RAINHA CHARLOTTE, UMA HISTÓRIA BRIDGERTON: MULHERES, RAÇA E NOBREZA

RAINHA CHARLOTTE, UMA HISTÓRIA BRIDGERTON: MULHERES, RAÇA E NOBREZA

O apagamento histórico que envolve a presença do negro na formação de sociedades após o trágico período escravagista em alguns países do continente europeu e suas respectivas colônias é um fator inegável para a consolidação do racismo e da desigualdade racial que assolam sociedades até os dias de hoje.

A ato de pensar o papel dos negros antes, durante e após a escravidão é um aspecto que, apesar de extremamente necessário, ainda é colocado em segundo plano no ensino de história. Até mesmo, em países como o Brasil, que se orgulham de sua suposta “política de igualdade racial” que foi parte principal do projeto de projeção internacional do país na década de 60.

Em seu mais recente romance em parceria com a roteirista, cineasta e produtora norte-americana Shonda Rhimes, a escritora de romances de época Julia Quinn entrega uma proposta um tanto quanto diferente de suas obras anteriores, que se centravam majoritariamente em romances sobre a nobreza britânica no século XIX.

REESCREVENDO A HISTÓRIA

Através de ‘Rainha Charlotte: Uma história Bridgerton’ as autoras reinventaram a história da monarquia inglesa com a inserção de uma rainha negra em uma sociedade cuja corte se encontra dividida em uma espécie de apartheid social baseado, especialmente, na cor da pele.

No ano de 1720, George III assume o trono aos 22 anos de idade, filho do príncipe Frederico de Gales com a princesa Augusta de Saxe-Gota e neto do rei George II da Grã-Bretanha. O recém coroado rei foi encarregado de casar-se para dar continuidade a linhagem real, sem qualquer interesse particular envolvido.

Assim como todo casamento da realeza, a simples força de vontade e busca por uma mulher dotada das habilidades necessárias para assumir o posto de rainha não era o suficiente. A necessidade de um argumento político que justificasse a união e trouxesse benefícios para a coroa britânica era essencial, e foi em uma pequena região rural da Alemanha que a noiva perfeita foi encontrada.

A JOVEM RAINHA NEGRA

A princesa Charlotte de Mecklenburg-Strelitz tinha apenas 17 anos quando foi considerada a esposa perfeita para o mais novo rei da Grã-Bretanha, sem que ao menos ambos se conhecessem ou tivessem tido qualquer contato antes do casamento, que ocorreu somente seis horas após a chegada de Charlotte na Inglaterra.

Apesar de alguns historiadores acreditarem que a princesa possuía “sangue mouro” — denominação dada pelos cristãos às pessoas de pele escura e de religião muçulmana que habitaram a Península Ibérica, do século VIII ao XV — ela não era negra, da mesma forma que a aristocracia inglesa contou com a presença negra apenas de forma extremamente pontual. Entretanto, Rhimes e Quinn utilizaram da liberdade literária para preencher essas lacunas e criar uma nova história.

Na adaptação de Julia Quinn, a princesa Charlotte é escolhida às cegas pela mãe de George III, que sabia apenas que a moça possuía sangue africano mas não imaginava que ela fosse de fato uma mulher negra. A chegada da princesa surpreende a corte, que se desespera para promover uma reorganização imediata da alta sociedade britânica, sem que a princesa soubesse, através da inclusão de pessoas racializadas na aristocracia, para que a recém-chegada monarca acreditasse que pessoas como ela sempre tivessem sido parte da alta sociedade.

– Não estamos preparados para uma moça tão marrom – disse a mãe.

– De fato – opinou lorde Bute, o que não acrescentava nada à conversa.

– E não sai.

George abriu os olhos de repente.

– O quê?

– Não sai – repetiu a princesa. – Eu esfreguei o rosto dela para ter

certeza.

– Por Deus, mãe – disse George, quase se levantando.

Reynolds deu um salto para trás, bem a tempo de evitar cortar o

pescoço do rei com a navalha.

– Por favor, me diga que não tentou esfregar a pele da minha prometida

até a cor sair – disse George.

A mãe dele se indignou.

– Não foi por mal.

(Quinn, Julia. Rainha Charlotte, p. 29, 2023)

Mesmo com o título de nobreza, seria inocência imaginar que Charlotte seria isenta do racismo por parte da corte inglesa, que não estava acostumada a ver pessoas negras em posições de poder. Do mesmo modo que é inevitável não ser vista como um objeto de utilidade exclusiva para reprodução, como a maioria das mulheres durante o referido período, fatores estes que são agravados quando reunidos em uma única pessoa: uma mulher negra e estrangeira, mesmo que nascida na Europa.

O “GRANDE EXPERIMENTO” E O FALSO FIM DO APARTHEID

A criação do chamado “Grande Experimento” é nada mais do que uma desculpa da monarquia para receber uma monarca negra de forma menos conturbada e sem os receios de que a rainha poderia vir a ser rejeitada pela aristocracia.

Do mesmo modo que, a impressão negativa de uma sociedade segregada seria um choque e um grande escândalo no ato de coroar uma rainha de pele escura em meio a alta sociedade completamente embranquecida e pouquíssimo tempo após o fim do tráfico de pessoas escravizadas oriundas do continente africano.

