiática (1997-1998) para que, em 2002, pudessem alcançar o posto de 11ª maior economia do mundo (LEE, p. 4, 2016).

Além da economia bem estabelecida e uma forte indústria nacional – majoritariamente voltada para o ramo da tecnologia – a Coreia do Sul é classificada como a 10ª maior potência militar quando ponderada pelos gastos com defesa, segundo o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo. Este fato leva Lee (2016) a classificar o país como potência média nas duas últimas décadas em termos de poder de recursos.

Entretanto, a fachada do desenvolvimento econômico acoberta inúmeras falhas sistêmicas oriundas do capitalismo e das feridas históricas nunca tratadas devido a política de silêncio em relação à saúde mental. A Coreia do Sul é o país com a maior taxa de suicídio entre países desenvolvidos (membros da OCDE) e a segunda maior do mundo, segundo a OMS. Além disso, ampla maioria dos casos de suicídio ocorre entre idosos devido a negligência no desenvolvimento de políticas previdênciárias para essa parte da população, que acaba sendo a maioria nas taxas de pobreza do país.

CONCLUSÃO

A riqueza literária da escrita de Han Kang é marcada pelas múltiplas vozes que nos auxiliam a visualizar essa mancha grotesca na história do país ao sul da península coreana. Também, é valiosa para tecer análises prospectivas das consequências do apagamento histórico e da negligência para com as vítimas, que hoje em dia, já possuem idade avançada em sua maioria. Assim como no episódio das “Mulheres de Conforto”, as vítimas ainda buscam justiça, famílias ainda buscam parentes desaparecidos e, até hoje, ainda não existe um número exato de mortos envolvidos na repressão à Revolta de Gwangju.

É mais do que necessário e urgente questionar o que sustenta o atual modelo de desenvolvimento, levando em consideração não somente os aspectos econômicos, mas também as fissuras criadas por um projeto de desenvolvimento capitalista que apaga e silencia os que lutaram pela liberdade e pela própria vida em um passado não tão distante. Por sua vez, é preciso ressaltar frequentemente o papel da história para preservar a memória e evitar que crimes hediondos como esses voltem a ser cometidos pelas mãos do Estado através de atos humanos.

“동지는 간데없고 깃발만 나부껴”

“Dear comrades have gone; our flag still waves.”

March for our Beloved (임을 위한 행진곡)

Giovanna Gomes Cardoso de Lima

Graduanda em Relações Internacionais pela UFPB, apreciadora da história e da literatura dos países asiáticos.

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