E embora os Danburys e os Smythe-Smiths – bem como os Bassets, os Kents e um bom número de outras famílias proeminentes – desfrutassem de uma vida de riqueza e privilégios, ainda era uma espécie de riqueza e privilégio separada da tradicional aristocracia britânica. Devido à sua pele negra, Agatha nunca seria considerada uma companhia adequada para as filhas da nobreza, muito menos uma possível noiva para seus filhos.

(QUINN, Julia. Rainha Charlotte, p. 37, 2023)

AS CONSEQUÊNCIAS PARA AS FAMÍLIAS

Um dos exemplos do projeto mal elaborado e feito apenas de aparências é o caso da recém nomeada dama da corte Lady Agatha Danbury, uma mulher nobre e pertencente à realeza de Gana que foi condicionada a se casar com um rico, e muito mais velho, detentor de uma mina de diamantes no país desde o momento de seu nascimento.

Contudo, seu título de realeza nunca foi reconhecido na Inglaterra ou em qualquer outro país europeu, sendo considerado inválido por estar relacionado a um reino pertencente a um país africano colonizado. Assim como, mesmo sendo rico e tendo estudado em Eton College — escola conhecida por seus ex-alunos ilustres, majoritariamente membros da nobreza e pensadores da literatura e economia — ao lado do rei anterior, ainda assim não tem sua entrada permitida em clubes relacionados a aristocracia ou convites para jantares e bailes organizados por nobres por ser um homem negro de origem africana.

Dizia-se à boca miúda que a “antiga” sociedade (como a nobreza de pele clara tinha passado a ser chamada) ainda conjecturava se o casamento poderia ser anulado e uma nova rainha encontrada entre suas famílias. Muitos, se não a maioria, ainda se recusavam a aceitar os recém-elevados a nobres. Diversos dos novos lordes, entre eles Danbury, haviam tentado se associar ao White’s.

Foram todos barrados na porta.

 (QUINN, Julia. Rainha Charlotte, p. 120, 2023)

A mudança repentina, apesar de soar vantajosa e impressionante para as pessoas racializadas que obtiveram títulos a partir do casamento de George e Charlotte, ainda assim, não se mostra eficaz ao notar a continuidade do movimento de exclusão destes “novos nobres” em todos os ambientes e situações onde a presença de nobres brancos, “a antiga nobreza”, é frequente. Por sua vez, o problema tem sua solução adiada devido aos conflitos da recém coroada rainha quanto ao próprio casamento e o novo título.

A RELAÇÃO COM GEORGE III

O enlace de Charlotte, diferentemente dos registros históricos, teve um início difícil  devido a distância que George decidiu estabelecer logo após a cerimônia — que é revelado mais tarde estar relacionada ao adoecimento mental do rei, cujo diagnóstico era inconclusivo e contava apenas com tratamentos experimentais — fator que acabou preocupando a coroa quando ao que seria a função da rainha consorte, dar a luz a um herdeiro legítimo e capaz de suceder o pai posteriormente.

Contudo não havia qualquer interesse por parte do parlamento ou, até mesmo, da corte quanto ao peso que Charlotte enfrentava ao ser uma jovem rainha cujo casamento parecia instável, tendo que lidar não somente com o papel de rainha, como também com uma gravidez e o adoecimento do marido, que permanecia afastado de eventos públicos e até mesmo, reuniões formais do parlamento. 

De fato, existem registros históricos da doença de George III que nunca foi devidamente diagnosticada, alguns estudiosos supõem que não se tratava de uma doença mental, e sim, de Porfiria, um conjunto de doenças raras causadas por um defeito na produção de enzimas da hemoglobina, que acaba dificultando o transporte de oxigênio para o sangue. Um dos sintomas é a confusão mental, retratada não somente no livro como também em alguns registros da Coroa Britânica.

CONCLUSÃO

Mesmo que para uma nobre seja completamente diferente, é necessário ressaltar esta como uma possível representação do que seria a tripla jornada de trabalho feminina, enfrentada, em especial, por mulheres de classes sociais não abastadas, que precisam se dedicar ao trabalho, ao casamento e aos filhos. No caso de Charlotte, que não precisava se dedicar a tarefas domésticas ou ao cuidado direto dos filhos, foi preferível manter-se diretamente envolvida com sua posição como rainha, dando suporte a George e se abstendo de ser presente na vida dos herdeiros que gerou.

Na trama, a rainha negra acaba tendo um papel decisivo para a manutenção dos títulos dos novos nobres, tendo em vista a necessidade do estabelecimento de regras para herdar o título e a manutenção deste que se assemelha ao determinado para a antiga nobreza por séculos. Além disso, o livro aborda como a rainha foi a pioneira na normalização dos casamentos interraciais e na união de uma sociedade que, por muito tempo, permaneceu dividida.

Apesar de tratar-se de uma ficção que utiliza de fatos históricos para criar uma nova narrativa no universo dos romances de época, Julia Quinn e Shonda Rhimes proporcionam uma série de críticas ao patriarcado e ao racismo proeminentes em sociedades européias e ao redor do mundo até hoje. Do mesmo modo que propõe um romance repleto de representatividade sem ser vazio e sem sexualizar e estereotipar personagens racializados, colocando-os em destaque na trama com uma justificativa intrigante.

“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”

Angela Davis

Giovanna Gomes Cardoso de Lima

Graduanda em Relações Internacionais pela UFPB, apreciadora da história e da literatura dos países asiáticos.

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